“Quem dentre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra”
Jesus vem do Monte das Oliveiras, onde
tinha pernoitado. É de manhã cedo. A cidade desperta para um novo dia portador
de uma nova esperança. Em frente, ergue-se o Templo, centro da vida religiosa e
social, memória de uma história atribulada, presença viva de acontecimentos
notáveis, que, em breve, irão consumar-se na tragédia do Calvário e, sobretudo,
no vazio surpreendente do túmulo de José de Arimateia.
Chegado ao Templo, Jesus senta-se na
esplanada. João, 8, 1-11, faz o relato numa narração que parece de repórter,
evidenciando a importância da cena. O povo vai-se reunindo e Jesus inicia os
seus ensinamentos. Acorrem também escribas e fariseus acompanhados por uma
mulher forçada que, sem demoras, acusam de adultério, de ter sido apanhada em
“flagrante”. O centro da atenção transfere-se imediatamente. Os ouvintes
tornam-se expectadores. A acusada sente-se observada e incriminada. Os
acusadores fazem-se porta-vozes da indignação pelo delito ocorrido. E Jesus
suspende o que faz, acolhe quem chega, escuta com ouvidos do coração,
“desacelera” a pressa e a emoção e começa a marcar o ritmo do processo.
Que pedagogia de Mestre! Que exemplo nos
deixa, sobretudo neste tempo de vozes cruzadas em que parece ter razão quem
fala mais ou enfeita melhor!
O silêncio, acompanhado de uns gestos
expressivos, vai indiciando a resposta desejada. Nem a insistência o força a
pronunciar-se. Livre, como é, toma a palavra que faz de “espelho” a quem acusa
e remete o assunto para a consciência pessoal. “Mestre, esta mulher foi apanhada
em flagrante adultério. Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres. Tu
que dizes?”
Que feixe de sentimentos terá provocado
esta acusação/declaração! Na mulher que vê a sua vida oculta ser tornada
pública, nos fariseus e escribas que pretendiam armar uma cilada fatal, no
grupo de ouvintes dos ensinamentos, apanhados pela surpresa, em Jesus, o Mestre
vigiado sob suspeita.
E como cada um fazia a gestão das suas
expectativas! O tempo nestas circunstâncias acelera e cada segundo parece uma
hora.
“Quem dentre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra”, sentencia o Mestre, após ter decorrido o tempo
suficiente para a interiorização pretendida. Sentencia o Mestre que provoca uma
reviravolta espantosa nos acusadores. Todos, a começar pelos mais velhos, começam
a retirar-se. Só lhes interessava a acusação/condenação. Com o gesto da
retirada, vai cada um declarando o seu pecado. O que estava oculto, surge à luz
do dia. A presumida fidelidade a Moisés levanta o véu da hipocrisia. As pedras
da punição ficam inofensivas, por enquanto, e a armadilha de acusação
converte-se em oportunidade de trazer à luz a verdade libertadora. Como se
mantém atual um quadro ético semelhante!
O Papa Francisco, na exortação
pós-sinodal «Cristo Vive» publicada esta semana dirigida a todos, mas sobretudo
aos Jovens, reconhece que “o abuso não é o único pecado dos membros da Igreja.
«Os nossos pecados estão à vista de todos; refletem-se, impiedosamente, nas
rugas do rosto milenário da nossa Mãe», mas a Igreja não recorre a cirurgias estéticas,
«não tem medo de mostrar os pecados dos seus membros». «Lembremo-nos, porém,
que não se abandona a Mãe quando está ferida» (101). Este momento sombrio, com
a ajuda preciosa dos jovens, «pode verdadeiramente ser uma oportunidade para
uma reforma de alcance histórico para se abrir a um novo Pentecostes» (102). E
recorda aos jovens que «há uma via de saída» em todas as situações escuras e
dolorosas”.
“E ficou só Jesus e a mulher que estava
no meio”, anota o evangelista narrador. Que momento este! Que aguardaria a
mulher adultera, enxovalhada e incriminada! A sua sorte depende de uma palavra,
a de Jesus, o único que podia atirar a pedra de punição. De facto, Ele não
apenas estava sem pecado, mas é sua missão tirar o pecado do mundo.
“Vai e não tornes a pecar”, diz-lhe
Jesus, infringindo a Lei e fazendo triunfar a misericórdia. Não condena a
mulher, que mantém a sua dignidade, mas exorta-a a deixar o pecado que envilece
a pessoa, a esquecer o que fica para trás (como São Paulo na 2.ª leitura), a
enveredar por um caminho novo que já começa a aparecer (como anuncia Isaías aos
exilados de Babilónio prestes e regressar a Jerusalém, a reconhecer que o
Senhor faz maravilhas em favor do seu povo.
Que bom ver a caminhada quaresmal chegar
ao fim com este olhar espiritual! “Grandes maravilhas, fez por nós o Senhor”,
rezamos como o refrão do salmo.
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