Crónica de Anselmo Borges, no Diário deNotícias
Coube-me a honra de um convite para
participar no magno evento cultural Folio, na bela Óbidos, com uma fala sobre
utopias e distopias, a que acrescentei retrotopia, pelas razões que direi.
1. Foi Thomas More que cunhou o termo
utopia, com a publicação, há 500 anos, de A Utopia, cujo título em latim é mais
longo: De Optimo Reipublicae Statu Deque Nova Insula Utopia (sobre o melhor
estado de uma República e sobre a nova ilha da Utopia). Ele sabia do que
falava, concretamente do poder, pois foi chanceler. A Igreja canonizou-o em
1935. A Utopia é uma ilha imaginada lá longe no oceano (utopia tem o seu étimo
no grego: ou, que se lê u, que significa não) e tópos, com o significado de
lugar. Portanto, Utopia é um não lugar; de qualquer forma, um ideal que indica
o caminho.
A utopia supõe a distopia (também do
grego: dys, que significa mau, duro: portanto, um mau lugar, o oposto a
utopia). Assim, na primeira parte, More critica os males que atravessavam a
sociedade inglesa, do despotismo e venalidade dos cargos públicos à sede de
luxo por parte dos privilegiados e à injustiça e opressão que provocam. Na
segunda parte, descreve uma sociedade ideal, que imaginariamente já se encontra
realizada na ilha da Utopia. Neste sentido, embora haja vários tipos de
utopias, a utopia nasce como eutopia (mais uma vez, do grego: eu- bom, feliz, e
tópos, um lugar bom e felicitante, como na palavra Evangelho: eu+angelion,
notícia boa, feliz, felicitante).
2. Com Thomas More encontramo-nos no
Renascimento e na dinâmica do Humanismo. A sua Utopia deriva também, de algum
modo, da secularização do messianismo, do Reino de Deus e sobretudo da
escatologia. Se, na perspectiva cristã, o Reino de Deus será consumado na
meta-história, agora, com as utopias, pretende-se realizá-lo já neste mundo, na
nossa história, na imanência terrena. Por outro lado, se, em certos casos,
eventualmente, a ideia utópica nasceu do sonho de levar adiante o que
aconteceria se não tivesse havido pecado original - neste quadro o Reino de
Deus já estava no princípio e não no fim -, o que é facto é que as utopias
começaram por ser espaciais (A Utopia de More é uma ilha), mas, sobretudo por
causa dos desenvolvimentos da técnica e da nova consciência histórica, passaram
a ter uma dinâmica mais temporal: a utopia não está ainda imaginariamente
realizada num lugar, mas tem o seu tóposno "ainda não" do futuro.
As utopias têm duas funções fundamentais:
por um lado, são crítica da situação presente e, por outro, impulso para
transformá-lo, olhando para um futuro outro, numa sociedade livre e justa, de
bem-estar para todos. Parte-se do princípio de que o ser humano é
constitutivamente utópico, porque é um ser desejante e esperante, que aspira à
felicidade. Por outro lado, se a utopia não há-de cair no mero escapismo, na
ilusão ou nowishful thinking, é necessário estudar as possibilidades de
transformação da realidade. A utopia é constituinte do ser humano, porque ele
deseja mais e melhor, a perfeição, e, por outro, há condições objectivas na
realidade para a concretização do desejo. É toda a dinâmica entre "o que
é" de facto e o que "pode e deve ser".
Há perigos reais nas utopias. Eles têm
que ver concretamente com a "geometrização" da sociedade utópica, de
tal modo que se cai na distopia da ditadura, esquecendo o indivíduo e a pessoa.
Quando, por exemplo, o socialismo de utópico passou a científico e se implantou
como "socialismo real" foi a tragédia que se sabe. Agora, está aí a
utopia, a caminho de realizar-se, do transhumanismo e mesmo do pós-humanismo,
na busca de uma nova espécie e da imortalidade, a partir do cruzamento das NBIC
(nanotecnologias, biotecnologias, informática, inteligência artificial,
ciências cognitivas). Projecto grandioso, mas é necessário ter consciência dos
perigos e intervir política e eticamente. Que queremos verdadeiramente?
3. Significativamente, se esta utopia
sobretudo técnica, que inclui a Uberlândia, goza de fascínio, no nível social e
político reina mais o pessimismo e, assim, o sociólogo famoso Zygmunt Bauman
perguntou recentemente ao jornalista da Der Spiegel (3-9-2016): "Já ouviu
falar do conceito de retrotopia?" "Será o título do meu próximo
livro." Hoje, é "a desilusão" face ao futuro: "Vivemos
catástrofe após catástrofe: terrorismo, crise financeira, estagnação da economia,
desemprego, precariedade..., desconfiança, cada um é para o outro um potencial
opositor e concorrente", os perigos são omnipresentes. "Por isso,
voltamo-nos para o passado e, no entanto, movemo-nos de modo cego para
diante." "É notável que precisamente o Papa Francisco clame
expressamente por uma cultura do diálogo. Só ela nos possibilitará perceber e
respeitar o outro como parceiro legítimo."
4. Também participou no Folio Salman
Rushdie, com quem dialoguei da primeira vez que veio a Portugal, em 2006, sobre
"O Deus do Mediterrâneo". Ele veio relembrar como as religiões
institucionais podem ser e são tantas vezes distópicas. Como eu o compreendo!
Mas estou convicto de que Deus não desaparecerá da vida da humanidade. Ele
continuará presente, em primeiro lugar, na pergunta por Ele. Porque o ser
humano é constitutivamente utópico e esperante. E só Deus pode preencher e dar
Sentido último, por graça, ao seu desejo e esperança infinitos.
Por decisão pessoal, o autor do texto
não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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