Em Julho, a Zona de Livre Comércio em
África (AfCFTA, na sigla em inglês) começa a ser operacionalizada. O pontapé de
partida deste momento vai acontecer já em Junho, em Kampala, a antever a
operacionalização do mercado comum.
“O AfCFTA tem o potencial de aumentar
substancialmente o comércio dentro de África e de apoiar o desenvolvimento
económico sustentável do continente”, escreve Carlos Lopes, antigo secretário-executivo
da UNECA, em resposta ao Expresso das Ilhas. “Os beneficiários do AfCFTA não
são apenas os grandes actores empresariais, serão também os cidadãos comuns”,
acrescenta.
O acordo da AfCFTA, lançado em Março de
2018 em Kigali, Ruanda, tem como objectivo eliminar as tarifas sobre a maioria
dos bens, liberalizar o comércio de serviços essenciais, abordar os obstáculos
não tarifários que prejudicam o comércio intra-regional e, por último, criar um
mercado continental único com livre circulação de mão-de-obra e capital.
É provável que a AfCFTA tenha importantes
efeitos macroeconómicos e distributivos. Pode impulsionar significativamente o
comércio intra-africano, em particular, se os países solucionarem os
estrangulamentos não tarifários ao comércio, incluindo infra-estrutura física,
custos logísticos e outros obstáculos à facilitação do comércio. O cenário não
é uniforme. As economias mais diversificadas e as que dispõem de uma melhor
logística e infra-estrutura beneficiarão relativamente mais da integração do
comércio. É provável que as perdas de receitas orçamentais decorrentes das
reduções tarifárias sejam, em média, limitadas, com algumas excepções. Além
disso, uma integração comercial mais profunda está associada a um aumento
temporário da desigualdade de rendimento.
“O AfCTA é uma janela de oportunidade para
o incremento das trocas comerciais entre os países africanos”, diz ao Expresso
das Ilhas Amílcar Monteiro, antigo Director-Geral da Indústria e Comércio de
Cabo Verde. “O acordo pode reforçar cadeias-de-valor de base regional através
da eliminação das barreiras ao comércio, pode ajudar as PMEs a tornarem-se mais
competitivas, pode ajudar a criar empregos para os jovens em diversas áreas,
desde agricultura, aos serviços digitais e a economia criativa, e contribuindo
para a formalização das economias através do acesso ao mercado”.
“Trata-se assim de uma evolução histórica,
que comporta diversos desafios a serem ultrapassados pelos Estados, e implicam
investimentos em infra-estruturas à escala continental, depende da estabilidade
politica, do desenvolvimento do quadro legal e institucional, da eliminação de
barreiras ao comércio e da melhoria do ambiente de negócio para facilitar o
comércio intra-africano. Em última instância, promete criar um enorme mercado
de mais de um bilião de habitantes”, continua o economista.
As
reformas necessárias
As conclusões do FMI [no documento
Perspectivas Económicas Regionais: África Subsaariana, de Abril deste ano]
sugerem que, para além das reduções tarifárias, os esforços de política para
impulsionar o comércio regional devem centrar-se em reformas para enfrentar os
estrangulamentos não tarifários específicos dos países.
Para garantir que os benefícios da
integração do comércio regional sejam partilhados por todos, os decisores
políticos deverão estar cientes dos custos de ajustamento que a integração
poderá envolver. No caso das economias menos desenvolvidas e baseadas na
agricultura, as políticas comerciais devem ser combinadas com reformas
estruturais para melhorar a produtividade e a competitividade agrícolas. Os
governos devem ainda facilitar a realocação de mão-de-obra e de capital entre
sectores (por ex. programas de mercado de trabalho activo, como formação e
assistência à procura de emprego, e medidas que melhorem a competitividade e a
produtividade) e fomentar redes de segurança (programas de apoio ao rendimento
e de segurança social) para aliviar os efeitos adversos temporários nas
populações mais vulneráveis.
“Os desafios mantêm-se elevados e por isso
é importante conhecer as causas históricas”, sublinha Amílcar Monteiro. “A
fragmentação da África resulta em 16 países encravados, presos na lógica de
extração de minério de exportação de produtos primários e em economias
polarizadas (mono produto) e pulverizadas (microprodução). O AfCTA promete
desencavar estes territórios e habilitar o comércio intra-africano pela via da
integração, abrindo espaço para novas relações entre os países, a
diversificação e á ampliação da escala de produção”.
“Naturalmente, o grande desafio é
político, certamente ainda é preciso desenvolver economias de escala, promover
a especialização e o acesso a matérias-primas e mercados, e garantir a oferta
de produtos mais acessíveis e seguros para os consumidores. Os benéficos do
livre comércio ainda não chegaram à África pelo que o AfCFTA se configura como
uma oportunidade única para se recriar o ambiente de negócios em África”,
refere o ex-Director-Geral da Indústria e Comércio.
Até Abril de 2019, 22 países haviam
ratificado o acordo que cria a Zona de Comércio Livre Continental África,
atingindo o número de ratificações necessárias para o acordo entrar em vigor. A
AfCFTA prevê acordos sobre reduções tarifárias específicas, procedimentos para
a liberalização do comércio de serviços e regras de origem durante 2019. As
negociações estão em curso. Além disso, os países prevêem o início de uma
segunda ronda de negociações em 2020 para tratar dos direitos de propriedade
intelectual e da política da concorrência. Quando estiver em funcionamento, a
AfCFTA irá criar um mercado com 1,2 mil milhões de pessoas com um PIB combinado
de 2,5 biliões de dólares. Isto poderá revolucionar a economia do continente.
Uma
revolução benéfica para o continente
“A AfCFTA é uma oportunidade que, se for
bem-sucedida, pode ajudar a resolver os problemas do desemprego jovem mas, para
ser bem-sucedida, ainda falta fazer um conjunto de coisas fundamentais: temos
que construir capacidade industrial, continuar a investir de forma maciça em
infra-estruturas e assegurar que temos as capacidades que as empresas
precisam”, disse à LUSA, em Abril, Akinwumi Adesina, presidente do Banco
Africano de Desenvolvimento.
Segundo o responsável do BAD, a futura
zona de comércio livre “vai ajudar a aumentar em cerca de 50 mil milhões de
dólares as trocas comerciais, mas não é apenas isto. Se África for capaz de
reduzir o desemprego entre os jovens para o mesmo nível da população adulta
acrescentará, entre 2020 e 2035, cerca de 5 mil milhões de dólares em Produto
Interno Bruto (PIB) da região. E se conseguirmos aproveitar todo o potencial da
Internet no continente, em 2030 conseguiremos adicionar 3,5 mil milhões de
dólares ao PIB”, concluiu.
A integração comercial possibilita que os
países se especializem na produção de bens e serviços relativamente aos quais
gozam de uma vantagem comparativa e tirem proveito de economias de escala,
melhorando assim a produtividade e o crescimento. Ao disseminar os
conhecimentos e as tecnologias e ao promover o desenvolvimento de novos
produtos, a integração comercial pode igualmente fomentar a transformação
estrutural. Uma grande zona de livre comércio em África irá ampliar o potencial
de transformação económica na região. Não só irá impulsionar o comércio
intra-regional, como também irá atrair investimento directo estrangeiro e
facilitar o desenvolvimento de cadeias de abastecimento regionais, que têm
assumido uma preponderância fundamental na transformação económica de outras
regiões.
Pode ser uma oportunidade para Cabo Verde?
“O caso de Cabo Verde é particular no contexto africano”, diz Amílcar Monteiro,
“a nossa ligação com o continente não é linear pelo que importa discutir e
consensualizar uma abordagem para o país. No contexto regional, a condição de
único país insular e arquipélago é um desafio muito específico em termos da
integração do mercado interno e mobilidade. Deste modo, a nível regional, as
infraestruturas e serviços de ligação marítima representam um esforço que
ultrapassa a capacidade de investimento do Estado cabo-verdiano, pelo que a
criação de condições para a operacionalização de serviços regulares de
transporte marítimo (passageiros e cargas) entre as capitais da região deve ser
comparticipada com a CEDEAO. Além de aumentar o leque de oportunidades para
Cabo Verde irá tornar o arquipélago um território útil para o comércio regional
no Atlântico Médio. Todos ganham”.
Sem isso, sublinha o economista, “ficam
malogradas, à partida, as oportunidades de transformação de matéria-prima em
Cabo Verde para abastecimento do mercado hoteleiro ou para o aproveitamento de
oportunidades de exportação no âmbito do AGOA. A nível continental, Cabo Verde
tem muito espaço para explorar no mercado de transportes aéreos, das
comunicações, serviços de tecnologias de informação, além dos restantes ramos
dos serviços onde Cabo Verde tem sido historicamente superavitária nas trocas
internacionais. Com a AfCFTA, os serviços serão gradualmente liberalizados e é
onde país tem oportunidades concretas para explorar”, refere o economista.
O
preço da Zona de Comércio Livre
No entanto, embora o comércio contribua
para o crescimento, também implica custos, e os seus benefícios poderão ser
distribuídos de forma desigual entre e dentro dos países. Muitas vezes, os
decisores políticos estão, justificadamente, preocupados de que uma maior
integração das suas economias com as de outros países possa beneficiar umas
indústrias e prejudicar outras, afectar negativamente os rendimentos e as
oportunidades de emprego em determinados sectores e em determinados níveis de
competências e reduzir as receitas fiscais [Os impostos representaram 13,6% do
PIB de Cabo Verde em 2018, segundo números do INE].
“É um risco”, concorda Amílcar Monteiro,
“mas a redução das tarifas é feita gradualmente e num contexto de incremento
das trocas comerciais e do reforço das cadeias de valor regionais, o que
implica na geração de mais empregos, mais negócios e mais tributação. O Estado
também “arrisca-se” a arrecadar muito mais do que arrecada actualmente com o
aumento do volume e da escala dos negócios”.
O comércio intra-regional em África tem
crescido. As importações intra-regionais como percentagem do total de
importações quase que triplicaram ao longo das duas últimas décadas,
situando-se agora entre os 12% e 14% (cerca de 100 mil milhões de dólares),
como resultado do aumento do comércio na região graças às novas comunidades
económicas sub-regionais. Em 2017, três quartos do comércio intra-regional
africano realizou-se dentro das principais comunidades sub-regionais. Durante
este processo, emergiram centros de comércio regional, como África do Sul, Côte
d’Ivoire, Quénia e Senegal. Ao contrário das exportações para o resto do mundo,
os fluxos comerciais intra-regionais são relativamente diversificados, incluem
bens de maior valor acrescentado do que as exportações para o resto do mundo e
abrangem uma proporção considerável de produtos transformados (por exemplo,
veículos motorizados e vestuário).
Apesar desta expansão, ainda existem
oportunidades significativas para aprofundar mais a integração do comércio regional.
No entanto, tendo em conta os menores níveis de rendimentos e a dimensão
económica e, em geral, as maiores distâncias face a outras regiões, as
características particulares dos países africanos parecem limitar a sua
capacidade comercial (quando comparados com países noutras regiões). Algumas
destas características são estruturais e a sua mudança exige um compromisso a
longo prazo. Outras resultam de políticas – como as tarifas, os regulamentos
comerciais e os requisitos regulamentares – e a sua eliminação iria impulsionar
a integração regional. As oportunidades de expansão do comércio intra-regional
são especialmente assinaláveis para alguns produtos relacionados com a
agricultura (por exemplo, produtos alimentares) e indústria transformadora,
assim como em algumas comunidades económicas sub-regionais de África onde o
volume comercial é significativamente inferior ao das suas homólogas.
É igualmente provável que os países
pequenos, as economias mais diversificadas e os centros de comércio regional,
que já estão expostos à concorrência internacional, beneficiem mais de uma
maior integração regional do que as economias dominadas pela agricultura e
pelos recursos naturais. No fundo, quanto mais rápido os países africanos
perceberem as suas estreitas janelas de oportunidade, mais rapidamente a
aceleração da sua industrialização ocorrerá. E no caso de Cabo Verde,
questionou o Expresso das Ilhas a Amílcar Monteiro, quais os ritmos a que o
país está a tratar a sua própria industrialização? “O meu sentimento é que Cabo
Verde está a perder tempo. Devido a uma política industrial indefinida, o
próprio quadro legal limita o surgimento da pequena indústria, das unidades de
transformação de produtos que tradicionalmente são produzidos em Cabo Verde há
mais de 300 anos como o doce, o queijo, o grogue, a secagem ou a simples
produção de farinha de pau e de milho. A industrialização em ilhas comporta
desafios sérios que importa superar através da implementação de medidas de
politica pública duradouras e por isso consensuais sobre como desenvolver um
sector produtivo com potencial de exportação para mercados-nicho. O actual
quadro legal precisa ser revisto quer para criar oportunidade para a emergência
de PMEs, mas também para ampliar o tecido industrial actual constituído pelo
limitado grupo de indústrias exportadoras, baseadas essencialmente em São
Vicente e o grupo de indústrias que operam essencialmente para o abastecimento
do mercado interno”, defende o economista.
O mesmo cenário acontece no caso dos
serviços, segundo o antigo Director-geral da Indústria e do Comércio, e com a
lenta transformação do arquipélago numa plataforma. “O tempo de indecisões tem
de ser ultrapassado e o país deve orientar a sua acção de forma estratégica e
com visão de longo prazo. Apesar do país já ser uma plataforma de serviços, o
volume de negócio realizado como plataforma no Atlântico Médio é ainda
insignificante perante os nossos vizinhos, pelo que pouco se nota. Pelo ritmo
de investimento em sectores-chave como os transportes aéreos e marítimos no
Senegal, percebe-se a urgência de se manterem na frente e não deixarem espaço
para a ‘concorrência’. Cabo Verde, não compete com nenhum país na região, mas
inerentemente existe uma relação de forças versus oportunidades que é preciso
considerar sobre: qual deverá ser o posicionamento do país no Atlântico Médio
para complementar a actual oferta existente?”, questiona o economista.
“As oportunidades reais que estão ao
alcance de Cabo Verde têm de ser consensualizadas para se poder orientar os investimentos
necessários, treinar a mão-de-obra assim como adequar o quadro legal e
institucional. A concretização de uma visão de sucesso exige o amadurecimento
das medidas de política pública, mas receio que sem consenso não haverá o
alinhamento necessário para a combinação de todas as medidas necessárias para a
concretização das mesmas”, conclui Amílcar Monteiro.
A
acção política no combate aos constrangimentos
As principais conclusões do Fundo
Monetário Internacional sugerem que a AfCFTA pode impulsionar
significativamente o comércio intra-regional em África, se forem utilizadas
alavancas de política tarifária e não tarifária. As reduções tarifárias devem
ser abrangentes para que tenham um impacto significativo nos fluxos de comércio
intra-regional. A eliminação das tarifas em 90% dos fluxos de comércio
intra-regional – a meta mais ambiciosa ao abrigo da AfCFTA – iria provocar um
crescimento de 16% no comércio regional, ou seja, 16 mil milhões de dólares, ao
longo do tempo. As reduções tarifárias devem ser acompanhadas de políticas que
combatam as barreiras não tarifárias. Mesmo pequenas melhorias na resolução
destes estrangulamentos deverão ter um impacto considerável. Medidas como a
melhoria da logística comercial (por exemplo, serviços aduaneiros) e o aumento
da qualidade das infra-estruturas podem ser até quatro vezes mais eficazes na
promoção do comércio do que as reduções tarifárias. Além disso, a diminuição
das barreiras não tarifárias ao comércio iria aumentar a eficácia das reduções
tarifárias para impulsionar o comércio, especialmente em países interiores e
países de baixos rendimentos. Por conseguinte, as políticas para combater as
barreiras não tarifárias, em especial a fraca qualidade da logística comercial
e das infra-estruturas, devem estar no centro dos esforços para aprofundar a
integração comercial em África.
“Os retardatários enfrentam, geralmente,
todo o tipo de dificuldades”, escreve Carlos Lopes. “No plano comercial, os
melhores lugares estão já ocupados, as regras são mais restritas, o
financiamento mais complexo, a propriedade intelectual está concentrada, as
cadeias de valor estão globalizadas, as normas universalizadas e as regras são
assimétricas”.
“Gostemos ou não, África está atrasada em
numerosos aspectos, e agora terá de correr uma maratona com a rapidez dos
melhores velocistas. E a AfCFTA pode ajudar a mudar a situação do continente”,
conclui o antigo Secretário-geral da UNECA.
Texto originalmente publicado na
edição impressa do expresso das ilhas nº 912 de 22 de Maio de 2019.
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