Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias
A convite de João Paulo II, o cardeal
Joseph Ratzinger aceitou em 1981 ser Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, com uma condição: continuar a publicar livros. "Porque sentia a
obrigação interior de poder dizer algo à humanidade". Gostaria de ter dedicado
a vida à "teologia científica". "Todos os escândalos chegam à
Congregação". "Que na Igreja há porcaria é conhecido, mas o que o
Prefeito da Congregação tem de digerir vai muito para lá". Fez questão em
não misturar a sua teologia com os documentos da Congregação: não foi ele, por
exemplo, que redigiu a Dominus Jesus, sobre a unicidade da Igreja católica.
Confessa que "está feliz com as reformas do Concílio, quando são acolhidas
com honestidade, na sua substância." Mas "cada vez mais pessoas
perguntavam: a Igreja ainda tem uma doutrina comum? Ora, tenho a convicção de
que também hoje devemos estar à altura para dizer o que é que a Igreja crê e
ensina".
Confessa as suas debilidades: em 1991,
teve uma hemorragia cerebral, seguindo-se imensas dificuldades, acabando por
ficar cego do olho esquerdo. Vale-lhe a música, mas precisa de silêncio e de
7-8 horas de sono. Não é um "grande conversador" e é débil de voz,
com uma saúde frágil.
Quando pensava, após a morte de João
Paulo, poder "finalmente escrever em paz os seus livros", foi eleito
Papa. "A sensação foi simplesmente esta: uma guilhotina".
"Procurou, antes de mais, ser um Pastor". "Havia sobretudo o que
queria fazer: colocar no centro o tema de Deus e a fé. O importante é preservar
a fé hoje. Considero ser esta a nossa tarefa". Fala com gosto com
agnósticos, ateus e pessoas de esquerda, o que "num certo sentido é
natural; se são honestos e reflectem". "Gostou de ser Papa?"
Está grato pelas "muitas belas experiências, mas foi também sempre
evidentemente um fardo". A viagem "mais delicada" foi talvez a
da Turquia. Na Alemanha, apelou a que a Igreja fosse menos mundana. Queixa-se
aliás da "propaganda a denegri-lo", concretamente na Alemanha, onde
"há pessoas que querem destruir-me". Aqui, perguntou eu: e ele não
destruiu muitos?!
Procurou também resolver questões
administrativas, como reformar o Banco do Vaticano. "Trabalhei em
silêncio, tanto sobre aspectos organizativos como legislativos". Removeu
cerca de 400 padres culpados de abusos sobre menores. Dissolveu um lobby gay no
Vaticano. Mas admite que é mais professor do que um gestor, o que constitui
"uma certa fraqueza". Aliás, que poder tem o Papa? Responde a quem
pensa que "um Papa tem plenos poderes e pode dizer a palavra definitiva":
"Não é assim. Impossível".
Não se vê a si mesmo como "um
falhado". Houve momentos difíceis, mas "no cômputo geral foi também
um período no qual muitas pessoas encontraram um novo caminho para a fé e foi
também um grande movimento positivo". Resignou, porque já não tinha forças
- outro poderia fazer mais e melhor - e aquele era o momento adequado: "é
claro que também o Papa não é um super-homem". Não foi uma fuga à Cruz nem
houve pressões, nunca se arrependeu: "Ninguém tentou fazer chantagem.
Aliás não o teria permitido. Se o tivessem tentado, não teria saído, porque não
se deve abandonar quando se está sob pressão. E também não é verdade que estava
desiludido ou coisa semelhante. Pelo contrário, graças a Deus, estava num
estado de alma pacífico de quem ultrapassou as dificuldades. O estado de alma
em que se pode passar tranquilamente o leme a quem vem depois". E prometeu
obediência absoluta ao sucessor: "o Papa é o Papa, não importa quem
seja". Quanto a Francisco: "Quando ouvi o nome, primeiro fiquei inseguro.
Mas, quando vi como falava, por um lado, com Deus e, por outro, com os homens,
fiquei verdadeiramente contente. E feliz". A eleição de um cardeal
latino-americano "significa que a Igreja está em movimento, é dinâmica,
aberta, tendo diante de si perspectivas de novos desenvolvimentos. É
completamente claro que a Europa já não é o centro da Igreja mundial: a
universalidade da Igreja é autêntica, os vários continentes têm nela peso
igual". É evidente que "a Igreja está a abandonar cada vez mais as
velhas estruturas tradicionais da vida europeia e, portanto, muda de aspecto e
nela vivem novas formas. É claro sobretudo que a descristianização da Europa
progride, que o elemento cristão desaparece cada vez mais do tecido da
sociedade. Portanto, a Igreja deve encontrar uma nova forma de presença. Estão
em curso reviravoltas epocais". A teologia precisa de renovar-se,
abandonando, por exemplo, antigas concepções espaciais: "Deus não está
"num lugar qualquer", mas é a realidade. A realidade-fundamento de
toda a realidade." Não faz sentido a pergunta: "onde está
Deus?". "Porque "onde" já é uma delimitação, já não é o
infinito, o criador, que é o Todo (das All), que abrange todo o tempo e ele
próprio não é tempo, cria-o e é sempre presente." Por isso, "é
pessoa": também em nós, "a pessoa é o que transcende o puro espaço e
me abre o infinito". Não se pode fazer representações de Deus, embora,
para nós, esteja "presente num homem, Jesus Cristo".
Teme a morte? Quem não teme? E pensamos
nos "erros cometidos?" Mas, "evidentemente, a confiança de base
está sempre presente". Peter Seewald: "Quando comparecer perante o
Todo-Poderoso, que vai dizer-lhe?" "Pedir-lhe-ei que seja indulgente
com a minha miséria". Seewald: "O crente confia que a "vida
eterna" é uma vida plena". Resposta: "Absolutamente. A confiança
em que, então, está verdadeiramente em casa".
E que deve constar na lápide tumular?
"Diria: Nada! Só o nome". Seewald: "O seu lema episcopal é:
"Colaboradores da Verdade". Seria algo adaptado". Bento XVI:
"Sim. Uma vez que é o meu lema, pode ser colocado também".
Por
decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.