"A tentação do pão fácil e abundante acompanha a história da humanidade. E dá origem aos mais diversos conflitos e calamidades, deixando em aberto a urgência gritante de cuidar da terra, de organizar o trabalho, de promover políticas adequadas."
“Tu és o Meu Filho Amado”, proclama a voz
vinda do Céu, enquanto Jesus estava a rezar após o baptismo. Simultaneamente,
outros sinais se manifestam a anunciar a identidade do recém-baptizado. Humano,
entre os humanos, é-lhe reconhecida a sua realidade divina, a de Filho Amado em
Quem o Pai se revê e compraz. Integralmente humano é simultaneamente
integralmente divino e totalmente possuído pelo Espírito Santo. Vive em si esta
união, sem renunciar a nada que lhe é singular. Por isso, vai enfrentar duras
provações ao longo a vida, que São Lucas condensa no relato que, hoje,
proclamamos (Lc 4, 1-13) e narra de forma bela e simbólica.
A tentação de Jesus tem várias faces, mas
é sempre a mesma: Realizar a sua missão, fugindo da normalidade da vida,
recorrendo a meios diferentes dos que assume por opção livre. Faces que o
deserto da vida manifesta em oportunidades provocatórias, que o evangelista
relator, designa por Diabo ou seja por aquele que divide e separa.
Jesus vence as tentações protegendo a sua
humanidade “que é aquilo em que consiste a imagem e a semelhança da criatura
com o Criador, e é vencida com a obediência a Deus na humanidade concreta,
frágil, e mortal, afirma Manicardi no comentário a esta passagem; e prossegue:
“Jesus, por honestidade em relação a Deus, recusa-se a pôr Deus onde facilmente
o homem o colocaria, isto é, no miraculoso, no prodígio, no espetacular, no
tranquilizador, no sagrado, naquilo que se impõe”. E adianta em conclusão:
“Assim protege também a imagem revelada de Deus sem lhe perverter ou deturpar o
rosto”.
Lucas configura bem a experiência de
Jesus, após o baptismo: Cheio do Espírito Santo, retira-se das margens do rio
Jordão, habita no deserto durante quarenta dias onde sofre os assaltos do
tentador.
Mostrando um profundo conhecimento da pessoa
de Jesus e da missão de que é portador, o Diabo escolhe habilmente os pontos
nevrálgicos a atacar: A fome, a ganância, o êxito fácil; pontos muito sensíveis
para qualquer ser humano, e onde facilmente pode ceder. Pontos que condensam as
três aspirações da vida corrente: alimentar-se convenientemente, possuir o
indispensável a uma vida digna, saber relacionar-se na verdade, sem outras
escórias. Daí, a delicadeza da questão.
Escolhe os pontos e introduz cada um com o
recurso a uma dúvida pedagógica que precisa de ser resolvida: “Se és Filho de
Deus”. Jesus percebe a insinuação e afirma a humanidade da sua situação, a
natureza própria da criação e o valor do seu funcionamento normal. Não é com
pedras que se faz pão, nem com ditos fáceis, mas com trabalho humano que
observa o propósito do Criador e do concurso da técnica.
A tentação do pão fácil e abundante
acompanha a história da humanidade. E dá origem aos mais diversos conflitos e
calamidades, deixando em aberto a urgência gritante de cuidar da terra, de organizar
o trabalho, de promover políticas adequadas. Estes seriam alguns pontos da
resposta de Jesus a quem, invocando motivos religiosos, quisesse ver resolvido
tamanho drama.
A história do pão, alimento da humanidade,
tem duas faces principais: a fome dos pobres e a abundância dos ricos, a
“forretice” egoísta e a partilha generosa e solidária, o medo do amanhã e a
confiança no hoje de uma fraternidade onde outro mundo é possível e necessário.
As organizações humanitárias, com especial relevo para as religiosas,
apresentam um historial digno de registo e de louvor. À sua volta surgem
práticas de grande valor, designadamente a esmola e o jejum voluntário,
enquanto privação de bens, mesmo necessários, para partilhar com quem precisa e
promover os que podem evoluir.
O Papa Francisco vem lembrar-nos que
"a 'quaresma’ do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação
para fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus. Que a nossa
Quaresma seja percorrer o mesmo caminho, para levar a esperança de Cristo
também à criação."
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