Resta em nossa educação um misto de
preconceito e prepotência acerca do que é “cultura de qualidade” ou “cultura
superior”. A resistência às literaturas africanas é reflexa dessa educação
colonizada.
Os anos de colonização do continente
Africano são o principal motivo para o estranhamento expresso na pergunta: “por
que não Literatura Africana?”. De fato, apesar de a literatura produzida em
África ter traços de irmandade continental devido, sobretudo, ao laço de
expropriação e exploração que une os povos da terra, é impossível tratar o
assunto no singular. São Literaturas Africanas. Outro efeito pós-colonial,
advindo da imensa massificação cultural à qual somos submetidos, é permitir que
ainda hoje se confunda um continente com um país; os países africanos vão muito
além das savanas míticas povoadas por animais ferozes e povos famintos. Se
assumirmos a produção literária como uma das características fundamentais da
maturidade artística e intelectual de um povo, o continente africano precisa
sair do imaginário coletivo como exportador de escravos e imagens de guerra
para ser reencontrado como produtor de cultura.
Meus estudos cobrem especialmente os
países de “língua inglesa”. Por mais que as tentativas de extinção dos idiomas
nativos estivessem na ordem do dia dos processos coloniais, as línguas locais
sobreviveram e são um aspecto textual surpreendente das literaturas com suas
múltiplas formas de hibridismo. África do Sul, Gana, Quênia e Zimbábue compõem
meu campo de pesquisa, desde a defesa de minha dissertação em estudos
literários, em 2013. Infelizmente, a maioria dos romances ainda permanece sem
tradução para o português, porém, a crescente pesquisa acadêmica no campo dos
chamados estudos pós-coloniais e a necessidade de se incluir a História e a
Cultura Africana e Afro-brasileira nos currículos escolares, por meio da lei
10.639/03, indicam que, mesmo lentamente, as coisas estão mudando.
Outros sintomas da mudança são o
surgimento da Associação Internacional de Estudos Críticos Literários e
Culturais Africanos (AFROLIC) e do Encontro Nacional de Professores de
Literaturas Africanas, cujo último evento ocorreu em dezembro passado, na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Aos poucos, nomes como Mia Couto,
Pepetela, Craveirinha, Agualusa e Paulina Chiziane começam a fazer parte do
vocabulário dos leitores brasileiros. Evidentemente, o fato de esses autores
escreverem prioritariamente em português facilita o acesso, e há um mercado
editorial apostando, com riscos calculados, na entrada deles nas nossas
livrarias e bibliotecas. É importante salientar, que entre estrelas visíveis e
invisíveis o único problema é a distância. Em nosso caso, além da distância
linguística, há, principalmente, a distância mental. Resta em nossa educação um
misto de preconceito e prepotência acerca do que é “cultura de qualidade” ou
“cultura superior”.
Um dos autores mais conhecidos, no
universo da língua inglesa, é o queniano Ngũgĩ Wa Thiong’o. Seu romance “Weep
not child” foi homenageado pelo seu cinquentenário, na 40ª Conferência da
Associação da Literatura Africana (ALA), na universidade Witswatersrand,
Johanesburgo, em 2014. Thiongo possui alguns livros importantes que foram
traduzidos para o português como “Petals of blood” e “A Grain of wheat”, e
outros fundamentais ainda não traduzidos, como o “Decolonising the mind”,
publicado no Quênia, em 1986. O último nos interessa como fundamentação teórica
para compreender as bases da resistência aos conteúdos referentes à África.
Descolonizar indica o processo pelo qual
uma colônia recupera ou adquire sua independência com a retirada do poder
colonial. No entanto, o legado da ordem colonial permanece preso no corpo
social. Ngũgĩ wa Thiong’o, no seu “The Language of African Literature”,
primeiro capítulo do livro “Decolonising the mind”, dirá que “a noite da espada
e das balas foi seguida da manhã do giz e do quadro negro”. Ressalta-se que a
escola colonial, juntamente com as missões, cumpria com um papel central no
processo de controle e ordenamento das sociedades sob domínio europeu, porém,
os modelos de escola colonial variavam de acordo com a metrópole e do país. O
que elas tinham em comum era o conhecimento como marca distintiva da elite e
seu caráter restritivo, tanto na forma quanto no conteúdo.
Flora Veit-Wild, especialista em
Literatura do Zimbábue, afirma em seu, “Teachers, preachers non-believers”, que
para ascenderem na sua qualificação educacional, os alunos deveriam sair do
processo “washed white” , ou seja, o processo de imposição da língua, da
cultura e da religião havia atingido seu objetivo quando os garotos saiam do
ensino fundamental tendo adotado as “regras, gostos e crenças de seu professor
cristão”. A escola assume, nesse contexto, a responsabilidade de colonizar os
nomes e as paisagens mentais, mudando o eixo de representação da realidade
local, para uma eurocêntrica. Interferindo na percepção das pessoas sobre elas
mesmas e o mundo. Para Thiong’o, o “controle econômico e político nunca são
completos sem controle mental.” Portanto, a discussão sobre a descolonização da
escola continua premente, seja no Zimbábue, Quênia ou Brasil. Como diz
Thiong’o:
“A língua da educação escolar de uma
criança africana era estrangeira. A língua dos livros que ele lia era
estrangeira. A língua de sua conceituação era estrangeira. O pensamento, dele,
tomou uma forma visível de uma língua estrangeira. Assim como a língua
escrita de uma criança educada na escola (mesmo a língua falada na escola do
vilarejo) se separou da linguagem falada em casa. Não havia nem a mínima
relação entre o mundo da escrita da criança, que também é linguagem de seu
quadro letivo, e o mundo de sua relação com a família e o ambiente. Para uma
criança colonial, a harmonia que existe entre os três aspectos da linguagem
como comunicação foi irrevogavelmente quebrada. Resultando assim na dissociação
da sensibilidade da criança com seu ambiente natural e social, o que se pode
chamar de alienação colonial. A alienação se reforçou nos ensinos de história,
geografia, música na qual a burguesia europeia era sempre o centro do
universo.” Com o Jornal Opção
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