"O ensinamento de Jesus atinge o coração do homem, quer dotá-lo de novas energias, e configurar o seu estilo de vida"
Jesus está num lugar plano. Havia
descido da montanha, onde passara a noite em oração. Aqui, segundo a versão de
Lucas, “ao amanhecer, chamou os Seus discípulos e escolheu doze entre eles, aos
quais deu o nome de Apóstolos”. Espera-o muita gente do povo, vinda de várias
partes, pois queria ouvir a sua palavra e ser curado das doenças que a
atormentava. Espera-o numerosa multidão de discípulos que o vinha a seguir e a
testemunhar a sua relação próxima e compassiva com as pessoas, o seu amor à
verdade, a sua paixão pela libertação de todas as escravidões. Espera-o a hora
histórica de fazer a proclamação do código de felicidade do Reino que reflecte
o projecto de Deus e começa a ser vivido já, de forma germinal, por aqueles que
o aceitam sem restrições.
Lucas apresenta este código contrapondo
os que acolhem e praticam as suas sentenças e os que as menosprezam e rejeitam
no modo de viver, em atitudes e gestos do dia-a-dia. (Lc 6, 17- 26).
Apresenta-o, sem complementos explicativos, como faz Mateus. Deixa a verdade
nua a falar por si. Deixa o leitor sofrer o impacto da sua novidade. Deixa que
a Igreja possa rever-se numa das mais belas mensagens do discurso da planície,
isto é, do quotidiano impregnado desta energia divina. Deixa em aberto os
canais da seiva nova que pretendem humanizar a família, a sociedade e suas
organizações.
“O povo vem de todas as partes ao
encontro de Jesus, afirma a Bíblia Pastoral, porque a sua acção faz nascer a
esperança de uma sociedade nova, libertada da alienação e dos males que afligem
os homens. Os vv. 20-26 proclamam o cerne de toda a actividade de Jesus:
produzir uma sociedade justa e fraterna”. E o comentário acrescenta: “Para isso
é preciso libertar os pobres e famintos, os aflitos e os que são perseguidos
por causa da justiça. Isso, porém, só se alcança denunciando aqueles que geram
a pobreza e a opressão e depondo-os dos seus privilégios”. Como canta Maria no
seu Magníficat. E o texto conclui garantindo: “Não é possível abençoar o pobre
sem o libertar da pobreza. Não é possível libertar o pobre da pobreza sem
denunciar o rico para o libertar da riqueza”.
Jesus fala para todos, mas dirige-se a
alguns, especialmente. Com o olhar e com a palavra. Em linguagem directa,
personalizada. “Erguendo os olhos para os discípulos”, refere o evangelista
narrador. Que mundo relacional os envolveria! A verdade anunciada é estranha e
provocante, embora a promessa seja aliciante. E o apelo final tem garantias de
realização plena: “Alegrai-vos e exultai” por Minha causa, afiança Jesus.
A mensagem era de felicidade, já e
agora. No futuro definitivo, será a consumação. O olhar vê mais facilmente o
coração e pode sintonizar com o ritmo das suas pulsações. A palavra “dá nome”
ao que precisa de o ter e gera as situações de alegria ou de amargura, de dita
ou desdita, de ventura feliz ou infeliz. E Lucas começa a sua breve lista. Vamos
deter-nos em alguns pontos.
Os interlocutores primeiros são os
discípulos que Jesus chama felizes porque são pobres, porque passam fome,
porque choram, são odiados, desprezados e insultados, excluídos e proscritos.
Chama felizes não porque estão esquecidos nem abandonados, mas vivem situações
de abertura ao Reino de Deus. Chama felizes não por estarem fechados em si
mesmos, acomodados, e na sua auto-suficiência, mas por experimentar o peso da
rotina e do cansaço, a estreiteza do casulo, de que pode brotar o desejo da
abertura a outras realidades. Chama felizes porque “reproduzem” o seu modo de
agir no desempenho da missão que lhes vai ser confiada. Lucas, ao escrever o
seu Evangelho e os Actos dos Apóstolos, sublinha a vida feliz de tantos
discípulos, no meio das maiores provações. Basta lembrar o testemunho de Pedro
e João, aquando do episódio do Templo e do interrogatório pela autoridade que
os manda açoitar (Act 5, 41). E a história da Igreja regista o nome de muitos
outros, a fazer lembrar tantos outros só inscritos nos livros de Deus.
O ensinamento de Jesus atinge o coração
do homem, quer dotá-lo de novas energias, e configurar o seu estilo de vida. Em
todos os tempos. Indica a chave da felicidade que sabe aceitar os limites e
tirar o melhor partido das oportunidades; que vive o presente como um desafio
recheado de sementes germinais prontas a desabrochar; que mantém o horizonte da
esperança, apesar da dureza da caminhada; que vê florir a Páscoa da
ressurreição em cada chaga da crucifixão.
O jovem rico do Evangelho foi convidado
a seguir Jesus e recusou. Tinha o coração amarado, apesar do seu desejo ser
maior. Escolheu o bem mais imediato, mas fechado em si mesmo; o futuro mais
próximo, mas sem projecção na vida eterna, que ele tanto queria alcançar.
“Se temos tudo, se nunca nos falta nada…
dificilmente estamos com disposição de acolher o Reino. Mas, se temos desejos
insatisfeitos, se choramos ou nos desprezam, estamos predispostos a receber com
gozo os bens que o Reino nos traz, porque os pobres são os preferidos de Deus”.
(Homilética, 2019/1, p. 63).
O Papa Francisco, na exortação
apostólica “Alegrai-vos e Exultai” apresenta um excelente guia para os cristãos
impregnarem o seu dia-a-dia com a seiva das bem-aventuranças. Em estilo claro,
simples e atraente, faz-nos ver a beleza da vida quotidiana impulsionada pelo
seu espírito, a maravilha de ser santo.
A Igreja manifesta uma especial
necessidade da sabedoria das bem-aventuranças. Os tempos são conturbados. O
processo de purificação está em curso e, nestes dias, pode dar novos passos. O
Papa pede insistentemente que nos associemos às suas intenções. O processo de
desconstrução da organização institucional vai avançando e tenta desacreditar a
mensagem cristã em si mesma e não apenas na sua formulação tradicional, bem
como na vida de alguns dos seus agentes pastorais.
A atitude evangélica coincide com o
discurso da planície de que fala São Lucas. Também das adversidades, o espírito
cristão sabe tirar partido. E o sangue dos mártires pode tornar-se semente de cristãos,
e testemunhar que outro mundo é possível e, por isso, necessário. A semente
germina no silêncio da terra adubada.
Por tudo isto, a renovação eclesial
precisa de um novo impulso. As vozes dos tempos, quais ecos dos apelos do
Espírito, fazem-se ouvir e reclamam-no. A Igreja das bem-aventuranças, que é a
nossa, está chamada ao heroísmo. Alegremo-nos e exultemos por causa de Jesus!
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