sábado, 29 de outubro de 2016

As últimas palavras de gente ilustre

Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias

Tenho muitas vezes um sonho: que a todos, antes do instante supremo da morte, fosse dada a possibilidade de responderem a estas perguntas ou parecidas: "O que é que eu vi da vida? Que digo sobre o mistério de ser, de existir?" Isto resultaria na grande biblioteca da humanidade.

Philippe Nassif publicou Ultimes, resultado da sua investigação sobre as últimas palavras de gente ilustre, antes de morrer, que fez acompanhar de um comentário. O que aí fica, em vésperas do Dia dos Defuntos, é uma selecção.

1. Anton Tchékhov. "Há muito que não bebia champanhe." Médico e escritor russo, comprometido com o alívio do sofrimento e o amor do próximo. Tuberculoso, manda chamar um médico e pede-lhe... champanhe. "Ich sterbe" (estou a morrer). Vira-se para a mulher, pronuncia as suas últimas palavras e esvazia tranquilamente a taça.

2. Luís XIV. "Porque é que chorais? Pensáveis que eu era imortal?" Impressiona que, já no fim, o Rei Sol lembre a sua condição mortal.

3. Johann Sebastian Bach. "Vou finalmente ouvir a verdadeira música." A sua música não fora afinal senão aproximações das harmonias divinas. "O paraíso é música."

4. Marcel Proust. "Agora posso morrer." Reencontrou o Tempo. "Não o dos relógios, mas o tempo verdadeiro, no qual passado, presente, futuro fazem um só e assim nos libertam."

5. Sarah Bernhardt. "Ama." Talvez a maior actriz do seu tempo, antes de entrar em coma, coloca docemente a mão na cabeça de um jovem comediante, a quem deixa a suprema recomendação: "A vida não vale a pena ser vivida a não ser que se saiba desposar, amorosamente, tudo o que acontece."

6. François Rabelais. "Vou à procura do grande talvez." São comoventes e já modernas estas últimas palavras. O para lá da morte "é um ponto de interrogação, uma preocupação, uma abertura que, plantada no coração da existência, liberta uma infinidade de possíveis, de "talvez"".

7. Sócrates. "Críton, devemos um galo a Asclépio, não deixes de liquidar esta dívida." O galo, cujo canto anuncia a aurora, simbolizava para os gregos a salvação da alma. Com esta oferta ao deus da medicina, Sócrates agradecia a cura da libertação em relação ao corpo. Para ele, a filosofia também é terapêutica, um treino de morrer e estar morto para o mundo dos sentidos.

8. Jesus Cristo. "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?" Um Deus submetido à morte mais miserável e humilhante! Segundo o autor, estas palavras impuseram-se como "das mais decisivas da história da humanidade", constituindo "uma ruptura irremediável no inconsciente psicopolítico do Ocidente". Hegel teorizou sobre a Sexta-Feira Santa especulativa e Nietzsche proclamou a morte de Deus, "uma constatação vertiginosa". Desde então, "a maior parte dos ocidentais vivem com esta questão cravada no mais íntimo; experienciam, e é inédito, uma existência privada de fundamento, garantia, apoio último." "Livre, abandonado", resumirá Beckett.

9. Madame Roland. "Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!" A caminho do cadafalso, é ao passar junto à Estátua da Liberdade que lança esta apóstrofe célebre a propósito dos "empreendimentos perversos que ameaçam sempre a ideia de liberdade".

10. Johann Wolfgang von Goethe. "Mais luz!" "O real e o ideal", a luz terrestre e a luz do espírito, juntas na mesma palavra.

11. Olympe de Gouges. "Fatal desejo de Fama, porque é que quis ser alguma coisa?" Replicou à misoginia da Assembleia Nacional com um feminismo pioneiro: "A mulher tem o direito de subir ao cadafalso; deve ter igualmente o de subir à Tribuna." O Terror ser-lhe-á fatal e, já no cadafalso, "deixa escapar uma diatribe contra a sua funesta aspiração à celebridade - e confessa-se, também aí, com avanço sobre o seu tempo".

12. Ludwig Wittgenstein. "Digam--lhes que tive uma vida maravilhosa." Um dos maiores filósofos do século XX viveu atravessado pela alegria do questionamento, da descoberta. "A algumas horas da morte, entrega a fórmula sóbria da grande ética."

13. Rainer Maria Rilke. "Quero morrer a minha morte, não a dos médicos." A sua obra foi uma meditação sobre a morte. Acolhê-la é avançar no "Aberto". Recusou, pois, o apoio do médico, que o privaria de uma relação directa com "a mais decisiva das experiências".

14. Leão Tolstoi. "A verdade... amo muito... a todos..." A expressão de um cristianismo sem dogmas, reduzido à única lei de Cristo: o amor.

15. Francisco de Assis. "Bem-vinda, minha irmã morte."

16. Clara de Assis. "Bendito sejas, Senhor, por me teres criado."

17. Fernando Pessoa. "Não sei o que o amanhã trará." Na véspera da morte, deu entrada no Hospital de São Luís dos Franceses, atingido por uma cirrose. Escreveu em inglês: "I know not what tomorrow will bring." Sim, ninguém sabe, até ao dia em que já não haverá amanhã neste mundo. Mas "A morte é a curva da estrada./ Morrer é só não ser visto./ Nunca ninguém se perdeu./ Tudo é verdade e caminho."

Caminho, digo eu, para a plenitude da vida em Deus.


Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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