No início de um novo ano, 2019 da era
cristã, 5779 do calendário hebraico, 5120 do hindu, 4715 do chinês, 2562 do
budista, 1441 do muçulmano, deixo aí uma breve reflexão sobre um tema
essencial, o cuidado — cuidar e ser cuidado —, constitutivo do ser humano.
Entre as grandes obras do século XX,
figura uma do filósofo alemão Martin Heidegger: Sein und Zeit (Ser e Tempo).
Nela, retoma a célebre fábula sobre o Cuidado, de Higino, um escravo culto (64
a. C.-16 d. C.). Fica aí, traduzida literalmente.
“Uma vez, ao atravessar um rio,
‘Cuidado’ viu terra argilosa. Pensativo, tomou um pedaço de barro e começou a
moldá-lo. Enquanto contemplava o que tinha feito, apareceu Júpiter. ‘Cuidado’
pediu-lhe que insuflasse espírito naquela figura, o que Júpiter fez de bom grado.
Mas, quando ‘Cuidado’ quis dar o próprio nome à criatura que havia formado,
Júpiter proibiu-lho, exigindo que lhe fosse dado o seu. Enquanto ‘Cuidado’ e
Júpiter discutiam, surgiu também a Terra (Tellus) e também ela quis conferir o
seu nome à criatura, pois fora ela a dar-lhe um pedaço do seu corpo. Os
contendentes invocaram Saturno como juiz. Este tomou a seguinte decisão, que
pareceu justa: ‘Tu, Júpiter, deste-lhe o espírito; por isso, receberás de volta
o seu espírito por ocasião da sua morte. Tu, Terra, deste-lhe o corpo; por
isso, receberás de volta o seu corpo. Mas, como foi ‘Cuidado’ a ter a ideia de
moldar a criatura, ficará ela na sua posse enquanto viver. E, uma vez que entre
vós há discussão sobre o nome, chamar-se-á ‘homo’ (Homem), já que foi feita a
partir do húmus (Terra) ‘.”
Martin Heidegger, um dos maiores
filósofos do século XX, retoma a fábula e reflecte sobre o cuidado enquanto
estrutura essencial do ser humano. Cuidar e ser cuidado são determinantes da
sua constituição. O que seria de nós, se, ainda dentro do ventre materno, não
houvesse cuidado, se, ao nascermos, não cuidassem de nós? O cuidado nunca nos
pode abandonar. Sem o cuidado ao longo da vida toda, do nascimento à morte, o
ser humano desestrutura-se, sente-se perdido, só, não encontra sentido e acaba
por morrer, entregue ao abandono.
O cuidado tem uma dupla vertente. Por um
lado, significa preocupação mais ou menos ansiosa e a consequente prevenção. É
assim que os pais dizem aos filhos, ameaçados por perigos: tem cuidado, filho;
tem cuidado, filha! E prevenimos os amigos que nos pedem conselho: eu não iria
por aí, tenha cuidado, acautele-se! Por outro lado, e sobretudo, tem a ver com
a entrega abnegada aos outros, cuidando deles em todas as dimensões, pois a
perfeição do ser humano na realização das suas possibilidades mais próprias é
tarefa do cuidado.
Cuidar de quem e de quê?
O cuidado é, pela sua própria natureza,
abrangente. Todos temos de cuidar. Cuidar de nós, cuidar de todos os outros,
pois só somos na inter-relação, cuidar da Natureza, cuidar da transcendência e
de Deus em nós. Sendo o ser humano um ser
bio-psico-social-espiritual-transcendente, terá de estender o cuidado a todas
as suas dimensões. Para poder ser e ser humano, autenticamente humano. Cuidar
por afectos, palavras — ah! a cura pela palavra! — e por obras.
Mas, se o cuidado — ser cuidado e cuidar
— é constitutivo do ser humano, de todo o ser humano, há pessoas cuja missão e
até profissão é cuidar, ser cuidador. Estão nesta situação, só para dar alguns
exemplos, pais, professores, padres, médicos, enfermeiros, assistentes sociais,
geriatras, profissionais e voluntários que cuidam da saúde e bem-estar de
doentes, acamados e idosos...
Então, a pergunta é: eles cuidam, são
cuidadores. Quem cuida deles? E como cuidam eles deles próprios? Como se
previnem contra os perigos do stress e do burnout?
Neste contexto, aparece também a
necessidade da espiritualidade. Realmente, há dados científicos que mostram a
importância da espiritualidade e da prática religiosa para a saúde e até para a
esperança de vida. Assim, na sua obra The Spiritual Brain, Beauregard cita 158
estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77 por
cento fazem menção de um efeito clínico positivo. Um estudo também mostrou que
“os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes
do aparecimento dos primeiros sinais de incapacidade nas actividades do
quotidiano têm mais esperança de vida do que aqueles que o não fazem”. Neste
sentido, permita-se-me que cite também o neurocientista Miguel Castelo-Branco,
da Universidade de Coimbra, no livro Deus Ainda Tem Futuro?, que coordenei: “A
medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a
espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios
clínicos, incluindo a dependência de drogas. Koenig e colegas estudaram em 1999
a taxa de sobrevida de cerca de 4000 pessoas com mais de 65 anos durante um
período de 6 anos. Concluíram que aquelas que foram à igreja mais do que uma vez
por semana tinham uma esperança média de vida superior a 10 anos relativamente
às que não a frequentaram. A experiência espiritual é benéfica para a saúde
humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente
procurado.”
Como dizia o famoso Bispo do Porto, D.
António Ferreira Gomes, é preciso prevenir-se contra “a agitação paralisante e
a paralisia agitante”. Esta agitação e paralisia constituem um perigo maior do
nosso tempo. Urge, pois, saber parar e repousar, como Jesus que, no meio da sua
missão de anúncio do Evangelho, parava para meditar e orar ou pura e
simplesmente para descansar. Afinal, cuidado, em latim, diz-se cura — não se
chamava ao padre nas aldeias o cura de almas? —, que, para lá de cuidado,
significa incumbência, tratamento, cura, inquietação amorosa, amor. Por esta
via, chegamos também à medicina, que provém do latim mederi — a raiz é med:
pensar, medir, julgar, tratar um doente —, que significa cuidar de, tratar,
medicar, curar e que está também na base de moderação e meditação, sendo deste
modo remetidos para um conceito holístico de saúde e de cura, que resultam e
têm no horizonte sempre um equilíbrio harmónico.
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