sexta-feira, 5 de outubro de 2018

COMANDAR: DEAMBULANDO PELOS CONCEITOS

O que se pretende das Forças Armadas, num mundo de violência, é a segurança; num mundo de guerra, é a paz; num mundo de caos, é a ordem; num mundo de conforto, é o sacrifício; num mundo de corrupção, é seriedade; num mundo de agitação, é serenidade; num mundo de alheamento, é responsabilidade. Ou seja, o que se pede às Forças Armadas é, afinal, o bem público, que só é possível com estoicismo, resignação e humildade, e que os militares sejam sentinelas atentas e garantam a defesa do País

Por, General António Eduardo Queiroz Martins Barrento

1. Introdução

No mundo actual, cheio de acontecimentos, convulsões, imprevistos e conflitos, pensar nas Forças Armadas, nos seus fundamentos e características, é uma obrigação de cidadania. Além disso, porque a nível nacional também sucedem eventos estranhos e reacções inesperadas, que nos magoam e que não dignificam a Instituição Militar, debruçar-nos sobre o exercício do comando, sendo uma catarse, é principalmente uma necessidade. Com efeito, o exercício do comando é o pilar da Instituição Militar, pois sem ele não se garante a eficiência dos meios, a eficácia da força, e não se sublinha a responsabilidade de cada nível da hierarquia, que são elementos fundamentais para o seu funcionamento, e que a defesa do País, o poder político democrático e os cidadãos logicamente exigem. Neste pequeno escrito, vou inicialmente deambular pelos conceitos, para depois terminar com umas breves conclusões.

2. Deambulação
2.1 O Poder

Para Max Weber, o poder é a capacidade para obrigar. Tem, portanto, um cariz cominatório, de imposição, de forçar para obrigar. Mas porque o argumento de autoridade, o magister dixit não é sinónimo de verdade absoluta, aquela definição é para reflectir, aceitar, duvidar e até alterar, se necessário. No meu entendimento, e pensando no exercício do comando, o poder é mais do que Max Weber disse, é a capacidade para se ser obedecido. Se, para conseguir obrigar, fazer obedecer, é necessário poder, note-se que a obediência pode ser simplesmente aceite. Max Weber fala do poder para impor, mas aceitar obedecer também resulta do poder e é até mais abrangente. Isto é, pode aceitar-se obedecer, sem haver imposição ou, se necessário, obrigar a obedecer. Quando a lei, a norma, a ordem, for naturalmente aceite, o poder revela-se, ainda que também se revele quando se obriga a aceitar. Quando Vaclav Havel, num quadro de contestação do autoritarismo no seu País, refere ‹o poder dos sem poder›, a frase soa a nonsense. Há, porém, muito poder para além do autoritarismo e do recurso à força, da coacção, da capacidade para obrigar. O que ele pretendia referir era que o pensamento, a vontade, a aptidão e persuasão da palavra, falada ou escrita, aquilo que está para além da força, é afinal importante e é-o de tal forma que ele chegou ao vértice do poder no seu País – foi o seu presidente.

2.2 O Comando

Segundo o nosso regulamento de operações, comando é a autoridade conferida a um indivíduo para dirigir, coordenar e controlar forças militares. Constando do regulamento de operações, a definição estende-se também ao exercício do comando para além do ambiente operacional. Analisemos, então, os seus componentes.

Ao dizer que comando é autoridade, lembra-nos o ascendente que, em certas épocas, foi físico ou intelectual e, mais tarde, até genético, pertenceu à nobreza, mas que passou a ser, nos dias de hoje, adquirido e estatutário. E é este ascendente que dá a capacidade para se ser obedecido. É, pois, salutar que se diga, principalmente em épocas em que se nota uma crise de autoridade, que o comando é autoridade, e não outra coisa qualquer, e que se mostre a afinidade do comando com o poder.

A crise de autoridade não sucede apenas nos nossos dias, nem no nosso país. Quando, em 1978, estudei em Paris, vivia-se uma crise de autoridade no Estado, na escola, na família, sendo significativo que os jovens respondessem aos apelos do dever e da autoridade com a expressão ‘Bof...’, até se lhe chamou a ‘bof génération’.

Além disso, confunde-se também autoridade com autoritarismo. Também de França, lembro um camarada estrangeiro que me dizia, muito agastado, que o Le Monde fora altamente crítico sobre a acção da polícia numa manifestação no seu País, quando, poucos dias antes, sobre a acção da polícia de intervenção francesa, numa manifestação semelhante, apenas notara o facto, sem apresentar qualquer crítica. Tendo-lhe explicado que os casos, sendo aparentemente semelhantes, não eram iguais, porque a polícia do seu País defendia o autoritarismo e a polícia francesa defendia a democracia, não gostou da minha resposta e esteve uns tempos sem me falar.

Além disto, vivemos uma época em que se verifica um desmesurado individualismo, uma alargada apetência para a indiferença e para a anarquia, para a demagogia, para o facilitismo e para o primado dos direitos e esquecimento dos deveres e das obrigações.

Quando se refere que a autoridade é conferida, diz-se que ela não é imanente, não existe por si, não é conquistada, nem resulta de uma eleição. Antes significa que existe uma entidade superior que a confere, e que é o poder político, directamente, para os cargos superiores de comando das Forças Armadas e, para os outros, as leis que resultam da acção dos eleitos, na Assembleia e no Executivo. Há, pois, normas para conferir a autoridade, os patamares de comando, os postos e funções, que estabelecem as condições estatutárias para o seu desempenho.

Quando a definição diz que é conferida a um indivíduo, que obviamente é considerado apto para exercer a autoridade, mostra que ela não é repartida, e pertence apenas àquele indivíduo. Isto lembra-nos que esta atribuição responde ao princípio da unidade de comando, que é um princípio de guerra, bem como, historicamente, a vitória de Aníbal, em Canas, contra a dualidade do comando romano, exercido por dois cônsules. Mas também nos diz que a responsabilidade, estando escalonada nos vários níveis da hierarquia, não é divisível, o que exige uma constante e elaborada direcção e supervisão. Além disto, faz-nos reflectir nos casos em que o comando operacional e o comando administrativo-logístico estão separados; no apego do indivíduo à missão que lhe foi confiada, e que não pode esquecer a adequação dos meios aos objectivos, nem as restrições que são impostas ao exercício dessa autoridade; na necessária formação que o indivíduo tem que adquirir ao longo da carreira; na aptidão que vai demonstrando para o exercício da autoridade; e sobre a solidão do chefe, que se vai acentuando à medida que se sobe na hierarquia, só atenuada pelos conhecimentos que tenha para o exercício do cargo, pela experiência que foi adquirindo, e pelo conselho que recebe, o que enfatiza a necessidade dos estados-maiores nos comandos superiores.

A definição diz que a autoridade é para dirigir, coordenar e controlar, que são, afinal, as principais funções administrativas, faltando apenas o planeamento e a programação, porque nos pequenos escalões são feitas por uma operação mental, e nos mais elevados são trabalhados pelos estados-maiores. Para dirigir, é óbvio, porque se trata de decidir por forma a conduzir aos objectivos que devam ser alcançados, sendo esta a principal obrigação de qualquer comandante. Para coordenar, porque há que fazer concorrer de forma adequada os meios humanos e materiais, as vontades dos subordinados e as unidades, somando capacidades e potenciando sinergias. Para controlar, porque é necessário corrigir desvios, por antecipação, através da instrução e do treino, das orientações e directivas, mas também na conduta, agindo com oportunidade e explorando as lessons learned em actuações anteriores.

Finalmente, o comando é exercido sobre as forças militares, os elementos orgânicos da Instituição Militar, mas que têm por base os homens e as mulheres que o servem, porque, diferentemente dos meios materiais, por mais modernos e sofisticados que sejam, são os únicos agentes possuidores de vontade.

2.3 A Chefia

Também de acordo com o nosso regulamento de operações, a chefia é a arte de influenciar e obrigar os indivíduos, tendo em vista alcançar um fim determinado, de uma maneira tal que consiga da parte daqueles a obediência, o respeito e a cooperação total. A chefia é, portanto, uma arte, que sendo inerente ao indivíduo, inata, decorrente do seu equipamento genético, é também susceptível de aprendizagem e aperfeiçoamento.

Sendo para influenciar, depende do conhecimento possível da situação por parte dos subordinados, do exemplo que é dado pelo chefe, das relações existentes que resultam da forma de lidar, comunicar, avaliar, premiar e punir, e do conhecimento que se tem do “outro” e da empatia que se desenvolva.

Sendo para dirigir, palavra que faz parte da definição de comando, a chefia está intimamente ligada à decisão e à sensatez, que conduzem à obediência, ao cumprimento das ordens pela persuasão e motivação, e até pelo receio da desobediência, e à confiança que se vai criando, dia a dia, com perseverança, mas que se pode destruir facilmente; ao respeito dos princípios, das normas, das pessoas, dos superiores e subordinados, de que o exemplo faz parte; da lealdade à Instituição Militar e ao País. Enfim, chefiar é fazer com que os projectos dos chefes passem a ser também os projectos dos subordinados. A história dá-nos vários exemplos disto, como foi o do D. Nuno Álvares Pereira ter conseguido, num ambiente muito difícil, levar os seus homens a acreditar na sua vontade, na sua ideia, e travar a batalha de Atoleiros.

2.4 A Responsabilidade

Conforme também com aquilo que o nosso regulamento de operações indica, a autoridade conferida pela lei e pelos regulamentos, é acompanhada por correspondente responsabilidade que não pode ser delegada. Isto é, para cada posição e posto na hierarquia, a par da capacidade de comando conferida, existe a responsabilidade, que mais não é do que a obrigação de “responder” por aquilo que se fez ou deixou de fazer, e a que se está obrigado pela função ou posto, que se desempenha, ou pela unidade ou orgão que se dirige. Quando se verifiquem falhas ou omissões que digam respeito àquilo que em cada nível compete fazer, têm que se exigir responsabilidades, que se traduzem normalmente por acções disciplinares, que vão de uma simples advertência para falhas pouco graves, até ao afastamento da função, à destituição do cargo que estava atribuído.

Quando as normas e as ordens são claras e existe supervisão, evitam-se muitas falhas, e é fácil identificar os responsáveis quando elas acontecem. Porém, quando as normas e as ordens não são claras, há escassez de meios para cumprir a missão, inadequação das estruturas orgânicas, a supervisão e o controlo são insuficientes, e, porque se mantém válido o que escreveu o Poeta, no século XVI, “não louvarei capitão que diga não cuidei”, a responsabilidade tem que ser assumida por escalões superiores àquele em que se verificaram as falhas. Quando, além disso, estas são particularmente graves, pondo em causa a missão e a imagem de uma unidade ou até da Instituição Militar, a responsabilidade tem que ser assumida ao nível de comando correspondente. Podendo o escalão político, por ignorância, desatenção, ou por outra razão, não entender isto, as chefias militares, obrigadas que estão a praticar as virtudes militares, têm que reconhecer que são responsáveis pela unidade ou Instituição, e assim assumir a responsabilidade por aquilo que correu mal, principalmente quando isso põe em causa a segurança, trai a confiança dos cidadãos nas Forças Armadas, e atinge, até, o prestígio da Instituição Militar.

3. Conclusões

O que se pretende das Forças Armadas, num mundo de violência, é a segurança; num mundo de guerra, é a paz; num mundo de caos, é a ordem; num mundo de conforto, é o sacrifício; num mundo de corrupção, é seriedade; num mundo de agitação, é serenidade; num mundo de alheamento, é responsabilidade. Ou seja, o que se pede às Forças Armadas é, afinal, o bem público, que só é possível com estoicismo, resignação e humildade, e que os militares sejam sentinelas atentas e garantam a defesa do País.

As Forças Armadas estão intimamente ligadas ao poder: primeiro, porque existem para expressar o seu poder no combate; segundo, porque a sua acção decorre das decisões do poder político; terceiro, porque necessitam do poder para que a hierarquia funcione.

O exercício do comando de forma correcta é fundamental para o funcionamento da Instituição Militar, logo, para a segurança do País. Porque um comandante tem formalmente capacidade para ser obedecido e a acção militar exige convergência de meios e de vontades, e porque a chefia consegue a adesão das vontades, os comandantes devem ser chefes. Ou seja, se o comandante tem formalmente poder para obrigar, e a chefia para que a sua acção seja aceite, o exercício do comando está facilitado quando o comandante é também um chefe.

A responsabilidade está intimamente ligada ao exercício do comando e deriva das obrigações fixadas pelas normas, para cada função, para cada nível da hierarquia. Porém, quando as normas não são claras, faltam meios e é deficiente a fiscalização sobre o seu cumprimento, a responsabilidade sobe para escalões superiores àqueles em que verificaram as falhas. Com a REVISTA MILITAR

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