1. Aí está diante de nós o Evangelho do
Domingo V do Tempo Comum, Marcos 1,29-39, no seguimento imediato da proclamação
feita no Domingo passado (Marcos 1,21-28). De madrugada a madrugada. Depois de
entrarem [Jesus e os seus discípulos; ninguém como Marcos vincula Jesus aos
seus discípulos] em Cafarnaum, na manhã de sábado entra Jesus na sinagoga de
Cafarnaum e ensinava (Marcos 1,21). Ei-los agora que saem [Jesus e os seus
discípulos: verbo no plural] da sinagoga, e entram na casa de Simão e de André
(Marcos 1,29). Trata-se de um «relato de começo». Saindo da casa antiga,
entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro. A sogra de Simão está
deitada com febre. Jesus segura-lhe (kratéô) na mão (Marcos 1,31), expressão
lindíssima que indica no Antigo Testamento o gesto protector com que Deus
protege o orante (Salmo 73,23), Israel (Isaías 41,13), o seu servo (Isaías
42,6). E a sogra de Simão «levantou-se» (êgeírô), verbo da ressurreição, e
pôs-se a servi-los (diêkónei: imperfeito de diakonéô) de forma continuada, como
indica o uso do verbo no imperfeito. A sogra de Simão é uma das sete mulheres
que, nos Evangelhos, «servem» Jesus e os outros. Ela é bem a figura da
comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à
vida, gerada, protegida, guardada e edificada por Jesus no lugar seguro da casa
de Pedro.
2. À tardinha, já sol-posto, primeiro
dia da semana [o dia muda com o pôr do sol], toda a cidade de Cafarnaum está
reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os
seus doentes. Note-se que os demónios continuam impedidos de falar, exactamente
porque sabiam quem Ele era (Marcos 1,34). Pode parecer estranho este
silenciamento de quem sabe! Mas é exactamente para ficar claro que acreditar em
Jesus não é isolar uma definição exacta de Jesus, mas aderir a Ele e à sua
maneira de viver. E este afazer é trabalho nosso, não dos demónios.
3. Na madrugada do mesmo primeiro dia da
semana, muito cedo, de madrugada a madrugada, tendo-se levantado (anístêmi),
outra prolepse da madrugada da Ressurreição que já se avista no horizonte,
Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), mas os discípulos correm logo a
procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as
pessoas o querem ver e ter. Ninguém o quer perder (Marcos 1,36-37).
4. Mas Jesus desconcerta os seus
discípulos, e abre-lhes já os futuros caminhos da missão: «VAMOS, diz Jesus, a
outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente)
ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Importante e intenso dizer.
ANUNCIAR, verbo grego kêrýssô, é todo o afazer de Jesus, enche por completo o
seu programa e o seu caminho. Ora, ANUNCIAR, kêrýssô, é dizer em voz alta a
MENSAGEM que outro nos encarregou de transmitir. Aqui, o outro é Deus. Jesus é,
então, o MENSAGEIRO de Deus. O ANUNCIADOR, o MENSAGEIRO, não fala em seu
próprio nome, não emite opiniões. Fala em nome de Deus.
5. Prossigamos. Com aquele vamos [«vamos
a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos,
apontando-lhes já o seu futuro trabalho de ANUNCIADORES do Evangelho pelo mundo
inteiro. Mas é igualmente importante aquele TAMBÉM inclusivo [«para que também
ali anuncie o Evangelho»]. É como uma ponte que une duas margens. Se, por um
lado, proléticamente, aponta o futuro, por outro lado, analepticamente,
classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira «jornada de
Cafarnaum», em que o verbo ANUNCIAR (kêrýssô) nunca apareceu. Ficamos,
portanto, a saber que a toada do ANÚNCO do Evangelho é ensinar, libertar,
acolher, curar, recriar.
6. Jesus, o Médico divino, curou a sogra
de Pedro e muitos doentes. Eis o contraponto vindo hoje do Livro de Job
(7,1-7), o homem que dói e grita por socorro. Em nome do homem, Job procura um
sentido para a vida humana breve, frágil e nem sempre feliz e gratificante.
Pede a graça de uma mão. Os amigos aparecem, mas, em vez de servirem de
consolo, entretêm-se à procura de razões que expliquem a desgraça caída sobre
Job. E assim, em vez de consolarem Job, atiram-no para a vala do lixo do pecado
sem redenção e sem remédio. Já se vê que também só Deus poderá curar Job e todo
o humano frágil e dorido que ele representa. É para ele também o salutar
EVANGELHO de hoje. Para ele, e para nós. Bem vistas as coisas, todos somos
eleitos de Deus. E o eleito é sempre alguém que abre livremente a mão para
receber um dom.
7. Por causa de Jesus e à maneira de
Jesus, cai sobre Paulo também a graça e a missão de EVANGELIZAR (1 Coríntios
9,16-23). É neste caminho belo de EVANGELIZADOR que Paulo anda, mas não é por
sua iniciativa ou gosto. É «uma necessidade (anagkê) que lhe é imposta desde
fora (epíkeitai)» (1 Coríntios 9,16). Desde fora, isto é, desde Deus, contra
quem não vale a pena lutar (Actos 26,14). Sim, a vida nova de Paulo assenta
nessa derrota sofrida (katelêmphthen: aor. passivo de katalambánô) no caminho
de Damasco (Filipenses 3,12), que lhe é imposta por Jesus, que desequilibra
para a frente, e para sempre, a vida de Paulo (Filipenses 3,13-14). Sem esse
desequilíbrio para a frente, para o Evangelho, para Cristo, a vida de Paulo
começaria a arruinar-se, como indica a «fórmula de desgraça», introduzida por
aquela interjeição «Ai» (hôy hebraico; ouaí grego), que fecha o v. 16. Esta
inclinação para a frente traduz também a devotação de Paulo a todos (1
Coríntios 9,19-23), «tudo para todos» (1 Coríntios 9,22), «por causa do
Evangelho» (1 Coríntios 9,23).
8. O Salmo 147 mantém-nos atentos e
fiéis cantores das obras boas de Deus, que opera sempre em nosso favor,
debruçando-se sobre nós com amor providente, curando todas as nossas feridas,
as do coração e as do nosso corpo chagado. Mas sobretudo porque nos põe a
cantar, e cantar a Deus é bom e faz bem!
António Couto
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