“A palavra voa e a escrita fica.” 23 de
Janeiro de 1963 - 23 de Janeiro de 2016, 53 anos passaram sobre o início da
Luta Armada da Libertação Nacional, e o povo guineense se rememora ainda hoje
do heroico ataque contra o campo fortificado de Tite, sul do país, Região de
Quínara. O ataque que despertou ainda mais a consciência dos compatriotas e do
mundo foi perpetrado por um grupo de homens (guerrilheiros) sob comando do
camarada, Arafam “N’djamba” Mané que concedeu esta entrevista por ocasião da
comemoração do 38º aniversário do heroico acontecimento, que temos o prazer de
publicar nesta edição.
A acção relâmpago que se saldou com
baixas de ambos os lados, marcou a primeira façanha histórica dos Combatentes
da Liberdade da Pátria, militantes do grande partido PAIGC, que organizou e
dirigiu a luta armada que culminou com a proclamação unilateral da independência,
em Boé, leste do país, no dia 24 de Setembro de 1973.
O Defensor – O Coronel fez parte do
comando que em Janeiro de 1963 orquestrou o ataque contra o aquartelamento
fortificado de Tite, em Quínara, sul do país. O que é levou o vosso comando,
mal armado e inexperiente, a atacar esse quartel colonial?
Coronel Arafam Mané - O ataque contra o
aquartelamento de Tite foi realizado com poucas experiências militares, pois o
efectivo que participou nele, era constituído por um grupo de camaradas do
partido vindo de Conakry; populações locais munidas de algumas armas de fogo,
catanas, paus e pedras. O ataque que surpreendeu as tropas do exército colonial
muito temido pela sua barbaridade contra os autóctones, foi de facto executado
sem um comando designado. Foi um acto de coragem e patriotismo que, desde a
época dos nossos antepassados, sempre caracterizou a resistência dos guineenses
contra qualquer tipo de dominação.
Em termos de armamentos, tínhamos apenas
quatro (4) armas, uma pistola (1). Entreguei a os camaradas uma pistola e a
arma que eu tinha, e fiquei com uma pistola automática com a qual disparei o
primeiro tiro ao ar para assinalar os companheiros o início do ataque quando
estávamos no interior do quartel fortificado de Tite. Com esse disparo, os
camaradas entraram em acção utilizando todos os meios de combate que possuíam.
O estrondo das armas misturado com as vozes de comando dos guerrilheiros que
procuravam orientar melhor os companheiros para evitar perdas humanas, acordou
as tropas coloniais e despertou a atenção dos sentinelas.
A operação foi realizada com raiva
porque em 1962, fomos corridos pelos tugas. Este episódio aconteceu, depois de
termos efectuado uma sabotagem cortando as linhas telefónicas e os cabos
eléctricos daquela zona sul do país. Foi a partir das acções de sabotagem, que
a administração colonial e suas forças de defesa e segurança souberam da nossa
presença na área.
Em 1963 repetimos a mesma operação de
corte de linhas telefónicas e cabos eléctricos. Estas práticas que eram
prejudiciais para a comunicação e o funcionamento das instituições públicas e
militares, irritaram os colonialistas que começaram a pressionar as populações
com ameaças e torturas para obterem informações sobre os que eles chamavam
“terroristas”. No âmbito da repressão foram alargadas as redes da PIDE-DGS
(Polícia colonial).
O D – Na altura, a guerrilha já tinha
criado barracas a partir das quais coordenava as acções militares contra os
interesses coloniais?
Coronel ADM - Na altura ainda não tinha
constituído barracas. Às vezes alguns camaradas nossos saiam do sul iam até
Bissau cumprir missões do partido e regressar sem serem descobertos pelas
autoridades portuguesas, a PIDE e os seus agentes. Para além de Bissau, cidade
capital, mais controlada, os guerrilheiros também se infiltravam nas tabancas
partilhando refeições e outros alimentos com as populações sem que ninguém
desse conta ou soubesse quem eram.
Mas não pense que tínhamos homens
prontos para efectuar trabalhos de reconhecimento e outras missões arriscadas.
Não. Às vezes era eu, o meu guarda-costa e meu Adjunto, camarada, Fernando
Badinca, entre outros.
Foi assim que em 1962, nos instalamos na
tabanca de Cantongo a 3 km de Nova Sintra, a partir de onde movimentávamos até
as aldeias de Flac-An, Flac Mindé, Flac-Mim, Flora, Bunaussa... Às vezes
atravessávamos o rio íamos a Bolama e daí íamos para a tabanca de Uato para
entabular contactos com a população, com o régulo Oliveira Sanca, contactar
Jaime Sampa, Lai Canté e outros camaradas. São estes que nos enviavam jornais e
outros objectos de que precisávamos.
Tínhamos também contactos com o camarada
Rafael Barbosa, Aristides Pereira inclusive o senhor Eustáquio que ultimamente,
depois da independência teve problemas mentais. Foi assim que se iniciou a luta
armada de libertação nacional.
O D – Qual é a estratégia adoptada pela
guerrilha quando se sentiu ameaçada pela movimentação da força militar colonial
na zona?
Coronel ADM - Alguns tempos depois fomos
obrigados a abandonar esses locais, devido as acções do inimigo que, em termos
de material bélico, nos superava na altura. Este é o primeiro factor. O segundo
factor, é que abandonamos a zona para salvaguardar as nossas populações alvos
de torturas quando os tugas descobriam que a tabanca manteve contactos connosco
ou albergava os nossos camaradas.
Entretanto, quando nos retiramos de lá,
fomos instalar na tabanca de Calunca a partir da qual conseguimos ocupar todas
as tabancas da fronteira com a Guiné Conakry. Logo depois da ocupação daquelas
tabancas mandamos o camarada Malam Sanhá, para Conakry, para contactar os
membros da Direcção Superior do Partido e dar-lhes informações sobre a nova
situação.
A chegada de Malam Sanhá em Conakry
coincidiu com a chegada das primeiras armas provenientes do Reino de Marrocos.
Eram cerca de quatro a cinco armas de marca “Patchanga” que quando chegaram
foram distribuídas entre nós antes de voltarmos para o mato.
O D –A chegada das primeiras armas do
Reino de Marrocos às mãos da guerrilha, foi acompanhada de uma ordem superior
para atacar o quartel colonial de Tite?
Coronel ADM – Garanto-lhe que ninguém
nos tinha dito nem ordenado atacar o inimigo no quartel de Tite. Amílcar Cabral
não nos tinha dito nem ordenado atacar o fortificado quartel com três ou quatro
armas. Amílcar Cabral recomendou apenas que voltássemos para o mato visto que
estávamos armados. Mas, no entretanto, para assustar os colonialistas e também
para libertar os nossos companheiros encarcerados na prisão, decidimos assaltar
o quartel de Tite.
Eu me encontrava baseado em Nova Sintra
enquanto Malam Sanha estava na área de Cantona (Fulacunda), onde já se sentia
sufocado devido a falta de matas densas para se esconder melhor. Esta realidade
que representava um potencial risco para ele e seus homens, lhe obrigou a
abandonar o local e juntar-se a nós em Nova Sintra.
Recordo que Malam Sanhá chegou em Nova
Sintra, precisamente na altura em que nós já estávamos em plena preparação da
operação de assalto ao quartel de Tite. Aproveitamos logo a oportunidade para
apresentar-lhe a nossa ideia de assaltar as instalações militares de Tite e ele
concordou.
Portanto, uma vez a ideia acertada,
procedeu-se a distribuição de tarefas claras e concretas a cumprir por cada um
de nós. Assim, o camarada Malam Sanhá que já tinha sido militar no exército
colonial português, foi designado para destruir a caserna dos soldados,
enquanto o camarada Quémo Mané tinha como missão eliminar fisicamente o Major
Fabião, Comandante da força colonial em Tite. Quémo Mané, que era grande
caçador, tinha essa missão porque conhecia muito bem a residência do Major a
quem ia sempre vender carne de caça.
O camarada Dauda Bangura tinha como
missão rebentar as portas da prisão explodindo uma mina. Ele tinha feito um
treino militar na República Popular da China por isso tinha alguns
conhecimentos sobre as minas.
Eu fui encostar-me numa das esquinas da
caserna que devia ser atacada pelo camarada Malam Sanhá. Foi a partir dali que
disparei a pistola, o primeiro tiro que deu início ao histórico ataque da
guerrilha contra o quartel fortificado de Tite. Neste ataque, levamos connosco
um “djidiu” de cora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os
camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade. Mas este camarada com a
intensidade do fogo e a tentativa de resposta do inimigo, não desempenhou o seu
papel e acabou por desaparecer abandonando os instrumentos musicais.
Eu, a partir da posição que ocupava
gritava com força ao camarada Dauda Bangura dizendo-lhe “Dauda! Mina, mina,
coloque a mina no sítio indicado e faça-a explodir”. Eu gritava tanto, porque
não tínhamos experiência de guerra. Talvez foi por essa razão que não sentíamos
o perigo que pairava sobre nós assim como as consequências que poderiam advir.
O D – A que hora aconteceu o heróico
ataque?
Coronel ADM - O ataque foi realizado à
meia-noite de 22 para 23 de Janeiro de 1963. Quando terminou a operação
consideramo-la de positiva. Regressamos ao local de concentração. Durante o
assalto, o meu guarda-costas, Wagna Na Bomba, foi atingido por uma bala inimiga
e foi transferido para uma tabanca balanta onde recebeu tratamentos. Foi nessa
tabanca que formos informados da notícia que dava conta que o Capitão Curto,
mais conhecido no Sul pelo nome de “Chapa ou fogo”, prometeu queimar todas as
tabancas circundantes de Tite até a tabanca de Bacar Conté, caso se confirmasse
o ataque perpetrado pelo grupo de guerrilheiros contra o quartel de Tite.
Então, nessa circunstância, para evitar
que se concretizassem as intenções do Capitão Curto, salvar a nossa pele e a
vida das populações da área, resolvemos fazer uma emboscada na estrada que liga
Serra Leoa e Candjabela. Felizmente, o inimigo que prometeu transformar várias
aldeias de Quínara em chamas devido ao ataque perpetrado pelo comando de
guerrilha contra o quartel de Tite, caiu na nossa emboscada e foi atingido
pelas balas dos nossos camaradas e morreu pelas 14 horas do dia 23 de Janeiro
de 1963. O seu corpo foi no mesmo dia recuperado e transportado de avião para
Bissau. No dia 24 de Janeiro de 1963 dirigimo-nos para S. João com o intuito de
ir buscar o camarada Buscardini mas, infelizmente, não o encontramos. Assim,
resolvemos saquear o armazém da loja Gouveia levando connosco, entre outros,
muitos produtos alimentares. Levamos igualmente o empregado do armazém.
Alguns tempos após a operação fui
chamado em Conakry, onde funcionava a sede do Partido PAIGC, donde segui para a
República Popular da China para receber formação militar.
Nós nunca dissemos que iniciamos a
guerra contra os colonialistas portugueses com o ataque contra o quartel de
Tite; foi o próprio Amílcar Cabral quem o disse. Aliás, foi ele quem tornou
público o início da guerra entre os dias 27 e 28 de Janeiro de 1963. As armas
obtidas foram distribuídas a Malam Sanhá, Casimiro, Rui, entre outros chefes.
A pistola com a qual dei o primeiro
tiro, foi-me dada pelo camarada, Luís Cabral. Era uma pistola marca Walter que
recebi durante o período de mobilização. Foi assim que a luta armada começou na
Guiné e continuou sem parar até a proclamação da independência do país em
Setembro de 1973.
Em 1962, começamos a concentrar-nos no
mato. Mas a concentração era feita no maior dos segredos. Os nossos contactos
com algumas zonas, assim como com os homem grande, chamado Aniceto, que Amílcar
Cabral mesmo nos recomendou encontrar no sul realizavam-se sempre na
clandestinidade. Quando encontramos Aniceto, este nos confirmou que ele conhecia
pessoalmente o camarada Amílcar Cabral. A guerra começou assim de forma
espontânea. Foi assim que aconteceu em Angola e Moçambique.
O D – Como é que se alimentava a
guerrilha no principio da luta?
CADM - Éramos alimentados pela população
das tabancas do sul, pois na altura não tínhamos criado bases fixas. Mas, eu
pelo menos tinha uma base. Mas, apesar de não termos bases fixas, mantínhamos
contactos secretos com as populações da zona, que conheciam muito bem e
secretamente os pontos habituais de encontros com a guerrilha. De facto, quem
sabia da existência desses pontos de encontros eram os chefes de tabancas e
“donos de morança” (chefes de família). A noite, para dormir mudávamos de
lugares, escolhendo locais mais seguros e que ninguém conhecia.
Uma vez fui até a cidade de Bolama onde
realizei reuniões com alguns camaradas no cemitério de Waque. Depois da reunião
fui pernoitar junto das instalações dos Bombeiros. A única pessoa que sabia
disso era o camarada Sabino Cabral. Quando amanheceu, fui sentar-me no jardim
onde vi passar as tropas coloniais que, tendo informação da minha presença,
procuravam capturar-me. Depois de passarem, abandonei o jardim e fui
tranquilamente ter com Sabino Cabral a quem comuniquei que ia atravessar o rio
no mesmo bote com os tugas; mas ele rejeitou a minha ideia dizendo que era
perigoso. Mas assegurei-lhe que podia faze-lo sem qualquer problema, porque nem
um tuga me conhecia. Na altura, eu tinha 17 anos de idade e não tinha medo de
nada. Não obstante o perigo, consegui concretizar a minha ideia de atravessar
com tugas no mesmo bote. Quando atravessamos o rio, as mesmas tropas coloniais
me levaram de boleia até Nova Sintra.
O D – Quantos guerrilheiros participaram
nesta arriscada e histórica operação?
CADM - Falando do efectivo que realizou
a operação contra o quartel de Tite, era cerca de 150 pessoas, gente que não
tinha nenhuma preparação militar nem tão pouco conhecimento nem noção da
guerra. Quem tinha essa noção eram nós que viemos de Conakry, éramos poucos.
Recordo-me ainda de alguns camaradas que
participaram na operação tais como o actual Major Québa Djam Djassi, Seco Turé,
Seco Djassi, Bemba, Wagna Na Bomba, entre outros. Mas todos eram elementos da
população, não havia militares entre nós. O ataque durou praticamente uma hora.
Quanto a capacidade combativa do inimigo, ela foi de cem por cento, o que lhe
faltava no momento da acção era a experiência. Eles eram homens bem treinados
mas não tinham grandes experiencias porque talvez, nunca se tinham envolvido em
situações desse género.
Em termos de equipamentos os tugas
tinham armas, munições, transportes, meios de comunicação, fardamentos e
recebiam treinos militares que na altura, nós não tínhamos. O que tínhamos era
a convicção de conquistar a independência nacional.
O D – Mas porque decidiram atacar o
quartel de Tite quando não tinham meios bélicos suficientes e adequados?
CADM – Para além deste quartel se
encontrar na zona 8, que era uma área que eles controlavam, no local estava
encarcerado um número importante de militantes do nosso grande partido, o
PAIGC. Por outro lado resolvemos atacar o quartel para alertar os tugas sobre a
nossa presença naquela aérea. Antes do ataque deste quartel as relações dos tugas
com as populações eram uma relação de terror.
Não sei se uma vez ouviu falar do
Capitão Curto mais conhecido no seio da população por “Chapa ou Fogo”. Mas o
que é chapa ou fogo? Quando regressamos de Conakry viemos com emblemas e
bandeirinhas como prova da nossa militância no PAIGC. A “chapa” e a bandeirinha
demonstravam também que, quem tinha o emblema era da célula do partido, PAIGC.
Recordo que em 1962 os emblemas (“chapas”) foram distribuídos em grande
quantidade no sul.
A “chapa” era um emblema que se
entregava secretamente aos militantes do partido na clandestinidade. Porque no
seio da população daquela área, havia pessoas que estavam contra o PAIGC,
algumas delas denunciavam junto dos tugas os compatriotas que tinham ligações
com o partido e possuíam o emblema conhecido por “chapa”.
Então para descobrir os militantes do
partido naquela zona sul do país, o Capitão Curto, em certos dias agrupava os
habitantes de uma aldeia num local público, e a presença de todos era
obrigatória. Quando os habitantes chegavam no local do encontro, eram
imediatamente rodeados por militares coloniais armados que os ordenavam a
ficarem de pé e com as mãos na cabeça. Depois o Capitão Curto dizia: “o que
poderá salvar-vos aqui é a entrega de “chapa” (emblema). Caso contrário, serão
mortos por fuzilamento.” Pois de forma irónica ele dizia assim: “Chapa ou
Fogo.”
Essa era a estratégia que sempre usava
para descobrir os militantes do partido. Então, quem tivesse medo das ameaças e
entregasse o emblema era imediatamente preso e torturado. E quem ousava
resistir contra as ameaças era fuzilado publicamente no local.
Portanto, o retrato de todas estas
práticas revela que as relações entre os tugas e as populações locais do sul
eram relações de terror, marcadas por torturas, menosprezo, matança e
humilhações. Com esse tipo de comportamento as populações viviam sempre
amedrontadas.
Então, do meu ponto de vista, para
tranquilizar os espíritos e manter a nossa confiança no seio das populações que
sofriam por causa do partido, pensei que era de facto imperativo desencadear a
operação contra o quartel de Tite. Com a realização da primeira acção as
populações ganharam a confiança no partido e juntaram-se a nós.
O D – Qual foi a impressão dos tugas sob
esde ataque?
CADM - Foi uma grande surpresa para os
tugas. Eles não sabiam, nem podiam imaginar que nós tínhamos armas e que um dia
os atacaríamos. Por outro, esse acontecimento foi uma coincidência histórica,
com o que aconteceu em Angola e em Moçambique.
No que diz respeito as dificuldades
encontradas antes da operação, elas eram de ordem logística, porque não
tínhamos munições nem enfermeiro e nem transportes. Não tínhamos nada.
Realizamos a operação graças a nossa coragem e patriotismo. Por outro lado,
devido a falta de experiência, a operação foi feita sem que tivesse havido
reconhecimento prévio do terreno. Somente uma mulher grande de Quínara que foi
até o interior do quartel observar os movimentos dos militares coloniais.
O D - Mas como é que conseguiram
penetrar facilmente no interior do quartel?
CADM - Foi num passeio normal mas
durante o qual evitamos fazer barulhos. Uma vez no interior das instalações
coloniais, eu fui encostar-me no ângulo de uma das casernas, enquanto o
camarada Quémo Mané foi emboscar-se em frente da porta da residência do Major,
Comandante da unidade.
A nossa missão podia ter maior sucesso
se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não
obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada custe o
que custasse. Considero que o acto foi uma aventura que serviu de alerta para
os tugas; porque queríamos que soubessem que voltamos com força para a zona.
Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força
palpável. Mas essa acção desorientou as tropas coloniais que a partir daquele
momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.
No entretanto, após esta corajosa
operação, mais de 300 jovens voluntários aderiram ao movimento de guerrilheiros
para, do nosso lado, lutar contra os colonialistas portugueses. Não havia armas
nem tão pouco baionetas mas esta realidade não desanimou os jovens cujo número
de aderentes crescia constantemente na minha barraca.
O D – Coronel, o que pensa que poderia
acontecer durante a operação se o vosso comando inexperiente tivesse armas de
fogo suficientes?
CADM - Penso que a falta de armas ou a
sua insuficiência na altura da operação de Tite foi uma coisa positiva, porque
se houvesse muitas armas, isso teria talvez constituído um golpe fatal para o
nosso próprio comando que, certamente, devido a falta de experiencia sobre o
uso de armas poderia provocar vítimas nas nossas fileiras mesmo, como referiu o
célebre cantor guineense José Carlos Shwart,“caçador desconhecido falhou e
virou a sua arma contra a aldeia”.
Se não fosse a falta de experiência,
teríamos ocupado Tite naquele dia, porque as tropas coloniais surpreendidas
pela operação tinham já fugido. Do nosso lado, a única baixa do assalto foi o
meu guarda costa Wagna Bomba, natural de Gambala, que sucumbiu atingido por
balas do inimigo. Do lado do inimigo, não posso avançar um número preciso de
vítimas mas deve ter sido considerável, porque o camarada Malam Sanhá conseguiu
lançar uma granada dentro da caserna onde dormiam soldados. Foi um sucesso,
camarada jornalista.
Portanto, depois da operação em Tite, os
ataques da guerrilha se multiplicaram, alastrando-se para os diferentes pontos
do sul.
A notícia sobre o início da luta armada
contra os colonialistas portugueses, como já disse anteriormente foi tornada
pública por Amílcar Cabral em Londres (Inglaterra), numa Conferencia de
Imprensa. Em África, a notícia foi imediatamente publicitada pelas Rádios de
Conakry, Rádio Nacional do Senegal e mais tarde pela “Rádio Libertação” do
PAIGC.
A divulgação dessa notícia nos órgãos de
comunicação social levantou o moral no seio dos camaradas e a vontade de lutar
fortemente para libertar o nosso povo. Enquanto para os tugas, a divulgação da
notícia constituiu uma dor de cabeça.
O D - Mas no fundo qual foi a reacção de
Amílcar Cabral logo que foi informado do ataque contra o quartel de Tite?
CADM - Foi positiva. Fui logo promovido
ao posto de Comandante Regional. E, antes da minha ida para a República Popular
da China, que ocorreu em Abril de 1963, consegui mobilizar um número
considerável de camaradas para a luta. Tive inclusive contactos com Bissau na
pessoa de Rafael Barbosa que na altura era grande membro do Comité Central do
PAIGC.
FACTOS HISTÓRICOS INESQUECÍVEIS
São recordações de encorajamento, isso
porque depois da operação as nossas populações chegaram a conclusão de que,
afinal, nós naquela altura não podíamos fazer nada porque não tínhamos armas.
Reconheceram por outro lado, que nós podíamos ser bons soldados se tivéssemos
armamento. Depois dessa acção, passamos a receber géneros da população e
recebemos também medicamentos.
Houve igualmente o congresso de Cassacá
que deu o acento tónico que a população esperava do grande partido. O congresso
permitiu acabar com as barbaridades praticadas por alguns camaradas,
reorganizar a nossa luta armada, entre outros. O povo voltou a ganhar a
confiança no partido, nos seus dirigentes e no destino da Luta de Libertação
Nacional.
Mas a maior satisfação que tenho é,
precisamente, o facto de ver hoje os camaradas que ontem eram camponeses
analfabetos que tinham como vestuários, “lopé” (tanga), panos rodeados no corpo
com os pés descalços, tornarem-se agora grandes oficiais das Forças Armadas
Revolucionárias do Povo (FARP), outros são Engenheiros, Aviadores (Pilotos),
Médicos, Deputados, Condutores, pilotos de barcos...
Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo
que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se
morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida
de um camponês. O f ilho do camponês é sempre condenado na sociedade dos
intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países
socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações
palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.
Biografia do Comandante Arafam N’djamba ManéO Comandante Arafam “N’djamba” Mané nasceu no dia 29 de Setembro de 1945, em Bissau, filho de Lassana Mané e de Nhalin Cassama, faleceu no dia 4 de Setembro 2004, em Madrid, Espanha num hospital onde recebia tratamentos médicos.Coronel N´djamba Mané que militou muito cedo no partido PAIGC, chegou em Conakry, República de Guiné em 1961, onde já se encontravam o camarada Amilcar Cabral e outros militantes que também deixaram Bissau para se instalar ali e dirigir a Luta Armada de Libertação Nacional.
Após a proclamação da independência do país em Setembro de 1973, Coronel Arafam N´djamba Mané ocupou varias funções entre as quais de Chefe de Casa Civil da Presidência da Republica, de Director Geral da farmácia Farmedie, de Governador (sucessivamente) das regiões de Gabú e Bafata, de Ministro da Defesa Nacional, de Ministro dos Combatentes da Liberdade da Pátria. Foi Deputado da Nação durante vários mandatos legislativos, Membro do Comité Central, Membro do Bureau Politico do PAIGC e também Membro do Conselho de Estado durante o mandato presidencial de Koumba Yala.
Esta entrevista foi concedida em 2001 ao
Jornal “O Defensor” no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da
Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta
armada de libertação nacional para a independência total da Guiné-Bissau do
jugo colonial.com as FARP’s
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