Introdução
A lógica formal e a lógica informal têm
como objectivo distinguir os argumentos válidos dos argumentos inválidos e os
argumentos bons dos argumentos maus. Quer no caso da lógica formal quer no caso
da lógica informal, trata-se de estabelecer critérios objectivos que permitam
saber, com o maior rigor possível, quando a conclusão de um argumento é
verdadeira ou provável, caso as premissas também o sejam. Contudo, a lógica
formal e a lógica informal não são as únicas disciplinas que estudam os
argumentos. Para além delas há também outra disciplina que estuda os argumentos.
A esta disciplina dá-se o nome de retórica e é vulgarmente caracterizada como a
arte da persuasão, isto é, a arte que estuda os procedimentos que permitem a um
orador fazer um auditório adirir aos pontos de vista que defende. Assim, apesar
de, tal como a lógica formal e informal, a retórica também estudar os
argumentos, a finalidade desse estudo é completamente diferente da daquelas
disciplinas, uma vez que o seu objectivo não é descobrir e estabelecer as
condições que permitem saber que determinadas proposições são verdadeiras ou
plausíveis, mas tentar compreender e usar a capacidade persuasiva da
argumentação na comunicação.
1.
Preâmbulo histórico
Desde o tempo de Homero (século IX ou
VIII a.C.) que a capacidade de persuadir do discurso fascinou os gregos, mas o
seu interesse por essa capacidade só se desenvolveu a partir do momento em que
a democracia substituiu os regimes monárquicos e oligárquicos nalgumas das
principais cidades da Grécia. Segundo uma tradição que remonta a Aristóteles, a
retórica teria sido inventada por Empédocles de Agrigento, filósofo
pré-socrático do século V a.C. de quem Górgias, um dos mais reputados
professores de retórica, teria sido discípulo. Outra tradição atribui a origem
da retórica a Córax e Tísias, que, após a queda dos tiranos e a instauração da
democracia em várias cidades da Sicília em meados do século V a.C., teriam sido
os primeiros a escrever um tratado de retórica para responder às necessidades
dos litigantes numa questão de disputa de terras.
Qualquer que seja a tradição que esteja
correcta, com a democracia, a persuasão passou a estar no centro da acção
política e social e o seu domínio a ser fundamental nos tribunais, para
convencer os juízes, e nas assembleias, para persuadir o povo. Isso fez surgir,
um pouco por toda a Grécia, uma classe de professores itinerantes, “sofistas” e
“mestres de retórica”, os mais famosos dos quais foram Protágoras e Górgias,
que, ao mesmo tempo que ensinavam aos jovens ricos que pretendiam fazer
carreira política a arte do discurso, procuravam compreender o poder persuasivo
do mesmo. As ideias relativistas de Protágoras e Górgias, pondo em causa a
existência de verdades e valores objectivos e fazendo da verdade uma construção
do momento que depende da persuasividade do orador, fornecem a justificação
teórica do uso generalizado que os gregos irão daqui em diante fazer da
retórica. Ao mesmo tempo, os sofistas e os retores investigaram alguns dos
aspectos centrais do discurso e da língua, como a erística (arte da discussão
com o objectivo de vencer uma contenda verbal) e a gramática, fazendo desse
estudo uma disciplina teórica e uma técnica que engloba, além do ensino, teorias
sobre a persuasão e sobre o discurso e pesquisas sobre técnicas de
argumentação.
Esta actividade simultaneamente de
investigação e ensino produziu oradores e retores ilustres como Lísias (c.
445-380 a.C.), Isócrates (436-338 a.C.) e Demóstenes (384-322 a.C.), que
continuaram a cultivar e a desenvolver as técnicas retóricas dos seus mestres.
Contudo, foi apenas com Aristóteles (384-322 a.C.), que curiosamente não era
sofista nem retor, mas filósofo, que a retórica grega clássica atingiu o ponto
máximo de sofisticação e sistematização com que entrou no mundo helenístico e
romano.
Durante o período helenístico, a
retórica, com autores como Teofrasto (370-285 a.C.), que foi discípulo de
Aristóteles, e Hermágoras de Temnos (século II a.C.), continuou a desenvolver-se
no sentido de um sistema global, aprofundando as antigas técnicas e integrando
novas, articulando conhecimentos, introduzindo inovações no estilo, na
argumentação e na acção oratória. Mas é com Cícero (106-43 a.C.), em plena
República romana, que a retórica volta a encontrar um orador do nível dos
principais oradores gregos e, ao mesmo tempo, um teórico, historiador,
professor e filósofo da retórica de grande estatura. Cícero procurou também
superar o conflito entre filosofia e retórica, entre filósofos e oradores, o
que faz dele, o antecessor mais ilustre na antiguidade daqueles que,
actualmente, embora em moldes diferentes, procuram fazer o mesmo.
Fosse nos tribunais, no senado ou nas
assembleias, os discursos tinham uma enorme importância na política romana e,
por isso, quer durante a república quer durante o império, a retórica ocupou um
lugar de primeira ordem na educação e na vida pública. Como outrora em Atenas,
mas de forma mais sofisticada e sistemática devido à multiplicação de tratados e
manuais, os membros das classes superiores recebiam desde pequenos uma educação
retórica que visava prepará-los para o exercício de cargos públicos, que,
previsivelmente, viriam a desempenhar em adultos.
Com o advento do cristianismo, a
retórica foi usada, não sem relutância, por autores como Tertuliano (c. 155-225
d. C.), para divulgar e espalhar a nova religião. A partir do momento em que a
religião cristã se tornou a religião oficial, a retórica grega e romana cedeu o
lugar à “verdade revelada” e à retórica cristã (por exemplo, de Santo
Agostinho), para, com o fim do império romano e do mundo antigo, ser
completamente absorvida e integrada nela.
Este ofuscamento rápido, se tivermos em
conta a importância que tinha na vida pública tanto do mundo romano como grego,
da retórica antiga pela retórica cristã vai manter-se durante toda a idade
média. É só com o renascimento e a redescoberta pelo mundo cristão dos autores
antigos que o interesse pela retórica aumenta. Esse interesse, no entanto, deu
origem, no contexto mais geral dos conflitos políticos e religiosos da época
(reforma e contra-reforma), sobretudo a uma retórica literária, a uma querela
entre partidários de uma retórica do ethos e partidários de uma retórica do
pathos e, com Pedro Ramus (1515-1572), que separa as componentes lógicas da
retórica das estéticas, a uma cisão, que na opinião de autores contemporâneos
como Perelman, esteve na origem do declínio da retórica.
A partir do século XVII, a retórica vai
ser posta ao serviço do poder pontifício e das monarquias. A aristocracia fará
dela um instrumento de distinção social, o que, em conjunto com a ascensão do
método científico e a relevância dada às provas e à verdade, leva ao seu
declínio, que se manterá no século XIX, com a sua condenação pelos românticos
em nome de um ideal de sinceridade, e em grande parte do século XX. Na segunda
metade deste século, primeiro com Chaïm Perelman (1912-1984) e Stephen Toulmin
(n. 1922), e depois com Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e o Grupo µ, assiste-se
a um recrudescimento do interesse pela retórica e a uma tentativa de, embora
noutros moldes, a reabilitar.
2.
A definição de retórica
A palavra “retórica” deriva da palavra
grega rhêtorikê, que significa “arte da palavra”. Mas o que é a retórica e como
podemos defini-la?
Ao dissertar sobre a natureza da
retórica, Quintiliano reflecte sobre as várias definições desta, e deixa-nos
perceber as seguintes quatro como as mais representativas das convenções
retóricas clássicas:
A definição atribuída a Córax e Tísias,
Górgias e Platão: geradora de persuasão;
A definição de Aristóteles: a retórica
parece ser capaz de descobrir os meios de persuasão relativos a um dado
assunto;
Uma das definições atribuídas a
Hermágoras: a faculdade de falar bem no que concerne aos assuntos públicos;
A definição de Quintiliano, na linha dos
retóricos estóicos: a ciência de falar bem.
Manuel Alexandre Júnior, in Aristóteles,
Retórica, p. 15 (adaptado).
Como se pode ver, esta não é uma questão
de fácil resposta e, mesmo na antiguidade, aqueles que estudaram o assunto
discordavam acerca do que é a retórica. Contudo, ao lê-lo com atenção é
possível verificar que as duas primeiras definições dão ênfase à persuasão,
enquanto as duas últimas dão mais relevo ao falar bem. Claro que quem fala bem,
em geral, persuade e quem persuade, em geral, fala bem. Porém, isso não
significa que se trate apenas de uma distinção subtil e sem importância, porque
aqueles que davam mais relevo à persuasão tendiam a dar mais importância às
relações da retórica com a argumentação, enquanto aqueles que davam ênfase ao
falar bem tendiam a dar mais importância às figuras do discurso, à eloquência e
a outros aspectos da comunicação, como o tom de voz e a posição das mãos. No
entanto, a definição mais comum e mais aceite é a da retórica como arte da
persuasão, entendendo-se o termo “arte”, não no sentido moderno, que o aproxima
das belas-artes, mas no sentido antigo de uma técnica ou de um sistema de
regras práticas que possibilitam ao orador obter o assentimento do auditório
por intermédio do discurso. A persuasão é usada em domínios da vida pública em
que é possível deliberar, quando se trata dos interesses da sociedade e dos
cidadãos, e em assembleias públicas e tribunais, embora, também possa ser usada
em diálogos e em conversas privadas. Em resumo, a retórica é uma técnica ou um
sistema de regras de comunicação que visam a persuasão e tem por base um
conhecimento prático ou, na opinião de alguns, empírico. Tanto esta técnica ou
sistema de comunicação como o conhecimento que está na sua base podem ser
ensinados.
Esta caracterização da retórica é a mais
comum e, de certa forma, clássica. Contudo, o interesse que a retórica
despertou nos últimos anos voltou a chamar a atenção para o problema da sua
definição. Como seria de esperar, surgiram outras definições, que, em geral,
procuram realçar um ou outro aspecto da retórica que já se encontra na
definição clássica. É o caso de Chaïm Perelman, que pretende desenvolver a
definição de Aristóteles e pensa que a retórica é o estudo das técnicas
discursivas que visam provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que
lhes são apresentadas, e do Grupo µ, que faz da retórica o estudo do estilo e
das figuras e a vê como aquilo que faz com que um texto seja literário.
3.
A retórica antiga
A retórica antiga corresponde, como
vimos, a um período que vai de Empédocles ou Córax e Tísias até ao fim da
antiguidade. Durante estes cerca de mil anos, foram muitos os oradores, retores
e até filósofos que escreveram sobre a retórica. Assim, em rigor, não há uma
retórica clássica, isto é, um sistema de retórica único e uniforme, mas tantos
sistemas quanto o número daqueles que na antiguidade a estudaram com alguma
atenção. Apesar disso, há um conjunto de características principais que a maior
parte dos autores antigos concorda em atribuir à retórica. Grande parte dessas
características foram pela primeira vez investigadas de forma sistemática por
Aristóteles. Por esse motivo, o nosso trabalho consistirá em larga medida no
estudo do que Aristóteles escreve na obra Retórica, tendo em conta, quando isso
se justificar, o contributo dos autores gregos e latinos posteriores.
Pode parecer que a Retórica de
Aristóteles tem o inconveniente de ser historicamente próxima da época em que a
retórica surgiu e que, devido a isso, lhe escapam todos os desenvolvimentos que
se seguiram. Mas não só, por um lado, depois dele as inovações teóricas não
foram em grande número, como, por outro, a sua retórica representa o ponto culminante
da retórica antiga. Além disso, a importância de Aristóteles para a retórica,
antiga ou contemporânea, é tal que, se tivéssemos de identificar a retórica com
o sistema de um autor, esse sistema seria, sem qualquer dúvida, o seu.
3.1.
A natureza da retórica
Para Aristóteles, a retórica é uma arte
que trata de questões que são do domínio do conhecimento comum e para as quais
não existe arte específica, isto é, questões que não têm resposta científica e
que podem ser objecto de deliberação por parte de um auditório. Este auditório
é normalmente constituído por pessoas simples, facilmente influenciáveis, e
incapazes de ver muitas coisas ao mesmo tempo ou de seguir longas cadeias de
raciocínio. Por conseguinte, é a natureza das questões e do auditório, que
tornam a retórica necessária. Ao contrário de filósofos seus contemporâneos tão
importantes como Platão, Aristóteles considera a retórica útil porque:
A verdade e a justiça não devem ser
vencidas;
Há alguns auditórios que nem mesmo a ciência
mais exacta consegue persuadir;
É preciso ser capaz de argumentar sobre
coisas contrárias, para dominar o tema e para, sempre que alguém argumente
contra a justiça, ser possível refutar os seus argumentos;
Devemos ser capazes de nos defender
verbalmente.
Apesar desta utilidade, a retórica
também pode ser usada de forma injusta e causar grandes danos. É, por
conseguinte, um instrumento que tanto pode ser usado para o bem como para o
mal. No entanto, não é apenas com a retórica que isto acontece. Ela encontra-se
na mesma situação que a maioria dos outros bens e em particular que os bens
mais úteis, como a força, a saúde, a riqueza e o talento militar, que, se forem
usados de forma justa, podem ser muito úteis, mas, se forem usados de forma
injusta, poderão causar muitos prejuízos.
3.2.
Definição aristotélica de retórica
Aristóteles trata a retórica e o
discurso persuasivo como um domínio da realidade sobre o qual é necessário
fazer uma investigação que permita a constituição de um saber. Consequentemente,
define a retórica, não como a arte da persuasão, mas como a arte que permite
determinar quais são os meios de persuasão mais adequados a cada caso.
Entendamos por retórica a capacidade de
descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir. Esta não é
seguramente a função de outra arte; pois cada uma das outras é apenas
instrutiva e persuasiva nas áreas da sua competência; como, por exemplo, a
medicina sobre a saúde e a doença, a geometria sobre as variações que afectam
as grandezas, e a aritmética sobre os números; o mesmo se passando com todas as
outras artes e ciências. Mas a retórica parece ter, por assim dizer, a
faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada. E por
isso afirmamos que, como arte, as regras se não aplicam a qualquer género
específico de coisas.
Aristóteles,
Retórica, I, 2.
A retórica é, portanto, a arte que
estuda os meios de persuasão. Contudo, isso não significa que o seu objectivo
seja apenas teórico. Aquele que os conhece é também aquele que está em melhores
condições para aplicá-los e, por consequência, para ser persuasivo. Por isso, a
retórica não é apenas uma arte que visa compreender o discurso persuasivo. É
também uma técnica que permite ser persuasivo.
3.3.
Géneros de discurso retórico
Existem, segundo Aristóteles, três
géneros de discurso retórico: o deliberativo, o judicial e o epidíctico. Cada
um destes géneros tem características específicas que ajudam a caracterizá-los
e, ao mesmo tempo, a distingui-los uns dos outros. O quadro abaixo apresenta as
características principais de cada um deles.
O discurso deliberativo tem por
auditório os membros da assembleia, a quem procura aconselhar ou dissuadir,
mostrando por meio do exemplo que uma qualquer acção possível futura (uma vez
que só podemos deliberar sobre o que ainda não aconteceu) é conveniente ou
prejudicial. Esta é a forma por excelência do discurso político.
O discurso judicial é o usado pelos
oradores nos tribunais. Tem por auditório os juízes e como intenção acusar ou
defender, mostrando por meio do entimema que uma determinada acção ocorrida no
passado (uma vez que só podemos julgar o que já aconteceu) é justa ou injusta.
O discurso epidíctico tem por auditório
os espectadores no conselho e a sua intenção é elogiar ou censurar, mostrando
por meio da amplificação que alguém, devido às acções que praticou, é virtuoso
ou vicioso, belo ou feio.
De notar, no entanto, que algumas das
características que aparecem no quadro relacionadas com um género de discurso
(como o entimema ou o passado com o género judicial) não são exclusivas desse
género. O entimema, por exemplo, também pode ser usado no discurso
deliberativo, embora não constitua aí o meio principal de prova; e o discurso
epidíctico, embora incida sobretudo sobre acções do presente, também pode
incidir sobre acções já ocorridas.
3.4.
Tipos de provas
Para persuadir, o orador pode recorrer a
dois tipos de provas: as provas não técnicas e as provas técnicas. As provas
não técnicas, que são específicas da retórica judicial, são aquelas que já
existem e que o orador só tem de usar no seu discurso. São provas não técnicas
as leis, os testemunhos, os contratos, as confissões sob tortura e os
juramentos.
As provas técnicas são aquelas que podem
ser preparadas pelo orador. Estas são de três espécies:
As que residem no carácter moral do
orador (ethos);
As que se encontram no modo como se
dispõe o auditório ( pathos);
As que residem no próprio discurso, pelo
que este demonstra ou parece demonstrar (logos).
No primeiro caso, a persuasão é obtida
quando o discurso é proferido de maneira a deixar no auditório a impressão de
que o carácter do orador o torna digno de fé. No segundo, a persuasão é obtida
quando o auditório é levado pelo discurso a sentir emoções. E, no terceiro,
quando se mostra pelo discurso a verdade ou o que parece ser verdade. Neste último
caso, os meios de persuasão são:
O exemplo (que é uma espécie de
indução);
O entimema (que é uma espécie de
silogismo);
O logos
Embora existam outras formas de
persuadir um auditório, para Aristóteles, o método apropriado é a argumentação
retórica, que, como já vimos, é constituída por entimemas e exemplos.
O entimema é uma forma de argumento
dedutivo que permite no domínio dos discursos públicos demonstrar ou provar uma
proposição a partir de premissas que são sempre ou quase sempre prováveis. Como
todos os argumentos, o entimema tem premissas e conclusão. Mas distingue-se dos
outros argumentos e, em particular, dos outros argumentos dedutivos, pelo
seguinte:
É usado em domínios em que as coisas
podem ser de forma diferente;
É formado a partir de poucas premissas
(para poder ser acompanhado por um auditório que não está habituado a seguir
longas cadeias de inferências);
Tem premissas que, embora sejam aceites
pelo auditório, são apenas prováveis.
Normalmente, um entimema é constituído
pela proposição que se quer provar e por uma outra que fornece a razão ou justificação
da primeira, como neste exemplo: “Ela deu à luz, uma vez que tem leite”..
Os entimemas têm origem em dois tipos de
dados: probabilidades e sinais. A probabilidade é o que geralmente acontece,
mas não o que acontece sempre e, por isso, os entimemas que têm premissas
prováveis têm também conclusões prováveis. Os sinais estabelecem uma relação
entre dois factos em que, a partir da existência de um, se estabelece a
existência do outro. Se esta relação é necessária, o sinal chama-se
tekmérion(prova, indício) e dá origem a um argumento irrefutável; se não é
necessária, a conclusão é apenas provável. São exemplos de sinais:
Sócrates ser justo é sinal de que os
sábios são justos;
Ter febre é sinal de estar doente.
Em qualquer dos casos, as premissas têm
de ser opiniões aceites pelo auditório do orador. No caso das probabilidades, o
auditório deve aceitar que é provável que algo ocorra e, no caso dos sinais,
deve acreditar que existem e aceitar que indicam a existência de outra coisa.
Há duas espécies de entimemas: os
demonstrativos e os refutativos. Os primeiros são aqueles que demonstram que
algo é ou não é, enquanto os segundos são aqueles que refutam que algo seja ou
não seja. Tanto no entimema demonstrativo como no refutativo, a conclusão é
obtida a partir de premissas com as quais quer o orador quer o seu adversário
estão de acordo, mas o entimema refutativo conduz a conclusões com que o
adversário está em desacordo.
Além dos entimemas, que são argumentos
válidos, há também os entimemas aparentes. Estes entimemas são os que parecem e
pretendem ser formas válidas de dedução, mas que na verdade não são. Fazem
parte desta categoria algumas das falácias estudadas na lógica informal.
A outra forma de prova admitida por
Aristóteles é o exemplo. O exemplo é semelhante à indução do particular para o
particular e pode basear-se em factos passados ou em histórias inventadas pelo
próprio orador. Neste último caso, os exemplos podem ser parábolas ou fábulas.
Eis como Aristóteles ilustra o uso do exemplo:
Quando os dois termos são do mesmo
género, mas um é mais conhecido do que o outro, então há um exemplo; como
quando se afirma que Dionísio tenta a tirania porque pede uma guarda; pois
também antes Pisístrato, ao intentá-la, pediu uma guarda e se converteu em tirano
mal a conseguiu, e Teágenes fez o mesmo em Mégara; estes e outros que se
conhecem, todos eles servem de exemplo para Dionísio, de quem ainda se não sabe
se é essa a razão por que a pede.
Aristóteles,
Retórica, I, 2.
Aos entimemas e aos exemplos Aristóteles
junta ainda as máximas. As máximas são afirmações gerais que podem ser aceites
ou rejeitadas e que se referem a acções. No entanto, diz Aristóteles, se à
máxima se juntar a causa e o porquê, transforma-se num entimema. Assim, a
máxima é uma espécie de entimema truncado, isto é, uma afirmação cuja
justificação é omitida. Por exemplo:
“Não há homem que seja inteiramente
feliz” e “Não há homem que seja livre” são máximas, mas passam a entimemas, se
lhe acrescentarmos “Porque o homem é escravo da riqueza ou da fortuna”. (Aristóteles, Retórica, II, 21)
Aristóteles considera que as máximas são
muito úteis porque, por um lado, os juízes, devido a terem um espírito rude e
serem incultos, sentem-se satisfeitos por ouvir alguém, falando em geral, ir ao
encontro das suas opiniões pessoais e porque, por outro, as máximas conferem ao
discurso um carácter ético, isto é, se forem honestas farão com que o carácter
do orador pareça honesto.
O
ethos
O segundo tipo de prova técnica é a que
depende do carácter do orador. Aristóteles, como vimos, privilegia o primeiro
tipo, mas o facto de o auditório se deixar muitas vezes persuadir mais pela
imagem que faz do orador, por aquilo que pensa ser o seu carácter, do que pelos
seus argumentos faz do ethos um elemento que o orador não pode desprezar se
quiser ter a garantia de que é persuasivo. O orador persuade por intermédio do
carácter moral, do ethos, quando é visto pelo auditório como alguém que inspira
confiança. Para isso, é preciso que o discurso, mesmo na ausência de provas
pelo logos, crie no auditório uma imagem do orador como pessoa prudente,
virtuosa e benevolente. Esta imagem tem de ser, segundo Aristóteles, a
consequência do discurso do orador e não de aspectos anteriores e exteriores a
esse discurso. É por este motivo que o ethos é uma prova técnica.
Três são as causas que tornam
persuasivos os oradores e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos,
sem necessidade de demonstrações. São elas a prudência, a virtude e a
benevolência. Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou
sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas
delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora
dando uma opinião correcta, não dizem o que pensam por maldade; ou sendo
prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que embora
sabendo eles o que é melhor, não o aconselhem. Além destas não há outra causa.
Forçoso é, pois, que aquele que aparenta ter todas estas qualidades inspire
confiança nos que o ouvem.
Aristóteles,
Retórica, II, 1.
O
pathos
O terceiro tipo de prova é o que se
relaciona com o auditório. Se quer ser persuasivo, o orador deve procurar
suscitar sentimentos e emoções no auditório que o predisponha de forma
favorável para a tese que defende. Embora critique os que o antecederam no
estudo da retórica por terem dado mais importância a esta prova e por terem
descurado o logos, que, segundo ele, é a prova retórica por excelência,
Aristóteles reconhece a importância de emoções como a ira, a compaixão e o medo
para a persuasão do auditório.
O discurso será emocional se,
relativamente a uma ofensa, o estilo for o de um indivíduo encolerizado; se
relativo a assuntos ímpios e vergonhosos, for o de um homem indignado e
reverente; se sobre algo que deve ser louvado, o for de forma a suscitar
admiração; com humildade, se sobre coisas que suscitam compaixão. E de forma
semelhante nos restantes casos. O estilo apropriado torna o assunto
convincente, pois, por paralogismo, o espírito do ouvinte é levado a pensar que
aquele que está a falar diz a verdade. Com efeito, neste tipo de
circunstâncias, os ouvintes estão em tal estado que pensam que as coisas são
assim, mesmo que não sejam como o orador diz; e o ouvinte compartilha sempre as
mesmas emoções que o orador, mesmo que ele não fale. É por esta razão que
muitos impressionam os ouvintes com altos brados.
Aristóteles,
Retórica, III, 7.
Existe uma relação estreita entre o logos,
o ethos e o pathos, uma vez que as emoções (pathos) que o discurso (logos) do
orador suscita no auditório têm um papel importante na construção da imagem que
este faz do carácter (ethos) do orador e, desse modo, da sua capacidade de
persuasão.
3.5.
Partes da retórica
A retórica pode ser dividida em cinco
partes que correspondem às fases pelas quais passa quem constrói um discurso.
Embora muitos elementos desta divisão já estejam presentes na obra de
Aristóteles, é só na Retórica a Herénio, um tratado latino de autor
desconhecido do século I a.C., que aparece pela primeira vez de forma clara. As
cinco partes são a invenção, a disposição, a elocução, a memória e a acção.
A
invenção
Nesta parte, o orador procura descobrir
e conceber os argumentos mais apropriados à tese que pretende defender. Para
isso, deve ter em conta o tema que vai abordar, o género (deliberativo,
judicial e epidíctico) a que este tema pertence e qual, dos três tipos de
provas retóricas (a prova pelo logos, pelo ethos e pelo pathos), é o mais
persuasivo no caso em questão. A invenção está relacionada com as noções de
lugar e de estado da causa.
Um lugar (topos em grego) é um tipo de
argumento provável, um esquema ou quadro argumentativo que pode assumir os mais
diversos conteúdos e de onde, de acordo com o tema a tratar pelo discurso, é
possível fazer derivar argumentos retóricos. Por exemplo, o lugar do mais e do
menos permite fazer argumentos como o seguinte:
Se
nem os deuses sabem tudo, menos ainda os homens.
Aristóteles,
Retórica, II, 23.
Existem dois tipos de lugares, os
lugares comuns e os lugares específicos.
Os lugares comuns são os que podem ser
usados nos três géneros de discurso retórico (deliberativo, judicial e
epidíctico). Os argumentos fundados em relações de causa e efeito, em relações
temporais, em definições e em analogias são tipos de argumentos utilizados nos
três géneros de retórica.
Os lugares específicos são aqueles que
tratam de temas que são próprios de um determinado género retórico. Assim, o
género deliberativo utiliza argumentos que se fundam na noção de utilidade, o
género judicial argumentos que se fundam na noção de justiça e o género
epidíctico argumentos que fazem apelo a qualidades morais (virtude e vício) ou
estéticas (belo e feio). Segundo Aristóteles, os lugares específicos são
aqueles de que é possível derivar mais entimemas.
A teoria dos estados da causa aplica-se
sobretudo ao discurso judicial. Foi elaborada por Hermágoras de Temnos no
século II a.C. e tem por fim determinar com exactidão o ponto a debater de modo
a permitir que o orador escolha a sua linha de argumentação. Normalmente
distinguem-se quatro estados da causa principais:
O estado de conjectura: trata-se de
saber se o facto em questão ocorreu efectivamente; por exemplo, se uma pessoa
que é encontrada ao lado de um cadáver matou;
Oestado de definição: trata-se de, uma
vez estabelecido o facto, saber como designar esse facto do ponto de vista
jurídico; por exemplo, se a pessoa matou, tratou-se de um homicídio voluntário
ou involuntário?
O estado de qualidade: trata-se de saber
como caracterizar esse facto e de apreciar as circunstâncias, o resultado e a
responsabilidade; por exemplo, a morte é útil, justa, oportuna ou há
circunstâncias atenuantes?
O estado de transferência: trata-se de
saber se o tribunal é competente para julgar um caso ou se esse caso deve ser
transferido para outra instância.
A
disposição
Nesta parte, o orador determina a forma
como os argumentos devem estar ordenados no discurso, isto é, elabora o plano
do discurso. Ao longo dos tempos foram propostos diversos planos, mas o mais
comum tinha cinco partes: o exórdio ou proémio, a narração, a confirmação ou
prova, a refutação e a peroração ou epílogo.
O exórdio é a parte introdutória do
discurso e tem por objectivo principal captar o favor e a atenção do auditório.
Para isso, o orador faz geralmente uma breve exposição da questão que vai
tratar ou da tese que vai defender, desculpa-se das suas insuficiências, louva
o talento do adversário e adula o auditório.
A narração consiste na exposição dos
factos e, para ser eficaz, deve ser clara, breve e credível.
A confirmação serve para o orador provar
a tese que defende apresentando os argumentos que a sustentam; e a refutação
para destruir os argumentos contrários a essa posição. Estas duas partes são
frequentemente agrupadas servindo para apresentar e encadear os argumentos.
A peroração ou epílogo é a conclusão do
discurso e nela o orador visa normalmente três objectivos: recapitular a
argumentação, realçar os argumentos principais e comover o auditório,
suscitando piedade ou indignação.
A
elocução
Esta parte da retórica trata da redacção
e do estilo do discurso. A elaboração do discurso centra-se em duas questões
essenciais: a clareza de expressão e o ornamento. O ornamento não tem apenas
uma finalidade estética. A sua finalidade é também fazer do discurso uma arma
eficaz, capaz de vencer no debate. Para isso, com base na noção de
conveniência, os retores latinos formularam a teoria dos três estilos. O
princípio da conveniência (decorum) estabelece que o discurso deve variar
segundo as circunstâncias, o que, na prática, consiste numa adaptação em função
do seguinte:
O género do discurso: as qualidades da
elocução devem variar consoante o discurso pertença ao género judicial,
deliberativo ou epidíctico;
O assunto tratado: no género judicial,
por exemplo, um processo por morte não fará apelo aos mesmos efeitos oratórios
que um processo por roubo;
A confirmação serve para o orador provar
a tese que defende apresentando os argumentos que a sustentam; e a refutação
para destruir os argumentos contrários a essa posição. Estas duas partes são
frequentemente agrupadas servindo para apresentar e encadear os argumentos.
Da parte da disposição a que respeita o
discurso: a prova pelo pathos, por exemplo, é mais adequada à peroração,
enquanto a prova pelo ethos ao exórdio.
A teoria dos três estilos aparece pela
primeira vez na Retórica a Herénio e distingue:
Um estilo baixo ou simples, claro e
próximo da linguagem corrente;
Um estilo médio ou agradável, mais
trabalhado e metafórico;
Um estilo elevado ou nobre, muito trabalhado
e adornado.
O quadro seguinte mostra a relação do
estilo com outros aspectos fundamentais do discurso retórico.
O orador deve adoptar o estilo que
melhor lhe permite atingir o objectivo que tem em vista: o elevado para
comover, sobretudo na peroração; o simples para informar e explicar, sobretudo
na narração e na confirmação; o médio para agradar, sobretudo no exórdio. Os
retores antigos deram uma tradução geográfica a esta divisão, definindo
igualmente três estilos regionais, muito semelhantes aos três níveis que
acabámos de ver:
O estilo ático (da região de Atenas):
breve e simples, próximo do estilo simples;
O estilo rodiano (da cidade de Rhodes):
moderadamente ornamentado, próximo do estilo médio;
O estilo asiático (da Ásia menor):
abundante e muito ornamentado, próximo do estilo elevado.
As figuras de estilo são a principal
forma de embelezar e de dar vivacidade ao discurso. Os oradores antigos viam as
figuras como um meio de impressionar, de seduzir e de emocionar, isto é, de
persuadir. Por isso, a função das figuras não é meramente decorativa. Pelo
contrário, contribuem para que o discurso seja uma arma eficaz no debate
oratório. As figuras são muito numerosas e não há uma classificação que seja
universalmente aceite. Cícero distingue as figuras de pensamento, como a ironia
e a alegoria, e as figuras de palavras, como o trocadilho e a metáfora. De uma
maneira geral, os retóricos latinos insistiram na capacidade que as figuras têm
de provocar a convicção do auditório metendo-lhe “pelos olhos dentro”, com
força e de imediato, o que está em questão.
A
memória
Os oradores da antiguidade tinham de
pronunciar com frequência longos discursos sem o auxílio de notas escritas.
Isso levou a que dessem grande atenção à memorização. Alguns autores latinos,
como Cícero, viam a memória apenas como uma aptidão natural e não como uma
técnica, pelo que não a consideravam uma parte da retórica. Mas outros, como
Quintiliano, consideravam-na também uma técnica que pode ser aprendida. Um dos
processos que Quintiliano indicava para memorizar um discurso é o da
mnemotecnia, que consiste em decompor o discurso em partes, que são aprendidas
de cor, às quais são associados sinais mentais que facilitem a sua recordação
na altura certa. Mas, segundo ele, a memória depende também do estado físico do
orador (é necessário ter dormido bem e estar de boa saúde) e da estrutura do
discurso (isto é, da sua maior ou menor coerência).
A
acção
A acção designa a pronunciação efectiva
do discurso. Trata-se de um factor essencial da persuasão retórica, na medida
em que a imagem do orador e, portanto, a sua credibilidade, dependem, além do
ethos, da sua presença física face ao auditório. Por esta razão, a teoria da
acção interessa-se pelos diferentes elementos da presença física do orador: por
exemplo, a respiração, a colocação e o tom de voz, a mímica da face, a atitude
do corpo e os gestos.
A pronunciação assenta na voz, ou seja,
na forma como é necessário empregá-la de acordo com cada emoção (por vezes
forte, por vezes débil ou média) e como devem ser empregues os tons, ora
agudos, ora graves ou médios, e também quais os ritmos de acordo com cada
circunstância.
Aristóteles,
Retórica, III, 1.
4.
A nova retórica
No final dos anos 50 e princípios dos
anos 60 do século XX, o interesse pela retórica renovou-se com o surgimento do
que ficou conhecido como a nova retórica. Não se tratava de um movimento
homogéneo, mas de várias correntes que partilhavam entre si um interesse muito
diverso pela retórica. Uma dessas correntes incluía o Grupo μ e Roland Barthes
e reduzia a retórica ao conhecimento dos procedimentos da linguagem que são
característicos da literatura, isto é, às figuras de estilo.
A esta corrente de tendência literária
opunha-se, no entanto, a de Chaïm Perelman, cuja obra principal, escrita com
Lucie Olbrechts-Tyteca, é o Tratado de Argumentação publicado em 1958. Na
tradição de Aristóteles, Perelman vê na retórica a teoria do discurso
persuasivo. O seu ponto de partida é o problema da justificação dos juízos de
valor — e, por extensão, da moral, do direito e da política — e procura uma
lógica paralela à lógica demonstrativa, uma lógica dos juízos de valor que irá
identificar com a retórica. A obra de Perelman é responsável pelo ressurgimento
do interesse e pela renovação da retórica no século XX. É essa obra que vamos
agora estudar.
4.1.
Demonstração e argumentação
Nas suas obras sobre a lógica,
normalmente agrupadas com o título de Organon, Aristóteles distingue dois tipos
de raciocínios: aqueles a que chama analíticos e aqueles a que chama
dialécticos. Os raciocínios analíticos são os que constituem formas de
inferência válida, isto é, que têm uma forma tal que sempre que as suas
premissas são verdadeiras a conclusão é também verdadeira. Devido a esta propriedade,
Aristóteles chamava a estes raciocínios silogismos científicos. Os silogismos
científicos são demonstrativos e impessoais, porque, devido à sua forma, sendo
as premissas verdadeiras, provam a conclusão, que é independente da opinião
humana. Quer queiramos quer não, a conclusão de um silogismo analítico com
premissas verdadeiras só pode ser verdadeira e a sua recusa implicaria
necessariamente uma contradição. Os silogismos dialécticos, pelo contrário, são
aqueles cujas premissas são apenas prováveis, ou geralmente aceites, seja por
todos os seres humanos seja pela maioria ou apenas por alguns. Para Perelman,
isso significa que, ao contrário do que acontece com os silogismos científicos,
os silogismos dialécticos têm por fim persuadir ou convencer. Não constituem
inferências formais, válidas e constringentes, mas apenas argumentos que
procuram fazer admitir teses, que podem ser ou não controversas e que,
consoante os casos, são mais ou menos verosímeis, mais ou menos fortes e
convincentes. Por este motivo, os argumentos dialécticos não são nem
demonstrativos nem impessoais. São raciocínios persuasivos, que incidem sobre a
opinião e que, por isso, devem ser distinguidos dos analíticos, que incidem
sobre a verdade.
Esta distinção aristotélica que, embora
desse a primazia ao conhecimento científico, concedia um lugar importante à
dialéctica foi posta em causa por Descartes. Com Descartes a lógica passou a
identificar-se apenas com a lógica formal, isto é, com os raciocínios
analíticos de Aristóteles. Ao tomar como modelo “o método dos geómetras”, ao
usar como critério de verdade a prova e ao ter como objectivo a descoberta da
verdade em todas as coisas, Descartes baniu do domínio do conhecimento qualquer
saber que, como o que deriva da dialéctica, se apresente como meramente
verosímil ou provável. As regras do método cartesiano são em larga medida a
consequência da aplicação desta ideia.
Se Descartes se tivesse limitado a
aplicar o método ao discurso matemático, não haveria problema. Porém, Descartes
foi mais longe e fez das suas regras regras universalmente válidas, isto é,
regras que podem ser aplicadas em todo e qualquer domínio do conhecimento
humano, tanto teórico como prático. Para Perelman, este procedimento é
incorrecto, uma vez que raciocinar não consiste apenas em fazer cálculos nem em
passar dos axiomas e das regras de um sistema formal para os teoremas que daí
podem ser derivados. As consequências danosas desta perspectiva da
racionalidade são, segundo Perelman, agravadas pelo facto de a lógica moderna,
tal como se desenvolveu desde meados do século XIX, se ter identificado, devido
à influência de Kant e dos lógicos matemáticos, com a lógica formal e ter
negligenciado completamente os raciocínios dialécticos. Uma consequência desta
identificação da lógica com a lógica formal foi a desvalorização da retórica,
que passou a ser vista como tendo por fim agradar ou, na melhor das hipóteses,
fazer aceitar verdades estabelecidas por intermédio de métodos que tinham por
base a lógica formal. Mas, a consequência principal é que os processos pelos
quais confrontamos argumentos a favor ou contra uma tese com o objectivo de
persuadir ou convencer um auditório da sua razoabilidade, com que tentamos
mostrar a conformidade das nossas acções com as nossas convicções e procuramos
justificar as nossas convicções, ficam sem justificação racional, uma vez que
escapam à lógica formal e à demonstração matemática. Na opinião de Perelman, a
desvalorização da dialéctica e da retórica — primeiro com Pedro Ramus, depois
com Descartes e, por fim, com os lógicos de formação matemática do século XIX —
teve como consequência a negação da razão prática e a impossibilidade da
constituição de uma filosofia moral, de uma filosofia política e de uma
filosofia do direito. Por outras palavras, Perelman pensa que a redução da
verdade à prova, que caracterizou o pensamento ocidental nos últimos séculos,
ao recusar aquilo a que chama uma lógica própria da persuasão — que é a da
dialéctica e da retórica —, teve como consequências a exclusão da ética, do
direito e da política do domínio da racionalidade e o abandono a factores
irracionais e arbitrários, à força e à violência, a solução dos conflitos de
carácter prático.
Foi com esta dificuldade que Perelman se
viu confrontado quando, de um ponto de vista positivista, procurou raciocinar
sobre os valores. Os positivistas — os últimos e mais extremos representantes
da corrente de pensamento que reduz a lógica à lógica formal e limita a sua
aplicação às ciências positivas —, para quem os juízos de valor são apenas a
expressão de emoções irracionais sem qualquer valor cognitivo, pensavam ser
impossível a constituição de uma filosofia prática que, ao mesmo tempo, guie
racionalmente a acção humana e justifique a moral, o direito e a política. Este
cepticismo, que, segundo Perelman, é uma consequência do pensamento cartesiano
e conduz à mais completa arbitrariedade no domínio da prática é inaceitável.
Foi esta conclusão que o levou a procurar constituir uma lógica dos juízos de
valor.
4.2.
A lógica do preferível
Para sua surpresa, Perelman descobriu
que não existe uma lógica dos juízos de valor e que a lógica que procurava nada
mais era do que a antiga retórica greco-latina. Quando se trata de valores, a
questão já não é, como nas matemáticas e nas ciências positivas, descobrir a
verdade, mas estabelecer o que é preferível e, para o fazer, o método não
consiste em deduções e induções correctas, mas em todo o género de argumentos,
por intermédio dos quais se visa provocar e ganhar a adesão do auditório às
teses que lhe são apresentadas. Ora, é precisamente nisto que consiste a
retórica tal como foi desenvolvida na antiguidade: um conjunto de técnicas de
discurso, de processos argumentativos que visam provocar a adesão dos espíritos
através da persuasão. Por este motivo, Perelman considerou ser necessário
alargar a noção de razão e, a fim de conciliar o pensamento e a acção, a razão
teórica e a razão prática, juntar ao estudo da lógica formal o estudo dos
raciocínios cujo fim é persuadir ou convencer. É a esta tarefa que, prolongando
e amplificando a retórica de Aristóteles, se dedica a nova retórica.
A nova retórica é, no entanto, diferente
da antiga. A retórica antiga, como vimos, diz respeito às técnicas usadas para
persuadir um auditório que tem como características principais ser composto por
pessoas simples e incapazes de seguir longas cadeias de argumentos. A nova
retórica, pelo contrário, dirige-se a toda e qualquer espécie de auditório,
quer se trate de toda a humanidade, da opinião pública nacional ou
internacional, de uma multidão, de um conjunto de especialistas, de um
indivíduo ou de nós próprios quando intimamente deliberamos sobre um dado
assunto. Numa palavra, a nova retórica abrange e ultrapassa os domínios que
Aristóteles tinha repartido pela dialéctica e pela retórica e, por isso, tem
como objecto de estudo o discurso não demonstrativo, os raciocínios que não são
inferências formalmente correctas, isto é, todo o discurso que tenha por fim
convencer ou persuadir todo e qualquer auditório sobre o que quer que seja. É
por isso que Perelman diz que a retórica tem como objecto
[...] o estudo das técnicas discursivas
que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que são
apresentadas ao seu assentimento.
Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,
Traité de l’argumentation, p. 5.
Além disso, Perelman pensa não existirem
razões para limitar a retórica ao estudo das técnicas do discurso falado e que,
dado o papel moderno da imprensa, a nova retórica, ao contrário da antiga, deve
estudar sobretudo os textos impressos que, como qualquer outro texto, se
dirigem sempre também a um dado auditório, mesmo que o escritor não tenha disso
consciência.
Por outro lado, a retórica estuda apenas
os meios discursivos de obter a adesão dos espíritos. Embora existam outros
métodos — muitas vezes mais eficazes — de persuasão (como a carícia ou a
bofetada), só a persuasão pela linguagem é do domínio da retórica.
Esta lógica do preferível, a teoria da
argumentação, distingue-se da demonstração de várias maneiras:
A adesão do auditório é, para Perelman,
de grande importância porque pressupõe um contacto entre o orador e o
auditório. E como esse contacto tem por finalidade, da parte do orador, agir
sobre o auditório, modificar as suas convicções por meio do discurso, provocar
a sua adesão, incitá-lo à acção, a credibilidade do orador junto do auditório,
o ethos de que falava Aristóteles, é um aspecto que nenhum orador pode
negligenciar. Outro aspecto que o orador deve ter em conta é a utilização de
métodos apropriados tanto ao objecto do discurso, aquilo de que fala, como,
sobretudo, ao tipo de auditório a que se dirige. Assim, o orador tem de
escolher o estilo da sua argumentação e o tipo de argumentos que vai utilizar
em função do assunto e do auditório a que se dirige. O orador deve sempre
adaptar-se ao seu auditório. Um argumento que, por exemplo, não esteja adaptado
ao auditório pode originar objecções ou parecer fraco e isso, ao pôr em causa o
ethos do orador, ao fazê-lo parecer de má-fé ou indigno de confiança,
transmitir-se à totalidade do discurso. A força de um argumento depende,
segundo Perelman, das premissas e da pertinência da argumentação, das objecções
que lhe podem ser feitas e de como podem ser refutadas e tudo isto depende das
convicções, das tradições e dos métodos de raciocínio do auditório.
4.3.
Os pontos de partida da argumentação
O objectivo do orador quando argumenta é
provocar a adesão do auditório às teses que defende. Para o conseguir, o orador
tem de mostrar que essas teses se seguem de premissas aceites por aqueles a
quem o orador se dirige. Por este motivo, Perelman afirma que o orador tem de
usar como ponto de partida dos seus argumentos apenas teses aceites pelo
auditório. Estas teses podem incidir sobre o real, e serem factos, verdades e
presunções ou sobre o preferível e serem valores, hierarquias e lugares do
preferível.
Factos,
verdades, presunções, valores e lugares
Os factos e as verdades são, por
princípio, objectivos e impõem-se a todos. No entanto, podem ser contestados.
Se isso acontecer, o orador já não os pode usar na argumentação, a não ser que
mostre que a contestação de que são alvo não tem razão de ser. De qualquer
modo, os factos e as verdades podem ser postos em causa e não têm um estatuto
definitivo. A verdade não é absoluta nem subjectiva. É um fenómeno social que
resulta de um acordo do auditório universal.
As presunções não constituem pontos de
partida tão seguros quanto os factos e as verdades, mas apesar disso permitem
fundar uma convicção razoável. As presunções têm por base o que normalmente
ocorre e o que é razoável pressupor, mas podem, no entanto, ser postas em causa
pelos factos. São exemplos de presunções que “a qualidade de um acto manifesta
o carácter da pessoa que o pratica” ou que “aquilo que nos é dito é por norma
verdadeiro”.
Os valores permitem estabelecer uma
ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, colocando uma delas
acima ou julgando-a superior a outra, enquanto as hierarquias expressam os
valores hierarquizados. Eis alguns exemplos deste tipo de valores:
os valores positivos e negativos (como
bom, belo, verdadeiro, mau, feio, falso, etc.), que afirmam uma atitude
favorável ou desfavorável a respeito de algo;
os valores abstractos (como beleza e
justiça);
os valores concretos (como Portugal ou
ONU), que estão ligados a um ser, um grupo ou uma instituição, valorizando a
sua unicidade.
As hierarquias podem ser concretas ou
abstractas, homogéneas ou heterogéneas. As hierarquias heterogéneas estabelecem
uma relação de preferência entre valores diferentes, sejam eles concretos ou
abstractos (por exemplo, os homens são superiores aos animais; a justiça é
superior ao útil); enquanto as homogéneas dão preferência a uma maior
quantidade de um valor positivo ou a uma menor quantidade de um valor negativo,
quer estes valores sejam concretos ou abstractos.
Os lugares do preferível têm um papel
idêntico ao das presunções e podem ser divididos, como fez Aristóteles, em
lugares comuns, que estabelecem o que vale mais em todo e qualquer domínio, e
em lugares específicos, que determinam o que é preferível em domínios
particulares. Os lugares da quantidade (por exemplo, “é superior o que é mais
útil ao maior número”) e da qualidade (por exemplo, “é superior o que é único,
incomparável, raro ou difícil”) que apontam um critério quantitativo e
qualitativo para a preferência de algo são os mais comuns, mas há outros
lugares como os da ordem (que afirma a superioridade da causa sobre o efeito),
do existente (que justifica a preferência por aquilo que é sobre o que é apenas
possível), de essência (que confere superioridade àquilo que representa melhor
a essência) ou da pessoa (que exprime a superioridade do que lhe está ligado
sobre aquilo que diz respeito às coisas ou aos outros seres).
Figuras
retóricas
Os factos, verdades, presunções, valores
e lugares que servem de ponto de partida ao orador são seleccionados de um
conjunto muito alargado de dados disponíveis. Uma vez esta selecção efectuada,
o orador procurará mostrar a sua importância por intermédio de diversas
técnicas de apresentação. O objectivo é conferir-lhes presença, isto é,
colocá-los no primeiro plano da consciência dos auditores. As figuras da
retórica contribuem de forma decisiva para a obtenção desse efeito. As
principais figuras da retórica são as seguintes:
Amplificação — que consiste no
desenvolvimento oratório de um assunto;
Congérie — que é a amplificação por
enumeração das partes de um conjunto;
Pseudodiscurso — pelo qual se atribui
ficticiamente palavras a alguém;
Hipotipose — que consiste em descrever
um acontecimento como se se desenrolasse diante de nós;
Enálage do tempo — que consiste na
substituição de um tempo verbal por outro contrariando as regras da gramática
(“se falas, estás morto”).
Desde o século XVI, devido à influência
de Pedro Ramus, as figuras retóricas foram vistas como figuras de estilo, tendo
uma função meramente ornamental. No entanto, Perelman pensa que as figuras têm
também uma função persuasiva e que, por este motivo, devem ser consideradas
figuras retóricas ou de estilo, consoante a função que tenham no discurso.
4.4.
O auditório
Quem constitui o auditório a que o
orador se dirige? Por vezes a resposta é fácil: o auditório é constituído por
todos aqueles a quem o orador se dirige directamente. É isso que normalmente
faz um advogado no tribunal ou, para usar um exemplo que nos é muito familiar,
o professor numa aula. Mas nem sempre o auditório é constituído por aqueles a
quem o orador se dirige directamente. Por exemplo, um político que discurse no
parlamento dirige-se apenas a quem o ouve presencialmente ou também àqueles que
o possam estar a ver pela televisão, dirige-se a todos os que o podem ouvir ou
apenas a uma parte?
Auditório particular e auditório
universal
Para Perelman, o auditório é constituído
pelo “conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua argumentação”
(Chaïm Perelman, O Império Retórico, p. 33). Este conjunto pode ir do o orador,
numa deliberação íntima, à totalidade da humanidade e, por isso, pode ser de
dois tipos:
auditório particular, cuja variedade é
infinita e tanto pode ser constituído por um único indivíduo como por qualquer
grupo restrito de pessoas;
auditório universal, que é constituído
por todos aqueles que são capazes de seguir uma argumentação, competentes e
razoáveis, e cujo acordo determina o que é verdade objectiva.
Discurso persuasivo e discurso
convincente
A distinção entre auditório universal e
auditório particular está na base da distinção entre discurso persuasivo e
discurso convincente:
O discurso persuasivo é aquele que visa
persuadir os auditórios particulares por intermédio de argumentos que lhes são
adequados.
O discurso convincente é o que se dirige
ao auditório universal e cujas premissas e argumentos são universalizáveis,
isto é, podem ser aceites por todos os membros do auditório universal, tendo
assim este auditório o papel de decidir do carácter convincente da
argumentação.
4.5.
As técnicas argumentativas
Os argumentos usados pelo orador para
intensificar a adesão do auditório a certas teses constituem, segundo Perelman,
meios de prova. Estes meios de prova são, no entanto, diferentes dos meios
usados pela lógica tradicional. Para a lógica tradicional, a prova deve ser
objectiva, necessária e universal. Este tipo de prova, contudo, não tem
qualquer utilidade quando se trata de deliberar, de decidir ou de persuadir. Por
isso, paralelamente à lógica tradicional, que usa como meios de prova
argumentos dedutivos e argumentos indutivos, é necessário também admitir os
argumentos dialécticos ou retóricos, que visam a eficácia persuasiva e a adesão
do auditório. Para Perelman, estes argumentos dialécticos e retóricos podem ser
de três tipos:
argumentos quase lógicos;
argumentos fundados na estrutura do
real;
argumentos que fundam a estrutura do
real.
Argumentos quase lógicos
Há várias categorias de argumentos quase
lógicos. Em todos os casos, no entanto, trata-se de argumentos que revelam
semelhanças com os raciocínios formais, de natureza lógica ou matemática, mas
que se distinguem destes por pressuporem a adesão a teses de natureza não
formal e por haver neles aspectos que são controversos e os tornam não
constringentes. São argumentos quase lógicos:
a incompatibilidade — que lembra o
princípio da contradição;
a identificação total ou parcial — que
lembra o princípio da identidade formal e resulta da definição ou da análise;
a regra de justiça;
a reciprocidade;
a transitividade — que lembra uma
transitividade formal;
a inclusão, a divisão, a comparação e a
probabilidade não calculável.
Um exemplo de argumento quase lógico é o
de incompatibilidade: mostra-se a uma pessoa que espera nunca ter de matar um
ser vivo que o tratamento de um abcesso vai provocar a morte de uma multidão de
micróbios.
Argumentos
fundados na estrutura do real
Os argumentos fundados na estrutura do
real baseiam-se em ligações entre elementos do real que podem ser de vários
tipos:
ligações de sucessão, que unem coisas da
mesma natureza, como a relação de causa a efeito;
ligações de coexistência, que
estabelecem relações entre realidades de níveis diferentes, das quais uma é
tomada como a expressão ou a manifestação da outra, como a relação que existe
entre a pessoa e os seus actos, juízos ou obras;
ligações simbólicas, que se caracterizam
por uma relação de participação entre os símbolos e aquilo que eles evocam,
aquilo que é por eles simbolizado.
Argumentos que fundam a estrutura do
real
Os argumentos que fundam a estrutura do
real são argumentos que criam ou completam esta estrutura tornando visíveis
ligações que tinham estado até aí invisíveis. São argumentos que a partir de um
caso conhecido permitem estabelecer um precedente, um modelo ou uma regra
geral. São argumentos deste tipo:
o exemplo, que permite a partir de um
caso particular fundar uma previsão ou uma regra;
a ilustração, que permite tornar presente
à consciência uma regra já estabelecida;
o modelo, que apresenta um caso
particular como algo a imitar, permitindo fundar o que deve ser;
a analogia, que estabelece uma
semelhança e assimila duas relações com o objectivo de esclarecer, fundar ou avaliar
por meio de uma relação conhecida, a que se chama foro, uma relação menos
conhecida, a que se chama tema;
a metáfora, que é uma analogia
condensada, como o mostra o caso de “a velhice está para a vida assim como a
noite para o dia”, de que derivam as metáforas “a velhice do dia” ou “o
anoitecer da vida”. A metáfora tem um papel fundamental nas artes, nas ciências
e na filosofia.
Dissociação
de noções
Além destes três tipos de argumentos,
Perelman introduz também a dissociação de noções, que, segundo ele, é
particularmente importante no pensamento filosófico. A dissociação é usada
pelos filósofos para ultrapassar as incompatibilidades de pensamento com que
deparam. A estratégia consiste em estabelecer pares hierarquizados e resolver
as dificuldades dando a preferência a um dos pares. Foi o que fez Kant quando
tentou superar a dificuldade que resulta do facto de a ciência pressupor o
determinismo e a moral pressupor a liberdade. Dissociou a noção de realidade em
realidade fenoménica, sujeita ao determinismo, e realidade numénica, onde
existe liberdade.
Todo o pensamento filosófico pode ser
apresentado mediante um encadeamento de pares deste tipo. O par principal que
resulta da dissociação de noções é o par aparência/realidade, do qual derivam
pares como opinião/verdade, nome/coisa, sujeito/objecto, meio/fim,
relativo/absoluto, acidente/essência, individual/universal, teoria/prática. A
introdução de alguns destes pares está directamente relacionada com a
influência do pensamento de um dado filósofo. Platão, por exemplo, está na
origem de pares como aparência/realidade, opinião/ciência, corpo/alma,
devir/imutabilidade; e Espinoza é responsável pela introdução de pares como
imaginação/entendimento, universal/individual, abstracto/concreto,
contingência/necessidade.
4.6.
A eficácia da argumentação
A eficácia da argumentação não depende
apenas do efeito de argumentos isolados, mas também da totalidade do discurso,
da interacção entre os argumentos e até dos argumentos que ocorrem
espontaneamente no espírito de quem ouve o discurso. Um aspecto que determina a
eficácia do discurso é a ideia que o auditório tem do orador, o ethos do
orador, como lhe chamava Aristóteles, que, por sua vez, é ela própria
influenciada pela qualidade do discurso, uma vez que o orador é por ele
responsável.
Para que a argumentação seja eficaz, diz
Perelman, é necessário que seja ouvida com interesse e benevolência. Para o
conseguirem, os oradores recorrem, como já tinha dito Aristóteles, ao exórdio,
que pode, por vezes, ser substituído por uma apresentação do orador feita pelo
presidente da sessão em que o orador discursa. Quer o exórdio quer a
apresentação tornam-se desnecessários quando o orador goza de grande reputação
e simpatia junto do auditório.
O orador organiza a sua argumentação
dispondo o conjunto dos argumentos que constituem o discurso segundo uma
determinada ordem. Qual deve ser essa ordem? A tradição consagrou três ordens
diferentes, consoante a posição dos argumentos mais fortes e mais fracos no
discurso: ordem de força crescente, ordem de força decrescente e a ordem nestoriana.
Qualquer uma destas ordens tem inconvenientes. A ordem crescente, como começa
pelos argumentos mais fracos, pode indispor o auditório, afectar o ethos do
orador e esmorecer o prestígio e a atenção que lhe são concedidos. A ordem
decrescente, ao terminar o discurso com os argumentos mais fracos, corre o
risco de deixar nos auditores uma má impressão. Por último, a ordem nestoriana
tem o inconveniente de pressupor que a força dos argumentos é imutável,
independente da ordem pela qual os argumentos são apresentados, quando, de
facto, ela depende da maneira como são recebidos. Isto leva Perelman a dizer
que o critério que deve ser adoptado na organização do discurso é o da
eficácia. Como a argumentação tem por finalidade persuadir o auditório, a ordem
deve ser adaptada a esta finalidade: cada argumento deve aparecer no discurso
no momento em que exerce maior efeito, isto é, quando o auditório estiver mais
disposto a acolhê-lo. É impossível formular regras gerais com base neste
critério, embora em certas matérias e perante certos auditórios exista uma
ordem que é esperada pelo auditório e da qual não convém que o orador se afaste
sem uma forte razão.
Todas estas considerações permitem
distinguir a argumentação da demonstração que, como já dissemos, não precisa
ter em conta as relações entre orador e auditório.
4.7.
Retórica e filosofia
Qual a relevância da nova retórica para
a filosofia? A filosofia está tradicionalmente ligada à noção de verdade e a
retórica à de persuasão e, aparentemente, nada pode afastar mais as duas
disciplinas. Como vimos, segundo Perelman, o ideal cartesiano de um saber
fundado na prova e na demonstração permitiu nos últimos séculos o florescimento
dos sistemas lógicos e matemáticos formalizados e das ciências da natureza, que
forneceram um modelo ao pensamento filosófico que exclui a retórica e a
dialéctica por serem do domínio do verosímil. Contudo, toda a actividade
intelectual, como é o caso da filosofia, que não pertence nem ao domínio do
necessário nem ao domínio do que é completamente arbitrário, isto é, cujas
teses são controversas e podem ser sustentadas com argumentos, depende da
retórica e da dialéctica. A filosofia é, para Perelman, o estudo sistemático
das noções confusas, isto é, dos conceitos acerca dos quais é praticamente
impossível haver acordo. Nestas circunstâncias, o filósofo apresenta
perspectivas que não se impõem a todos e, por isso, tem de as suportar com
argumentos, metáforas e analogias, com que pretende mostrar a sua adequação e,
desse modo, conquistar a adesão do auditório. Este processo faz com que a
filosofia, como qualquer outro domínio em que é preciso deliberar e decidir, se
encontre numa relação necessária com o auditório, relação essa que a coloca na
dependência da teoria da argumentação.
Ora, é esta impossibilidade de
negligenciar o auditório a que sempre se dirige que faz com que a argumentação
filosófica seja, inevitavelmente, tributária duma teoria da argumentação ou
duma teoria do discurso persuasivo de que é, sustenta Perelman, uma aplicação
particular. Enunciada com toda a clareza, a tese [...] é a de que “a prova
filosófica é de natureza retórica e, na medida em que o raciocínio filosófico
se apoia em premissas que lhe são próprias, liga-se a teses comummente
admitidas, que são os princípios comuns, as noções comuns e os lugares comuns”.
Rui A. Grácio, Racionalidade
Argumentativa, p. 88.
Para Perelman há, portanto, uma relação
estreita entre filosofia e retórica. Claro que a teoria da argumentação não
encontra aplicação apenas na filosofia. O que distingue a argumentação
filosófica das outras formas de argumentação retórica é o facto de esta ter
como seu auditório específico o auditório universal.
Álvaro
Nunes
Bibliografia
Aristóteles,
Retórica (Lisboa: IN-CM, 1998).
Chaïm
Perelman, “Argumentação”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 11 (Lisboa: INCM, 1987,
pp. 234-265).
Chaïm
Perelman, O Império Retórico (Porto: Asa, 1993).
David
Ross, Aristóteles (Lisboa: Dom Quixote, 1987, pp. 275-281).
Michel
Meyer, Manuel M. Carrilho, Benoît Timmermans, História da Retórica (Lisboa:
Temas e Debates, 2002, pp. 43-57, 239-246).
Rui
Alexandre Grácio, Racionalidade Argumentativa (Porto: Asa, 1993).
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