"Felizes os que são coerentes e fazem o que creem, e creem o que o Evangelho ensina"
A esplanada da sinagoga de Nazaré, após a
celebração em que Jesus intervém, torna-se palco de um acontecimento notável
que marca o início simbólico do caminho para Jerusalém. A seguir à homilia, a
assembleia reage cheia de entusiasmo e admiração, dando testemunho “a seu favor
pelas palavras cheias de graça que saíam da sua boca”. Dir-se-á que é uma
reacção coerente com a novidade anunciada e compreendida, com a linguagem de
Jesus, o leitor mensageiro, com as expectativas dos participantes no rito do
culto semanal. Dir-se-ia que Jesus seria ovacionado no final e coroada de êxito
a sua primeira vinda oficial à terra natal. Mas o ser humano é instável e a sua
curiosidade insaciável. Surgem as perguntas de pesquisa sobre a identidade de
Jesus. E com elas a suspeita e a disputa. Vamos acompanhar o desenrolar do
episódio que o Evangelho de Lucas (Lc 4, 211-30) nos deixa como “portal” do que
vem a acontecer na caminhada para Jerusalém.
“Este episódio do rechaço de Jesus em
Nazaré tem um caracter simbólico: em certo sentido é uma síntese de todo o
evangelho, afirma o comentador do nosso texto na Homilética, 2019/1, p. 42. E
prossegue dizendo que “Jesus irá experimentando um fracasso cada vez maior (até
os seus próprios amigos o abandonam e um dos mais íntimos o atraiçoa).
O entusiasmo dos nazarenos constitui o
início da alegria que desabrocha em quem segue Jesus nos caminhos da missão. O
número vai aumentando chegando a ser uma pequena multidão. E mostra-se em
gritos e aclamações públicas, em encontros de rua e festas de família, em
convites e refeições, e em tantos outros modos. Seguir Jesus dá sentido à vida,
revigora energias, alimenta a esperança, desinstala, cria laços de pertença,
traça novos ritmos.
Mas esta adesão inicial esgota-se
rapidamente se não for alimentada e robustecida pela convicção firme, fruto da
razão inteligente iluminada pela graça da fé. Como é urgente dar-lhe suporte
consistente? Vem a propósito a advertência de Jesus: Casa construída sobre
areia está sujeita a derrocada ao primeiro vendaval. E vem a propósito trazer à
memória eventos apostólicos de grande sucesso imediato que se esgotam no
momento do encerramento. A intensidade da experiência vivida dilui-se e acaba
por ser apenas memória saudosa e gérmen de nostalgia frustrante. Reganhar ânimo
e começar de novo exige grande confiança em Deus e paciência criativa.
“Não é este o filho de José?” perguntam-se
os nazarenos que aduzem outros dados de identidade de Jesus. São perguntas que
contêm a resposta. Servem de guia à inteligência inquieta por atingir e
compreender o que está a acontecer. O filho do carpinteiro apresenta-se como
profeta, faz declarações que envolvem o próprio Deus e o seu plano de salvação
(“hoje mesmo se cumpriu o que acabais de ouvir”), denuncia a atitude de
rejeição dos conterrâneos, aduz o exemplo de Elias que encontra socorro na viúva
de Sarepta, e de Eliseu que acolhe e cura Naamã, o sírio leproso. E, como nota
de realce, não realiza qualquer “milagre” em Nazaré em contraponto com o que
havia feito em Cafarnaum.
“Ao ouvirem estas palavras, todos ficaram
furiosos na sinagoga”. E nem era para menos. A rigidez mental bloqueia a
inteligência e exaspera a razão. A narração de Lucas faz-nos ver um processo
interior de grande “afunilamento”: Da admiração à perplexidade e à dúvida, da
confiança à reserva crítica, da “tempestade” interior à explosão de fúria
assassina.
Como era importante travar este processo
emocional degenerativo, desinflacionar vibrações, avivar a experiência inicial
gratificante, repor a beleza da mensagem do Ano da graça do Senhor!
O texto de Lucas deixa o facto com o seu
impacto natural, quer que ele fale por si como primeiro registo do que virá a
acontecer. Agora, centra a atenção do leitor/ouvinte na atitude de Jesus que
“passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”. Que imagem desconcertante! Na
simplicidade, que dignidade de porte perante os adversários que o veem passar e
nem ousam tocar-lhe quando o queriam lançar do cimo da colina no precipício de
morte! Na mansidão, que liberdade de acção e ousadia confiante marcam o seu
ritmo interior nas horas de aflição que está a viver!
Jesus não retira nada ao que disse. É
homem de palavra, profeta de Deus, tem consciência da missão que realiza. E,
com valentia, aguenta as consequências por amor à verdade. Uma pergunta pode
ajudar-nos na vida cristã: Admiro o seu proceder e sinto-me responsável pela
sua Palavra? Felizes os que são coerentes e fazem o que creem, e creem o que o
Evangelho ensina. Sobretudo na assembleia da liturgia dominical.
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