Imersos numa crise sem precedentes da Igreja Católica, que está longe de terminar, retomo, na substância e com a devida vénia, um texto que escrevi para o livro Portugal Católico. A Beleza na Diversidade.
1. Quando cheguei à universidade,
admirava-me com o espanto de estudantes e até de professores por causa do meu
pensar interrogativo no que se refere à religião. No entanto, I. Kant tinha
razão ao escrever que a religião, apesar da sua majestade, não pode ficar imune
à crítica. Só uma Igreja autocrítica e que acolhe a crítica da sua realidade
tantas vezes tenebrosa pode criticar as infâmias do mundo.
Julgo que continua em Portugal a ideia de
que o católico na Igreja está infectado por uma fé dogmática, imóvel e incapaz
de pensamento aberto e crítico. A pergunta é: Quem assim pensa estará enganado?
Infelizmente, parece-me que não. De facto, quando se pensa nas feridas deixadas
pela Inquisição, que tolheu a abertura do pensar, e num clero frequentemente
inculto, que se deixou ultrapassar pelo mundo moderno - ouça-se as homilias de
grande parte dos padres, impreparadas, inúteis ou mesmo prejudiciais -, fica-se
com a convicção de que a Igreja se imobilizou num mundo do dogma repetitivo de
uma doutrina que já não é aliciante para a vida e que, pelo contrário, transformou
o Evangelho, notícia boa e felicitante, em Disangelho, notícia infeliz e de
desgraça, para utilizar a palavra de Nietzsche. Drama maior: a modernidade
acabou por ter de impor à Igreja oficial o que é património e herança do
Evangelho: os direitos humanos, a liberdade, a igualdade, a separação da Igreja
e do Estado.
No entanto, a Primeira Carta de Pedro
manda "dar a razão da fé e da esperança". E é M. Heidegger quem tinha
razão, ao dizer que "o perguntar é a piedade do pensamento". Job -
está na Bíblia - atreveu-se a fazer perguntas de protesto a Deus e Deus
louvou-o por isso. Jesus morreu a rezar, com uma pergunta que atravessa os
séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?" E é
preciso aceitar que há perguntas sem resposta ou para as quais o crente não tem
resposta, como reconhece o Papa Francisco.
O ser humano é constitutivamente o ser da
pergunta e, de pergunta em pergunta, chega ao infinito, perguntando ao Infinito
pelo Infinito, isto é, por Deus. É aqui que encontra fundamento a dignidade
humana. Finitos e mortais, levamos connosco a capacidade de perguntar ao
Infinito pelo Infinito e a sua existência, independentemente da resposta que se
dê à pergunta. Isso significa que temos algo de infinito em nós, precisamente
essa capacidade. Finitos, somos da ordem do infinito. Por isso, temos dignidade
e somos fim e não meio, como é próprio do infinito: para lá do infinito não há
mais nada. Lá está Ernst Bloch, o ateu religioso, na sua pedra tumular:
"Denken heisst überschreiten" - "Pensar significa
transcender".
2. O Evangelho explicita os dois
princípios que devem presidir à reforma que se impõe na Igreja, ao
"definir" Deus como Agapê, Amor incondicional, e, logo no início do
Evangelho segundo São João, ao dizer que no princípio era o Logos (Verbo,
Palavra, Razão, Sentido), o Logos estava em Deus e o Logos era Deus e tudo foi
criado pelo Logos. Os dois princípios que têm de animar os católicos, começando
por aqueles a quem foi entregue a missão de presidir à Igreja, comunidade de
comunidades espalhadas pelo mundo todo, são, portanto: o Amor, a Bondade, e a
Razão, a Inteligência. A bondade sem inteligência não abre caminhos novos e
pode causar imensos estragos irreparáveis; a inteligência sem a bondade pode
tornar-se cruel e fazer um sem número de vítimas.
É neste fundo que se percebe claramente a
urgência impreterível da renovação da teologia. O jesuíta Jorge Costadoat
chamou a atenção para esta necessidade, ao constatar que talvez nunca como
hoje, desde os inícios do cristianismo, a Igreja precise tanto de se pensar a
si própria teologicamente no seu respectivo mundo. Uma tarefa gigantesca. De
facto, o que acontece é que a teologia não tem ajudado a Igreja na sua entrada
numa nova época, o que deriva também das sucessivas condenações de teólogos, de
tal modo que a teologia que os ambientes eclesiásticos consideram a melhor é
realmente "muitas vezes a pior". Daí, o fosso entre a Igreja
"oficial" e o mundo e mesmo o comum dos baptizados, a ponto de
"não se saber exactamente quem tem real autoridade para orientar os
outros": o poder formal sabe-se quem o tem, mas o problema é a autoridade,
inexistente, para orientar. "O que se constata é que a distância da Igreja
em relação à cultura - a cultura predominante e as diversas culturas - é
crescente. A actual configuração histórica e cultural da Igreja não suporta
tantas e tão aceleradas mudanças. Este foi já o diagnóstico do Concílio
Vaticano II há 50 anos. Hoje, a tensão é muito maior."
Uma coisa sabemos: primeiro, é a
necessidade da conversão ao Deus de Jesus, ao amor e à misericórdia, que o Papa
Francisco encarna. Esta é a direcção correcta e o rumo certo e necessário.
"Mas, continua Costadoat, a caridade cristã acerta verdadeiramente quando
exige e depende de uma articulação da fé e da razão. Uma caridade infantil e
piedosa nunca deve ser menosprezada, mas também não deve ser mistificada. A
caridade de que hoje precisamos requer ser pensada e reflectida em todos os
planos da vida humana, e a nível político e planetário." E isso exige uma teologia
que não seja mera teologia de teologia, isto é, comentário de comentários, no
quadro de uma ortodoxia empacotada e repetida ad nauseam de modo caduco,
estéril e, por isso, prejudicial. Impõe-se a necessidade de uma teologia viva e
que "tenha a coragem que tem o próprio Francisco de tentar e de
equivocar-se". A teologia com uma tarefa pendente tem de ser
"teologia que se confronta com hipóteses e interpretações de uma realidade
cada vez mais difícil de compreender; que se situe historicamente e pense a sua
missão numa cultura em transformação variada, muitas vezes disparatada, e
incessante. O que se requer é uma conversão teológica de 180 graus. A teologia
ocupou-se da revelação de Deus no passado; a teologia de que agora se precisa
deveria concentrar-se na fala de Cristo no presente. Sem uma teologia deste
tipo, que atenda também à pluralidade cultural, a proposta evangelizadora está
a naufragar".
O Papa Francisco tem dado o exemplo. Não
só não condenou teólogos como pede pensamento teológico novo na liberdade de
pensar e de expressão, tendo ele próprio avançado com dois textos essenciais,
que farão história: a Laudato si, sobre a salvaguarda da criação, a humanidade
no cosmos, e a Amoris laetitia, uma visão nova sobre a sexualidade, o casamento
e a família.
3. A Igreja tem de dialogar com humildade
e sem medo com as ciências, com todos, incluindo os agnósticos e os ateus.
Diálogo, como diz a etimologia, é o logos comunicante, a razão comunicativa.
Homem de diálogo, o cardeal jesuíta Carlo Martini, que dizia que a Igreja anda
atrasada duzentos anos, criou em Milão a cátedra dos Não Crentes e,
reportando-se a um pensamento de Norberto Bobbio, dizia: "O que me
interessa é a diferença entre pensantes e não pensantes. Quero que todos vós
sejais pensantes. Depois, escutarei as razões de quem crê e as de quem não
crê."
Escreve
de acordo com a antiga ortografia
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