Opinião de Adriano Moreira no Diário deNotícias
A marginalização da ONU, que o próprio
Obama procurou reanimar, tem a sua premissa no conflito de interesses que
antecedeu, durou, e de novo se tornou evidente depois da queda do Muro de
Berlim, em 9 de novembro de 1989. A Carta da ONU foi assinada na cidade de São
Francisco, aos 26 de julho de 1945. A paz, o desenvolvimento sustentado, o fim
do regime colonial, o "mundo único", a terra "casa comum dos
homens", procuravam garantir que nunca mais se repetiria desastre que
sequer lembrasse a guerra de 1939--1945. E todavia, na sessão de 1948 da
Assembleia Geral, o famoso Paul-Henry Spaak trovejou, dirigindo-se à URSS:
"Sabeis qual é a base da nossa política? É o medo, o medo de vós, o medo
da vossa política, o medo do vosso governo."
Neste ambiente, o resultado foi que a
ordem da ONU veio a ser dominada pela ordem dos pactos militares, NATO e
Varsóvia, o primeiro, liderado pelos EUA, assinado em 4 de abril de 1949,
expressão militar das grandes potências democráticas e suas aderentes, o
segundo, como resposta, guiado pela visível fusão estratégica, executada por
Estaline, entre o marxismo e o império russo, assinado em 14 de maio de 1955.
Este passado recebeu do ilustre Raymond Aron a designação de Guerra Fria, mas
ela apenas merece essa designação para o Norte do globo, porque no Sul,
incluindo o fim do império euromundista, os conflitos foram gravíssimos,
incluindo o grave incidente, na história dos EUA, que levou à demissão do
general Mac- Arthur (1951), espécie de vice-rei dos EUA no Oriente, pelo
presidente Trumam, que quis evitar o uso da bomba atómica na questão da Coreia.
No fundo, alguns analistas caracterizaram a época como luta entre dois
impérios, sendo lembrada a exclamação de Mark Twain, vice-presidente da
Anti-Imperialist Legue, em 1900: "I am an anti-imperialist. I am opposed to having the eagle put its talons on any
other land..."
Entretanto, e não obstante os altos
ideais da ONU, o mundo em que nos encontramos está semeado de desigualdades,
com uma crise económica e financeira mundial e uma sucessiva manifestação de
Estados extrativos e Estados falhados. Aconteceu mesmo que o fim da Guerra
Fria, com a dissolução da União Soviética, fez sonhar os EUA com uma posição
singular de centralidade, de poder e de autoridade (Golub).
De facto, o que se verifica é que, do
que se queixou Eisenhower, o complexo militar-industrial alimenta o que
Dominique Vidal chamou guerra "nos quatro cantos do mundo".
Independentemente dos bons serviços que alguns organismos prestaram ao
desenvolvimento sustentado, à paz e à defesa dos direitos do homem, o mundo que
vai ser objeto dos deveres do secretário-geral, agora o Eng.º Guterres, está
longe não apenas dos objetivos legais como, vista a composição do Conselho de
Segurança e a variação das potências que o referido Conselho não acolheu,
poderá (deve) (art.º 99) "chamar a atenção do Conselho de Segurança para
qualquer assunto que em sua opinião possa pôr em perigo a manutenção da paz e
da segurança internacionais".
Dada a proeminência do direito de veto,
de facto o secretário-geral vai ter de exercer o "poder da voz"
contra "a voz dos poderes", para conseguir decisões que lhe permitam
reimplantar o humanismo, a eficácia dos valores que inspiraram os fundadores,
que respondam à multiplicação de críticas pela sua falta de capacidade para
sustentar e encarnar uma governança mundial (Delphine Placidi). Não obstante as
intervenções militares e cooperações com organizações regionais (Libéria, União
Europeia, NATO, Afeganistão, União Africana, Sudão, Darfur), a Carta não foi
plenamente aplicada, não teve as forças armadas necessárias, o estado-maior não
foi operacional, precisa de meios financeiros e humanos e sobretudo vontade
política global de reinventar o "mundo único", dando capacidade ao
PNUD.
Parece justo destacar o legado de Obama:
regularizou as contribuições financeiras devidas à ONU, apoiou inovando os
programas do Conselho dos Direitos do Homem, do Código Penal Internacional, os
fundos referentes às populações, às mudanças climáticas, aos objetivos do
milénio para o desenvolvimento, procurou a solução do conflito da Palestina, a
não proliferação do armamento nuclear e segurança respetiva, tendo sobretudo em
vista a situação do Próximo Oriente (Placidi). Que qualquer mudança na política
do Conselho de Segurança, sobretudo dos EUA, que contrarie a continuação do
programa de revitalização da ONU, será a primeira exigência da palavra do
secretário-geral, o único órgão pessoal com dignidade igual à dos órgãos
coletivos, e cuja autoridade, como a obtida e perdida no passado, consiga que o
"poder da palavra" vença a "palavra dos poderes". Esperança
concreta realizada, será o coroamento desejado à ação restauradora do novo
secretário-geral.
De outro modo, no que toca à exigência
primeira dos povos, que é a paz e a segurança da vida habitual, continuará a
ser a utopia cuja ilha não tem paradeiro sabido. Não é de mais insistir em que
a natureza individual do cargo de secretário-geral tem sobretudo a autoridade
que inspire e não o poder que se encontra sobretudo no Conselho de Segurança,
ele próprio não correspondendo já à real hierarquia das potências, acrescendo
que a definição de potência inclui mais do que o poder militar. E, mesmo
sabendo-se isto, não vai facilmente ser imposto e praticado que o poder é
funcional, isto é, para ser exercido a favor dos interesses da humanidade e não
dos pequenos interesses de cada uma das detentoras do poder de veto.
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