Crónica de Anselmo Borges, no Diário de Notícias
1. É claro que a fé não deriva da razão,
à maneira da matemática ou da ciência, não sendo, portanto, demonstrável
cientificamente. Mas também se deve tornar claro que a fé não pode agredir a
razão, com a qual tem de dialogar, dando razões de si mesma. Há que distinguir
entre saber e crer. Como dizia o médico e filósofo Pedro Laín Entralgo, o
penúltimo é da ordem do saber, mas o último é da ordem da crença. Por isso, o
crente não pode dizer que sabe que Deus existe e que há vida depois da morte,
como o ateu não pode dizer que sabe que Deus não existe e que com a morte a
pessoa acaba: o crente e o não crente não sabem, crêem, com razões. Neste
contexto, Kant é inultrapassável, também quando escreveu que, apesar da sua
majestade, a religião não está imune à crítica. Aliás, o Evangelho segundo São
João inaugura-se dizendo: "No princípio, era o Logos", portanto, o
Verbo, a Palavra, a Razão. E "foi pelo Logos que tudo foi criado",
provindo daí, como sublinharam vários cientistas, que a criação, a natureza, é
investigável, pois é racional. Uma religião que tem medo da razão, da
investigação crítica, do confronto e diálogo com as ciências, não é humana nem
presta verdadeiro culto a Deus, correndo o risco de um dogmatismo estéril e, no
limite, ridículo. Como o não crente também não pode ser dogmático nem
fundamentalista.
2. Uma das aberturas do Concílio
Vaticano II consistiu num diálogo aberto com as diferentes ciências, sem medo
da investigação, e na salvaguarda dos direitos humanos, como o da liberdade de
expressão. Depois, nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, foi reduzida
a liberdade de investigação teológica, contando-se por centenas os teólogos
condenados, admoestados, proibidos de escrever e ensinar. A Teologia tornou-se,
assim, afónica, remetida para um silêncio forçado, ou tolhida dentro de uma
linguagem escolástica e repetitiva, passando ao lado dos grandes problemas do
mundo, de tal modo que o famoso bispo Pedro Casaldáliga pôde denunciar em 1995:
"Com muita frequência nós, os bispos, julgamos que temos a razão,
normalmente pensamos que a temos sempre. Ora, o que acontece é que nem sempre
temos a verdade, sobretudo a verdade teológica, de modo que vos peço, a vós,
teólogos, que não nos deixeis numa espécie de ignorância dogmática."
Uma das novidades fundamentais do
pontificado de Francisco é que a liberdade dos teólogos regressou como algo
natural, sem censuras nem condenações. Isabel Gómez Acebo chamou a atenção para
o facto: "Uma das mudanças que o Papa Francisco introduziu, e sem que
ninguém se tenha dado conta, é que a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé
não publicou nenhum documento para toda a Igreja nestes últimos anos, quando em
épocas anteriores o fazia entre duas e quatro vezes por ano" - com uma
excepção, anoto eu: aquele sobre a cremação e o sepultamento dos mortos. E é um
facto que, embora o tenha mantido no cargo, não tem utilizado os serviços do
seu Prefeito, cardeal Gerhard L. Müller, concretamente não o chamou para
apresentar documentos oficiais, nomeadamente "A Alegria do Amor",
referente às questões da sexualidade, do amor e da família.
Mais: de modo indirecto, Francisco tem
tentado a recuperação e a reconciliação com teólogos condenados. É assim que se
poderia explicar, só para dar exemplos, a aproximação a Leonardo Boff, que
ainda recentemente confessou publicamente que, em caso de necessidade de alguma
comunidade, continua a presidir à Eucaristia, a Hans Küng, a quem já escreveu
duas vezes, a José M. Castillo... Mais significativo é que levantou, numa carta
pessoal autografada, a sanção que o Vaticano, por intermédio do cardeal T.
Bertone, tinha imposto ao biblista argentino Ariel Álvarez Valdés, proibindo-o
de "ensinar, escrever, publicar, dar aulas e cursos, e falar através da
rádio e da televisão".
3. O biblista célebre acaba de publicar
uma obra com o título em epígrafe: Quién era la serpiente del Paraíso... y
otras 19 preguntas sobre la Biblia. Dada a sua importância, servir-me-á de
inspirador para as duas próximas crónicas. Importância, porquê? Vivemos em
tempos de urgência do diálogo inter-religioso. Ora, uma das sua condições
essenciais é a leitura histórico-crítica dos textos sagrados: não uma leitura
literal, mas uma leitura que conhece as regras exegéticas e hermenêuticas:
atenção ao contexto histórico, à língua, ao género literário, aos
destinatários, à sua intencionalidade última... E Ariel Álvarez é um bom
exemplo para os fundamentalistas cristãos e, consequentemente, para seguidores
de outras religiões, nomeadamente no mundo islâmico. Seja como for, apesar de
tudo, dentro do cristianismo, deram-se passos de gigante neste domínio.
4. Afinal, "quem era a serpente do
Paraíso?" Houve as interpretações mais díspares: que era uma víbora
autêntica, mas possuída pelo Diabo; uma imagem, símbolo de Satanás; "um
símbolo geral dos maus desejos e dos prazeres sensuais". De facto, nada
disto está no texto, concretamente não há conotações sexuais no pecado de Adão
e Eva. Como não há maçã nenhuma: a confusão veio do facto de em latim maçã se
dizer malum e mau se dizer malus e malum.
A serpente é apenas o símbolo da
religião cananeia, que via nela três qualidades: conceder a imortalidade,
garantir a fecundidade, ser o protótipo da sabedoria. Um escritor anónimo
escreveu, e isso aparece no livro do Génesis, sobre os perigos da religião
cananeia: em vez do paraíso para todos, estava--se a viver no meio de
injustiças, fome, dores, morte, e a causa da situação estava na religião
cananeia, que levava o povo a refugiar-se numa religião de ritos exteriores e
fetichistas, incluindo a prostituição sagrada, em vez de seguir a Lei do Deus
vivo e "procurar a felicidade numa vida moral justa e honesta, ao serviço
dos irmãos".
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