A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre ..Sendo sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura, a cultura define-nos, faz parte da nossa identidade e, por isso, como se constata pela história, mesmo recente, não falta quem esteja disposto a bater-se, até pelas armas, pela sua cultura, que faz parte constituinte da sua identidade.
Estamos a viver uma transformação
prodigiosa do mundo. Há hoje várias revoluções em marcha. Uma revolução
económica, com a globalização, que significa a concretização da ideia de
McLuhan de que formamos uma "pequena aldeia" e a chegada ao palco da
história de grandes países emergentes, como a China, a Índia... Outra é a
revolução cibernética, que, como disse Jean-Claude Guillebaud, faz nascer um quase-planeta,
um "sexto continente". Nunca como hoje houve tanta informação e com a
rapidez com que circula pelo mundo. Esta é a era da informática. A internet, o
correio electrónico, os telemóveis, as televisões, põem-nos em contacto
constante e imediato com tudo o que acontece no mundo. Depois, com a facilidade
dos transportes e no quadro das novas condições económicas, há a circulação
permanente das pessoas de uns países para outros e também entre continentes. As
NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, big data,
ciências cognitivas, neurociências...), em interconexão, transformam a nossa
relação com a vida e a procriação e podem fazer bifurcar a humanidade: a actual
continuaria ao lado de outra a criar; por isso se fala em transumanismo e
pós-humanismo. Também está aí a urgência da revolução ecológica, que, se a
humanidade quiser ter futuro, obriga a uma nova relação com a natureza. Como
se não pode esquecer de modo nenhum o perigo do terrorismo global e de uma
guerra atómica. Está aí, omnipresente, de múltiplos modos, o terror da
violência...
Perante todas estas revoluções e face aos
problemas que agora são globais, como a droga ou o trabalho, os mercados,
impõe-se, em primeiro lugar, pensar numa governança mundial. Depois, não se
sabe de que modo o futuro será, como diz J.-Cl. Guillebaud, uma
"modernidade mestiça", mas, para evitar o "choque das
civilizações", impõe-se o diálogo intercultural e inter-religioso. De
facto, como escreveu o teólogo José María Castillo, com todos estes factos
produziu-se "um fenómeno inteiramente novo na história da humanidade: a
mistura, a fusão ou o choque, a inevitável convivência de culturas, tradições,
costumes, formas de pensar e de viver, de pessoas que vão de uns países para
outros, de um extremo ao outro do mundo. E vão, não para fazer turismo, mas
para tratar da vida, fugir das guerras, da fome e da morte. Mas, como é
lógico, este rebuliço de pessoas, de notícias, de ideias, de formas de viver,
fez que - sem nos darmos conta muitas vezes do que realmente se passa -
bastantes critérios, convicções, costumes e tradições que até há poucos anos
tínhamos como seguros e intocáveis hoje estejam abalados, tenham perdido
segurança, se tenham esfumado, modificado ou, em todo o caso, perdido a firmeza
e a estabilidade que antes tinham para nós".
De qualquer modo, para o diálogo, impõe-se
uma reflexão de base sobre as suas condições de possibilidade e as suas
dificuldades. De facto, o diálogo é feito de encontros e desencontros. O
encontro é fascinante, mas, veja-se, logo de entrada, como a própria palavra
chama a atenção para a sua dificuldade: encontro mostra, nas várias línguas, um
confronto, uma oposição. Assim: en-contro (lá está o contra, como em en-cuentro
ou em rin-contro..., mesmo no alemão, Begegnung, está presente o contra, que se
diz gegen).
A neotenia constata, no essencial, que o
ser humano é um prematuro - para fazer o que faz, precisaria de permanecer no
ventre materno mais um ano, mas isso não é possível; assim, nasce no termo de
nove meses, em vez de passados 20 -, tendo, portanto, de receber por cultura
aquilo que a natureza lhe não deu. Frágil segundo a natureza e sem
especialização, tem de criar uma espécie de segunda natureza ou habitat,
precisamente a cultura. Como escreve o filósofo Robert Legros, "é na
cultura ou no que a fenomenologia chama um mundo que a humanidade de Homo
encontra a sua origem, e não na natureza. Quanto à origem da cultura, ela está
por princípio votada a permanecer uma questão sem resposta". Enquanto os
outros animais nascem feitos, o homem, nascendo por fazer, em aberto, tem de
fazer-se a si mesmo e caracteriza-se por essa tarefa de fazer-se com outros numa
história aberta, em processo. Constata-se deste modo que nos fazemos uns aos
outros genética e culturalmente. O ser humano é, pois, sempre o resultado de
uma herança genética e de uma cultura em história. Assim, no processo de nos
fazermos, o outro aparece inevitavelmente. O outro não é adjacente, mas
constitutivo. Só sou eu, porque há tu, em reciprocidade. O outro pertence-me,
pois é pela sua mediação que venho a mim e me identifico: a minha identidade
passa pelo outro, num encontro mutuamente constituinte. A identidade não é
estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. E, em cada um de nós, há
múltiplas possibilidades de ser: se eu tivesse tido outros encontros, se
tivesse frequentado outras escolas... certamente seria eu, mas de outro
maneira, idem sed aliter. A nossa identidade é aberta, somos nós e somos
muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender os outros, compreender um
romance, colocando-nos na pele de tantas personagens diferentes?...
Claro que cada um, cada uma, é ele, ela,
de modo único e intransferível - a experiência suma desse viver-se cada um como
único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade
do nada e da aniquilação do eu: "Ai que me roubam o meu eu!", clamava
M. Unamuno -, mas fazemo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em
relação coincidem. Por isso, a identidade faz-se, desfaz-se, refaz-se e, em
sociedades complexas e abertas, ela será cada vez mais compósita e planetária,
com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de
complexidades e possíveis rupturas. O outro é vivido sempre como fascinante e
ameaça. Porque o outro é outro como eu, outro eu, e, simultaneamente, um eu
outro, outro que não eu. Daí, a ambiguidade do outro. O outro enquanto outro
escapa-se-me, não é dominável.
Nunca saberei como é viver-se como outro.
Quando olhamos para outra pessoa, perguntamos: como é que ela se vive a si
mesma, por dentro?, como é que ela me vê?, como é o mundo a partir daquele foco
pessoal? Porque é simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal
e societal, um outro eu e um eu outro - outros como nós e outros que não nós -,
o outro atrai, ao mesmo tempo que surge como perigo possível. Há, pois, uma
visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado - no amor, é divinizado -
como diabolizado. Atente-se na ligação entre hospitalidade e hostilidade,
derivados do latim hospite e hoste, respectivamente. Cá está: o outro é
hóspede, por exemplo, no hotel e no hospital. Mas, no hotel, pedem-nos a nossa
identidade, porque podemos constituir uma ameaça, um perigo ou ir embora sem
pagar. Aliás, agora, também há o hostel, onde a dimensão hostil é mais visível
pela sua sonoridade, e, por isso, nos pedem, repito, para prevenir, a
identificação. E a fronteira, porta de entrada e de saída, em ligação com
fronte - a nossa fronte somos nós voltados para os outros e ao mesmo tempo ela
é limite e demarcação de nós -, anuncia o outro - outro país - e é espaço de
acolhimento e também da independência.
No quadro desta ambiguidade, entende-se
como, por medo, ignorância, desígnios de domínio, se pode proceder à construção
ideológica e representação social do outro essencialmente e, no limite,
exclusivamente, como ameaça, bode expiatório, encarnação e inimigo a
menosprezar, marginalizar, humilhar e, no limite, abater, eliminar. Num mundo
global, cada vez mais multicultural e de pluralismo religioso, é urgência maior
repensar a identidade e avançar no diálogo intercultural e inter-religioso,
sempre no horizonte da unidade na diferença e da diferença na unidade.
As revoluções em curso, que obrigam a
repensar o futuro da humanidade, são outras razões que aprofundam a necessidade
e a urgência do encontro e do diálogo entre as culturas e as religiões. O que
desde há anos Hans Küng vem sublinhando - a necessidade do diálogo
inter-religioso para ser possível a paz no mundo - é cada vez mais urgente.
Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do célebre teólogo, autor
principal da "Declaração de Uma Ética Mundial", aprovada pelo
Parlamento Mundial das Religiões em Chicago, em 1993, se oriente pelo lema:
"Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz
entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as
religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo
sem um ethos global, um ethos mundial."
Falo nas religiões, mas o problema
estende-se às várias dimensões do humanum, precisamente porque o ser humano é
constitutivamente cultural, resultado de uma herança genética e de uma cultura
em história, é bom repetir. Por isso, a integração noutra cultura é tudo menos
fácil. Porquê? Quem não reflectiu suficientemente é por vezes levado a pensar
que a cultura é como um vestido, algo exterior que a pessoa facilmente troca,
mudando de cultura como muda de vestido. Não é assim, de modo nenhum. Porquê?
Sendo sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura, a cultura
define-nos, faz parte da nossa identidade e, por isso, como se constata pela
história, mesmo recente, não falta quem esteja disposto a bater-se, até pelas
armas, pela sua cultura, que faz parte constituinte da sua identidade.
Felizmente, a nossa identidade é aberta,
em história, e, por isso, também podemos ver no diálogo intercultural e
inter-religioso um factor determinante de enriquecimento mútuo.
Padre e professor de Filosofia. Escreve de
acordo com a antiga ortografia.
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