«Hoje, sabemos que o jejum e a abstinência contribuem em grande medida para a saúde e até para a beleza. Quanto à espiritualidade, não há dúvida. Significativamente, a sabedoria de todas as religiões esteve sempre aberta ao jejum sadio.»
Reflexão do Padre e Professor de Filosofia, Anselmo Borges no DN
1. Uma ilustre Catedrática da Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto entrou em contacto comigo, porque queria
saber algo sobre a relação entre o jejum e a espiritualidade.
Lembrei-me então de que estamos na
Quaresma. Ela é mais para os católicos, que durante 40 dias se preparam, pelo
menos, deveriam fazê-lo, para a festa que constitui o centro do cristianismo, a
Páscoa. De qualquer forma, animam-na ou devem animá-la valores que são
universais, de tal modo que poderíamos fazer a pergunta: como seria o mundo, se
tivesse anualmente a sua Quaresma, tendo na sua base esses valores: jejum,
abstinência, oração, silêncio, esmola, sacrifício, conversão?
2. O que se segue é uma breve reflexão que
tenta responder a esta pergunta. Começando pela urgência de um retiro. De
facto, a Quaresma refere-se aos 40 anos que os judeus passaram no deserto a
caminho da Terra Prometida e aos 40 dias que Jesus esteve no deserto, em
retiro, preparando-se para a sua vida pública, na qual o centro seria a
proclamação, por palavras e obras, do Evangelho, a mensagem da salvação de Deus
para todos os homens e mulheres.
Aí está: retirar-se para meditar e
reflectir. O que mais falta faz hoje. Quem se retira para fora do barulho e da
confusão do mundo, para meditar e reflectir, ir mais fundo e mais longe, ao
essencial? O sentido dos 40 anos e dos 40 dias: a libertação da opressão e da
escravidão, a caminho da liberdade e, consequentemente, da dignidade. Para a
felicidade, evidentemente.
Neste contexto, os valores da Quaresma.
2. 1. Aí está o jejum. Diz o Evangelho que
Jesus jejuou durante 40 dias e 40 noites e teve fome. O diabo — é uma maneira
de figurar a tentação — tentou-o. Jesus respondeu-lhe: “Nem só de pão vive o
homem, mas de toda a palavra que vem de Deus”.
Jejum e espiritualidade? Quem é que,
andando em permanentes comezainas e bebedeiras, se vai sentar para meditar e
continuar a escrever ou de outro modo qualquer realizar uma obra, entregar-se
às coisas do espírito? São Paulo preveniu, na Carta aos Filipenses, contra
aqueles cujo “fim é a perdição, o seu Deus é o ventre e gloriam-se da sua
vergonha”. E alerta contra os beberrões e a sua degradação.
Mas o jejum não tem que ver apenas com a
temperança no comer e no beber. Tem de haver jejum de tanta vaidade ridícula,
jejum de tanta insensatez falaz, de tanta cobardia envergonhada, de tanta
voracidade egoísta... Ao jejum está ligada a abstinência, que não é só da
carne. É preciso abster-se da injustiça, das mentiras, dos interesses
partidários e pessoais colocados acima dos interesses do bem comum, abster-se
das medidas e dos programas político-partidários eleitoralistas com promessas
que se sabe não vão ser cumpridas, de programas televisivos sem sentido e
deletérios que degradam nomeadamente a mulher. E aí está uma das contradições
brutais do nosso tempo, por causa das audiências e, em última análise, da
idolatrização do deus Dinheiro: por um lado, e bem, há toda uma campanha para
defender a mulher, mas, por outro lado, ela é humilhada concretamente nesses
programas...
Abster-se da corrupção... O Papa Francisco
acaba de pedir uma “política sã”, alertando contra a corrupção: “A corrupção
degrada a dignidade do indivíduo e destrói todos os ideais bons e belos. Com a
ânsia de lucros rápidos e fáceis, na realidade empobrece a todos, minando a
confiança, a transparência e a fiabilidade de todo o sistema”. A receita: “transparência
e honestidade” para reconstruir “a relação de confiança entre o cidadão e as
instituições, cuja dissolução é uma das manifestações mais sérias da crise da
democracia.”
Hoje, sabemos que o jejum e a abstinência
contribuem em grande medida para a saúde e até para a beleza. Quanto à
espiritualidade, não há dúvida. Significativamente, a sabedoria de todas as
religiões esteve sempre aberta ao jejum sadio.
2. 2. A oração. Para colocar o ser humano
em contacto com o Mistério último da realidade e da vida. Dialogar com o mais
fundo da Vida. Estar ligado ao Fundamento, à Fonte, ao Sentido último. Para se
não perder na dispersão, completamente desorientado, desorientada, sem
referências, perigo maior do nosso tempo.
2. 3. Mas a oração e o que é essencial
exigem o salto para fora do barulho ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num
tempo em que se é invadido e esmagado pelo tsunami das informações, entrando no
mundo caótico da dispersão e da fragmentação, da “agitação paralisante e da
paralisia agitante”, segundo a expressão do famoso bispo do Porto, D. António
Ferreira Gomes, é urgente parar, fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim, ouvir
o silêncio. No meio da vertigem dos vendavais de palavras em que vivemos, que
nos atordoam e paralisam, ouvir outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio. Só
depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras
novas, seminais e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as
palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia,
senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária que fala no silêncio?
Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio.
Quem a ouve? Ouvir o quê? Ouvir música, a grande música, aquela que diz o
indizível e nos transporta lá, lá, ao donde somos e para onde verdadeiramente
queremos ir: a nossa morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o mártir
da Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a
retórica sofística com a arrogância da ignorância e a urgência da busca da
verdade. Falava, mas só depois de ouvir o seu daímon, a voz do divino e da
consciência.
O grande filósofo A. Comte-Sponville é
partidário de um “ateísmo místico”, no quadro de “uma espiritualidade sem
Deus”. Constituinte dessa espiritualidade é precisamente o silêncio. “Silêncio
do mar. Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta
calar-se, ou, melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é
outra coisa), para que só haja verdade, que todo o discurso supõe, verdade que
os contém a todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da
verdade.”
O problema está em que já Pascal, nos
Pensamentos, se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa,
que é não saber permanecer em repouso num quarto.” Hoje é ainda pior do que no
tempo de Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Por isso, é preciso constantemente
pedir com Sophia de Mello Breyner: “Deixai-me com as coisas/Fundadas no
silêncio.”
2. 4. Outra característica da Quaresma era
a esmola.
Cá está. Quem fizer silêncio para ouvir o
silêncio, também ouvirá os gemidos dos pobres, os gritos dos explorados, dos
abandonados, dos que não podem falar, das vítimas das injustiças. E perceberá
que se não pode dar como esmola o que pertence fazer como justiça.
E volta-se à corrupção e ao roubo e às
injustiças estruturais e aos Bancos que abriram falência e que mataram vidas
inteiras de gente que trabalhou e que se sacrificou e que poupou o que pôde e o
que não podia e que, no fim, ficou espoliada do pouco que tinha... E, tirando o
facto de os contribuintes continuarem a pagar até essas falências e roubos,
mesmo que se minta dizendo que não custará aos contribuintes um cêntimo
(afinal, quem é o Estado?), não acontece nada. Alguém mete a mão na
consciência? Não. Porque já não há consciência... Onde estão os valores da
honra e da dignidade?
E ainda perguntam para que poderia servir
uma Quaresma para o mundo, incluindo para políticos e banqueiros?
2. 5. O sacrifício. Digo sempre: o
sacrifício pelo sacrifício não vale nada. Mas é preciso, a seguir, gritar bem
alto, num tempo em que parece que só resta o hedonismo, o prazer imediato,
confundindo a felicidade com a soma de prazeres: Nada de grande, de valioso, de
humanamente digno se consegue sem sacrifício. Quem quiser realizar uma obra
valiosa, viver um grande amor, realizar-se a si mesmo na dignidade livre e na
liberdade com dignidade tem de saber que isso não é possível sem sacrifício.
Aliás a palavra sacrifício di-lo no seu étimo: sacrum facere: fazer algo
sagrado.
3. O que seria o mundo depois de uma
Quaresma autêntica? O nosso mundo, o mundo de cada uma e de cada um? Dar-se-ia
uma conversão, palavra-chave da Quaresma, que significa mudança de vida, com um
novo horizonte de compreensão da existência, do mundo e da transcendência.
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