«Escutar Jesus, reconhecendo que a razão humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do mistério que revela outros horizontes da vida»
Após a crise de Cesareia de Filipe,
fruto do diálogo tenso de Jesus com o grupo dos apóstolos, a relação entre eles
fica abalada. A opção de Jesus é clara: avançar para Jerusalém, sofresse o que
sofresse, mesmo a morte por condenação, enfrentar as autoridades religiosas e
civis, reafirmar o amor ao Reino de Deus e à verdade do ser humano, provocar um
novo estilo de vida em convivência solidária com todos. A dos discípulos,
liderados por Pedro, também é clara: ver Jesus triunfar e ser senhor,
partilhando com eles a sua vitória. A discórdia é total e mostra-se sobretudo
nos meios a usar, nos passos a dar, no embate final a travar (de que será um
símbolo o episódio da espada no Jardim das Oliveiras.
Passaram seis dias, informa Marcos,
indicando o tempo decorrido para os discípulos “digerirem” o anúncio da opção
de Jesus. Não será tanto a duração temporal que o relator quer realçar, mas a
intensidade psicológica e espiritual da experiência vivida. Tempo suficiente
para a crise ser digerida. Tempo que termina com um acontecimento excepcional,
a Transfiguração, de que fala o evangelho de hoje (Lc 9, 28-36).
Jesus resolve antecipar um vislumbre da
sua Ressurreição. Toma consigo Pedro, Tiago e João. Sobe à montanha, o Tabor.
Enquanto ora, transfigura-se. Altera o aspecto do rosto e faz brilhar as vestes
com brancura inigualável. Conversa com Elias e Moisés que, entretanto, lhe
aparecem. É identificado por uma voz que se faz ouvir com autoridade: “Este é o
Meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”.
Lucas, o narrador, faz notar o que
acontece durante a oração. A relação de Jesus com Deus Pai é tão íntima e
profunda que se torna visível no rosto e nas vestes. Simultaneamente aparecem
Moisés e Elias, símbolos das escrituras litúrgicas, e conversam sobre o futuro
próximo: a morte de Jesus. Fazem-se eco da tensão de Cesareia, rememoram o que
está escrito nos livros sagrados, que destacam a figura do Messias e o que para
ele converge. Sinalizada e anunciada esta missão, retiram-se, deixando o
“espaço” todo a Jesus. De facto é o centro do processo de salvação que se
visualiza no quotidiano da vida e nas celebrações sacramentais.
Do monte Tabor a Jerusalém há um longo
percurso a fazer. Geográfico, mas sobretudo psicológico e espiritual. E em
todos os passos é preciso escutar Jesus: nos silêncios e nas palavras, no olhar
e no sorrir, no estar e no ausentar-se, nos gestos de proximidade e de entrega.
O desenho do seu perfil perpassa por muitos traços que lhe dão um colorido que
resplandece na cruz da ressurreição.
Tendo como referência o percurso dos
discípulos, podemos apresentar alguns traços do nosso caminho espiritual,
especialmente no tempo quaresmal. Escutar sempre Jesus, mas sobretudo quando
temos o nosso espírito nublado pelas dúvidas e incertezas, pelas vozes
gritantes na arena pública e pelos silêncios roedores das redes sociais, pelos
impulsos decorrentes da natureza descontrolada e pelos sonhos cruzados da
fantasia libertina. Ele é luz, paz, verdade (salmo).
Escutar Jesus, reconhecendo que a razão
humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do
mistério que revela outros horizontes da vida. Os discípulos discutiam o que
queria dizer “ressuscitar dos mortos”. Esta discussão estará sempre em aberto.
Jesus, porém, indica-nos o caminho para a resposta certa. Indica, percorre e
faz, deixando a “porta” franqueada.
Escutar Jesus, valorizando a consciência
humana de toda a pessoa, independentemente da condição social ou étnica, e
ajudando-a a limpar de toda a interferência indevida para ser livre na sua
opção pela verdade do ser e do agir. Assim a dignidade natural de cada um/a
brilhará na sinfonia das criaturas e do universo. A melodia da cruz far-se-á
ouvir de novo na confiança filial: “Tudo está consumado!”.
As monjas de São Bento de Montserrat
fazem um bom resumo da mensagem do Evangelho da Transfiguração no seu
powerpoint desta semana. Eis alguns pontos da sua reflexão. Com fé, podemos ver
Jesus transfigurado em cada pessoa. A luz é sempre mais forte do que as nossas
obscuridades. Transfigurar-nos é viver o Evangelho e ter olhos de profeta. Só
viveremos a Transfiguração, se aprendermos a levar uma vida transformada: da
indiferença à solidariedade e da amargura à alegria. Ver Jesus transfigurado é
preparar o escândalo de o ver desfigurado na cruz. A nossa missão é descobrir e
reconfigurar a sua nova fisionomia em cada rosto humano. É abraçar a paixão do
amor como resposta à sua doação incondicional por nós. Há tanto a fazer por
amor, não achas!
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