NOTA: Nelson Mandela foi um lutador
pela liberdade, pela justiça e pelos direitos humanos. Perseguido, preso e
humilhado, nunca foi derrotado e muito menos vencido. Os seus ideais
haveriam de triunfar sobre um sistema político racista, terrivelmente injusto e
inaceitável em pleno século XX. Com a vitória, Mandela impôs-se como homem
justo e capaz de perdoar. Foi esta faceta que mais apreciamos. A sua humanidade,
a sua simplicidade e o testemunho de político que não espera honras fizeram de
Mandela um herói universalmente estimado. Para nos, Nelson Mandela é um
verdadeiro Santo Laico, com direito a figurar nos altares dos nossos corações.
O
primeiro Presidente negro da África do Sul morreu nesta quinta-feira, anunciou
Jacob Zuma, Presidente sul-africano. O líder da luta anti-apartheid
tinha 95 anos.
Nelson
Mandela foi um homem de gestos. Como este: apenas aceitou sair da prisão quando
recebeu garantias de que todos os outros prisioneiros políticos seriam
libertados como ele. O advogado e activista acreditou na luta pela libertação
de todo um povo. Depois de 27 anos preso, foi eleito o primeiro Presidente
negro na África do Sul. O seu legado vai muito além do seu país e do tempo em
que viveu. Morreu nesta quinta-feira, com 95 anos, na sua casa em Joanesburgo.
Quando
anunciou que deixava a política, Nelson Mandela fê-lo com a mesma naturalidade
com que dizia: “Toda a gente morre.” Escolheu deixar a presidência da África do
Sul no fim do primeiro mandato dois anos depois de decidir abandonar a
liderança do Congresso Nacional Africano (ANC), que transformou num farol da
luta de libertação do seu país. Na sombra, manteve uma actividade pública, por
vezes próxima da política. Estávamos em 1999.
Cinco
anos depois, com 86 anos, anunciou brincando que ia “reformar-se da reforma”.
Era a sua maneira de dizer que desta vez era mesmo de verdade. “Não me
telefonem, eu telefono-vos”, disse na altura num encontro com jornalistas. “Não
lhe telefonámos”, escreveu o jornalista Ido Lekota em 2010 no jornal The
Sowetan, “mas a sua figura ‘maior do que a vida’ continua a pairar sobre a
nossa democracia e o panorama político [da África do Sul].”
Hoje,
três anos depois, Ido Lekota continuaria provavelmente a escrever o mesmo do
líder da luta anti-apartheid, preso durante 27 anos por lutar contra o regime
segregacionista da África do Sul, que foi prémio Nobel da Paz (com Frederik de
Klerk) em 1993 e primeiro Presidente negro da África do Sul eleito um ano
depois. “O estadista mais amado” do mundo, como se lhe referiu em tempos o New
York Times, esteve internado este ano, com uma infecção pulmonar, como o foi
várias vezes nos últimos dois anos. Deixa uma obra completa: um país que
imaginou e criou a partir de um ideal.
Advogado,
líder da luta anti-apartheid, defensor do uso de armas em nome de uma luta
igual com o opressor, Nelson Rolihlahla Mandela conseguiu ter do seu lado
pacifistas como o arcebispo Desmond Tutu, que foi Nobel da Paz antes dele, em
1984, e que, quando Mandela esteve internado, rezou pelo “conforto e dignidade”
daquele que considera ser “o ícone mundial da reconciliação”. Também foi o
arcebispo Desmond Tutu quem disse, num dos últimos aniversários de Mandela, a
18 de Julho, que a melhor prenda que ele podia receber era que as pessoas
fossem como ele, era saber que as pessoas seguiriam o seu exemplo.
De pessoa revoltada a magnânima
Tutu
previu ser este um momento “traumático” para a África do Sul, o da perda de
Mandela, figura que descreveu como “um ser humano fantástico”, numa entrevista
em Junho de 2012 ao PÚBLICO, em Lisboa.
“Quando
vai para a prisão, é uma pessoa zangada, revoltada, que acredita na violência
como meio de conquistar a liberdade. E, quando sai, emerge como uma pessoa
extraordinariamente magnânima. O sofrimento por que passou ajudou-o a suavizar
a sua posição. (…) Ele acreditava convictamente que se é líder pelas pessoas
que são lideradas e não em benefício próprio. Fomos incrivelmente abençoados
por termos Madiba [Mandela] aos comandos, num momento histórico para o nosso
país. (…).”
Pelo
menos até ao fim de 2010, o ex-Presidente sul-africano continuava, todos os meses,
a receber quatro mil mensagens do mundo inteiro. Algumas com uma homenagem,
outras a desejarem-lhe uma reforma tranquila e feliz, segundo a Fundação Nelson
Mandela, em Dezembro de 2010, que, na declaração também recebida pelo PÚBLICO,
juntou um pedido a todos para se coibirem de pedir autógrafos, declarações,
entrevistas ou aparições públicas em apoio a algum evento, de forma a “ajudar a
tornar a reforma de Madiba um período de paz e tranquilidade”.
Seguiram-se
meses e anos difíceis em que a sua saúde se deteriorou. E durante esta última
permanência no hospital, à porta da sua casa em Joanesburgo e do hospital em
Pretória, muitas flores foram deixadas com mensagens a desejar as melhoras ou a
dizer: “Tata Madiba: Graças a ti, temos orgulho em ser sul-africanos.” Ou com
promessas: “Prometemos viver em paz e harmonia.”
Descendente do rei thembu
O
desejo de Mandela, expresso na autobiografia Longo Caminho para a Liberdade,
era ser enterrado junto dos seus antepassados em Qunu, no Transkei, província
do Cabo Oriental, onde nasceu em 1918, e foi educado para ser, como o pai
falecido, conselheiro do rei thembu, Jongintaba Dalindyebo.
Era
descendente de Ngubengcuka, que tinha antes sido o rei dos thembu, incluídos no
mais vasto grupo linguístico dos xhosa. Mandela descreve o rei, que foi seu pai
adoptivo e do qual teria sido conselheiro, se não tivesse partido para
Joanesburgo, como “um homem tolerante e esclarecido que tinha alcançado o
objectivo [que caracteriza] todos os grandes líderes: manter o seu povo unido”.
Este
“grande líder” acolhera Mandela com nove anos, após a morte do pai que, anos
antes, ficara desapossado de tudo por desafiar um representante da
administração britânica. A mãe, sem condições para o criar, entregou-o ao rei.
Mandela aprendeu a escutar os anciãos.
Os vários nomes de Mandela
Mandela
é muitas vezes chamado, na África do Sul, por "Tata", que significa
"pai", ou por "khulu" que é "grandioso" – ambos
na língua xhosa. Mas Mandela é sobretudo referido, em sinal de respeito, por
"Madiba" – nome de um chefe thembu que reinou no Transkei no século
XVIII, o nome do clã de Mandela que é mais importante do que o apelido.
Na
clandestinidade, a partir de 1961, vestiu a pele de um David Motsamayi;
disfarçou-se várias vezes de motorista, cozinheiro, jardineiro.
Não
foi conselheiro, nem rei, mas a sua educação de aristocrata, os estudos de
advocacia, o carisma e dedicação à luta anti-apartheid fizeram dele o líder
inquestionável do ANC e principal ícone da libertação da África do Sul. Não
aceitou ser libertado da prisão, enquanto não fossem instituídos o fim do
apartheid e o fim da proibição do ANC, o levantamento do estado de emergência e
a libertação dos outros presos políticos.
“Eu
prezo muito a minha liberdade, mas prezo ainda mais a vossa”, escreveu num
discurso lido pela filha Zindzi, num comício no Soweto, em 1985, dirigido aos
africanos e membros do ANC.
Recolhimento nacional
Também
por isso, a morte de Mandela é “uma perda tremenda para o país”, disse Ray
Hartley, director do jornal sul-africano The Times numa entrevista ao PÚBLICO.
“A África do Sul perderá aquele sentimento reconfortante de que existia este
grande unificador”, disse, embora prevendo que "os processos políticos não
serão afectados pelo seu desaparecimento.”
Também
em entrevista, Thierry Vircoulon, investigador associado do Institut Français
des Relations Internationales e co-autor de L’Afrique du Sud de Jacob Zuma
(L’Harmattan), considerou que “a África do Sul vai entrar num momento de
recolhimento nacional”. E realçou: “A nova África do Sul não vai desaparecer
com ele, precisamente porque ele fez um excelente trabalho enquanto pai
fundador dessa nova África do Sul.”
Os
seus actos são frequentemente lembrados como exemplo para outros. As suas
palavras ressoarão durante muito tempo como lições de vida.
Frederik
W. de Klerk, ex-líder do Partido Nacional, fala do líder que confrontou em
duras negociações e com quem partilhou o Prémio Nobel da Paz 1993, numa
entrevista a propósito do livro Conversations with Myself , também lançado em
Portugal, em 2010, com o título Nelson Mandela – Arquivo Íntimo (Editora
Objectiva), e que junta notas pessoais, cartas e diários de Mandela escritos
antes e depois da saída da prisão: “Independentemente de qualquer crítica que
possamos fazer, o homem que emerge de Conversations with Myself é uma eminente
figura não só na história da África do Sul, mas na história do século XX. Ele
foi Presidente para desempenhar um papel exemplar na unificação e reconciliação
do povo profundamente dividido da África do Sul”, disse aquele que foi o último
Presidente branco da África do Sul (1989-1994).
Muitas
vezes, admite na autobiografia Um Longo Caminho para a Liberdade, Mandela se
questionou sobre o sofrimento que infligira à família durante a clandestinidade
e nos anos na prisão de onde só saiu com 72 anos.
Já
em liberdade, numa entrevista à revista norte-americana Time em Fevereiro de 1990,
disse acreditar no valor da dedicação quase exclusiva à luta: “Sim, valeu a
pena. Ser preso por causa das nossas convicções e estar preparado para sofrer
por aquilo em que se acredita vale a pena. É uma conquista para um homem
cumprir o seu dever na terra independentemente das consequências.”
O
difícil equilíbrio, nunca alcançado, entre a dedicação à família, por um lado,
e à causa política da libertação, por outro, acompanhou-o durante a vida e é
algo presente nas suas memórias do Arquivo Íntimo. Porém, aceitou-o da mesma
forma que aceitou defender o recurso às armas como imprescindível para o
sucesso da luta.
Em defesa das armas
“Nunca
irei lamentar a decisão que tomei em 1961, mas gostaria que um dia a minha
consciência estivesse tranquila”, disse referindo-se à decisão tomada nesse ano
de passar à clandestinidade e formar o MK (Umkhonto we Sizwe – A lança da
nação) de que foi primeiro comandante-chefe e que se tornou a ala militar do
ANC. Viria a ser condenado a prisão perpétua em 1964 por sabotagem e
conspiração.
Passou
18 anos na prisão de alta segurança de Robben Island. Esteve depois na prisão
de Pollsmoor, e já no final foi transferido para a cadeia de Victor Verster
perto da Cidade do Cabo.
Nos
23 anos que viveu depois de libertado, concluiu a missão, iniciada ainda na
cadeia, de negociar o fim do apartheid com o Governo do Partido Nacionalista e
foi eleito primeiro Presidente negro da África do Sul. Depois de terminado o
mandato de cinco anos, retirou-se da política e passou a dedicar-se, através da
fundação com o seu nome, a uma nova causa – o combate e a prevenção da sida – à
qual se sentia especialmente ligado.
Em
2005, a morte do filho Makgatho, vítima de sida, levou Mandela a uma rara
intervenção pública desde que deixara a vida política em 1999. Lançou um apelo
ao fim do tabu, para que se falasse desta como de qualquer outra doença, por
considerar que só assim a sida deixaria de ser fatal.
Já
antes, quando estava preso, tinha perdido o filho mais velho Thembekile, num
desastre de automóvel, em 1969, e uma filha pequena ainda bebé, Makawize, ambos
do primeiro casamento com Evelyn Mase, de quem se divorciou em 1957.
Um
ano depois conheceu e casou-se com Winnie Mandela, de quem teve duas filhas.
Quando a viu pela primeira vez, “soube que a ia amar”, escreve na
autobiografia. Durante os anos em que esteve preso, é a sua confidente e,
durante muito tempo, quem melhor o compreende. A política, os métodos
utilizados ou o rumo defendido para a luta acabam por separá-los. Mandela opta
pelo divórcio em 1996.
Dos
seis filhos que teve, acompanharam-no até ao fim as três filhas: Zindzi, Zenani
e Makawize. E Graça Machel, com quem se casou dois anos depois do divórcio com
Winnie, a 18 de Julho de 1998, no dia do 80.º aniversário.
Quando
Mandela esteve esta última vez no hospital, Graça Machel agradeceu emocionada
as muitas mensagens a desejar as melhoras do ex-Presidente vindas da África do
Sul, do continente e do resto do mundo. Nessa mensagem pública e universal,
Graça Machel dizia estar reconhecida a todos os que tinham, com isso, “feito
uma diferença, na recuperação” de Mandela numa alusão às palavras do próprio:
“O que conta na vida não é o facto de termos vivido. É a diferença que fizemos
para a vida dos outros.”
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