A
Ética e a Moral como limites ao exercício dos direitos subjectivos e das
prerrogativas individuais dos sujeitos
A desobediência a uma norma da ordem moral
tem a sua sanção específica ou castigo na desaprovação que os nossos semelhantes
dão ao agente de tais actos. A atitude humana na base da ordem concertada,
recebe dos nossos semelhantes, a aprovação.
O Homem, integrado numa família, num clã,
numa tribo, aceita a ordem que nele se estabelece. Nesse sentido há sempre
atitudes humanas na base da ordem concertada. Mas a hodierna eminência do
indivíduo em detrimento da comunidade, tem-nos levado a verificar ou encarar a
excepção com alguma regularidade. É assim que se ouve falar da permissive
society, brandos costumes e, impressionantemente, em capitulação face ao
anti-ético.
O Direito, que tem como sua função
primária, reger as relações entre as pessoas, numa dada comunidade, de acordo
com os valores desta, tem um papel, sobremaneira, importante, quanto a este
assunto, pelo carácter coercitivo que lhe é insíto.
Como princípio o ser-humano é livre, mas
esta deve ser entendida menos como um valor absoluto do indivíduo do que um
instrumento para o desenvolvimento do ser-humano na comunidade. Por exemplo,
não repugna a ninguém que a liberdade de circulação nas ruas não chega ao ponto
de conferir à pessoa o poder de propositadamente chocar contra os outros
transeuntes. É neste sentido que o Direito traça limites ao exercício dos
direitos subjectivos e às prerrogativas individuais, que confere ás pessoas.
Algumas vezes, a lei, define o alcance próprio de um direito subjectivo ou
prerrogativa individual, noutras é fora do que é estritamente jurídico aonde
devemos procurá-lo.
II
O Direito e a Moral não são dois
compartimentos estanques e isolados, antes se interpenetram reciprocamente.
Quero dizer que inclusive o Direito, tal como hoje o conhecemos, como uma
herança dos romanos da antiguidade, podemos dizê-lo com a firmeza de quem ronda
uma tautologia, se constituiu na base da ordem concertada.
Mos moris era a palavra latina para
significar as práticas que vinham dos mais velhos e que adquiriam na comunidade
a convicção de obrigatoriedade, de tal forma que era esta a principal fonte de
direito da Roma Antiga. Mais tarde, nos primeiros séculos da era cristã, mos
moris, cristianizou-se e distinguiu-se do consuetudo, passando a significar
apenas aqueles costumes que pelos valores cristãos se consideravam bons. A
História do Direito ensina-nos que a um dado momento passou a ser a Lei, como a
emanação da vontade do soberano, a ter o título de principal fonte do direito.
Hoje, Moral, num modesto bosquejo, pode ser entendida como um valor que tem que
ver com a relação entre os comportamentos dos seres-humanos e uma entidade
superior, um Big Brother, donde resultam normas, condutas, obrigatórias num
sentido religioso – com a palavra ‘religião’ aqui entendida no seu significante
amplo de ‘religação’.
A lei refere-se directamente à Moral, por
exemplo, no art. 128.º do Código Civil, mas a maior das vezes refere-se a ela
pelo conceito de bons costumes.
Devido ao princípio constitucional da
liberdade de religião, resultante da evolução da comunidade, a lei deve ser
laica e a aplicação do Direito também. Então qual o critério que deve ser usado
para se aferir dos bons costumes? Em resposta a esta pergunta, tem entendido a
doutrina mais pertinente, que os bons costumes são uma noção variável com o
tempo e o lugar, que abrange o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas
honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e numa determinada
circunstância. Nesta revela-se a prevalência da concepção sociológica dos bons
costumes, que, orientada pela lógica, procura o respectivo conteúdo do termo,
na análise da opinião socialmente dominante que assim aceita a sua natureza
variável e contingente, sobre a concepção idealista dos bons costumes, de cariz
filosófico ou religioso, isto é, orientada por um ideal divino ou humano,
oposta à mera aceitação das práticas usuais, reagindo sobre elas.
Ao aceitarmos a concepção sociológica dos
bons costumes, reportamo-nos menos á moral que se entende dever ser observada
do que á moral que se observa e se pratica. É assim que, consequentemente,
temos de falar da Ética.
A Ética é uma condicionante numa dimensão
interior, que tem reflexos no exterior. Na definição de Del Vecchio, Ética é a
apreciação subjectiva do como se deve agir, uma orientação interior que
considera as actuações do Homem não como escravo da ordem dos motivos, Homem
denominador empírico (homo phaenomonous) determinado pelas afeições ou paixões
animais, mas como um ser racional, pensante.
A Ética, difere da Moral, ao revelar-se,
precisamente, nas relações intersubjectivas tout court, ou seja,
consubstancia-se em certos deveres para com a outra parte da relação que não
incluem deveres para com uma entidade superior. É o que se verifica no anátema
que se levanta contra quem viola uma norma moral e que não acontece, ou não é
tão grave, contra quem viola um suposto dever ético. Por exemplo, omitir não é
tão grave quanto mentir. Sendo o dever de lealdade um dever que se tem para com
a outra parte e mentir uma proibição moral, que se encontra patente entre os
Dez Mandamentos «Não darás falso testemunho.». A ligação existente entre a
Ética e a Moral é que esta colhe daquela e a outra se alimenta com esta. Da
Moral se molda a Ética e da Ética se vai criando Moral.
A lei não se refere directamente à Ética,
mas fá-lo, indirectamente, por várias formas. Entre estas a que mais
propriamente se integra na Ética é o conceito de boa fé. A doutrina mais
pertinente afirma que está de boa fé quem ignora estar a lesar os interesses de
outrém.
III
O melhor dos exemplos da relação entre o
que é estritamente jurídico, a Lei, e a Moral e a Ética, é a figura do abuso do
direito que entre nós se encontra no art. 334.º do código civil. Para uns esta
é a prova cabal de que o exercício dos direitos e das prerrogativas individuais
carece de legitimidade ética e moral, para outros, como para o ilustre Fernando
Cunha de Sá, “trata-se de uma válvula de segurança para as iniquidades a que as
normas jurídicas, formuladas abstractamente, podem conduzir na sua aplicação a
determinados casos concretos”.
Esta figura deve ser entendida como uma
figura dogmático-jurídica e não numa acepção tão ampla como a de correctivo de
moralidade ou de tutela legal da ética e da moral. Não cabe ao que é
estritamente jurídico moldar a comunidade.
Ao termos a noção de que a figura do abuso
do direito é uma válvula de segurança para as iniquidades a que as normas
jurídicas podem conduzir, lembramo-nos que o Direito não se basta com normas
estritamente jurídicas, lembramo-nos das relações deste com a Ética e a Moral,
lembramo-nos, também, que o Direito tem o seu fundamento nos valores comuns. Ou
seja, o Direito não é, somente, uma estrutura lógico-formal, é-lhe inerente
determinados valores que exorbitam o que é estritamente jurídico.
Toda a norma jurídica, além da sua
estrutura lógica, a previsão e a estatuição, encerra uma componente
axiológico-material, que a vivifica, num desenvolvimento que acompanha a
mutabilidade dos valores da comunidade e que deve ser respeitada.
Assim se entende que, pelo art. 334.º,
actua sem direito aquele que, embora, dentro dos limites lógico-formais da
norma jurídica, ou seja, enquadrado na chamada previsão, tenha desrespeitado o
valor, a componente axiológico-material, que serve de fundamento á norma.
Verificando-se, então, que os valores ético-morais que se enquadram nos termos
da boa fé e bons costumes são limites ao exercício dos direitos subjectivos e
prerrogativas individuais dos sujeitos[1], tais como, por exemplo, a autonomia
conferida pelo art. 405.º.
A natureza da sanção do ordenamento
jurídico a quem viole os limites axiológico-materiais de uma norma jurídica, é
um tema controverso: há quem consubstancie o acto abusivo do direito num acto
ilícito material; há quem vá mais longe e parta do pressuposto de que existe o
dever jurídico de não abusar do direito, porque ao abusar-se do direito,
está-se, automaticamente, a correr o risco de estar a prejudicar alguém,
sancionando especificamente o abuso do direito com a responsabilidade pelo
risco, entendendo que a causa desta está menos no puro facto material danoso,
do que na conduta através da qual o agente prossegue a actividade vantajosa; há
quem veja no abuso do direito a violação de uma norma jurídica e que, portanto,
a sanção aplicável é da mesma natureza daquela que se aplica a quem desrespeita
uma norma jurídica imperativa, implicando a perda da posição dogmático-jurídica
autónoma da figura do abuso do direito, confundindo-a com a violação de uma
norma jurídica.
Bibliografia:
- Pensar o Direito – II. da Modernidade à Post-modernidade, Paulo Ferreira da Cunha, Livraria Almedina, pgs. 260 e 261;
- Filosofia do Direito, Soarez Martinez, 2.ª Edição, Almedina, 1995, pgs. 32 e 101;
- Teoria pura do Direito, Hans Kelsen, Arménio Amado – Editora – Coimbra, 6.ª edição, tradução de João Baptista Machado, pgs. 48 e 53;
- Lições de Filosofia do Direito, Giorgio del Vecchio, 5.ª edição, Arménio Amado – Editor, Sucessor – Coimbra, pgs. 566 à 569;
- Abuso do Direito, Fernando Augusto Cunha de Sá, da Livraria Almedina – Coimbra, 1997;
- Lexicoteca, Moderno Dicionário Da Língua Portuguesa, Vol. II, da Círculo de Leitores, 1995, pag. 232;
- Código Civil Anotado, Abílio Neto, 11.ª edição, Ediforum, 1997, pg. 165;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 086020, de 24/10/95;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 072664, de 09/03/89;
- Constituição da República Portuguesa, de 1976;
- Código Civil, de 1966.
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