terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Universalismo cristão (I)

Crónica de Frei Bento Domingues, no Público

Chegaram agora D. Trump, V. Putin e Xi Jin Ping, os reis magos do dinheiro, do poder e das armas. Não cabem neste presépio.

1. Num grupo de cristãos que se reúnem para estudar as leituras bíblicas da liturgia dominical, assisti a uma divertida discussão. Os textos deste Domingo da Epifania são muito belos, mas o debate recaiu numa pergunta que nem ao menino Jesus podia interessar: os Reis Magos existiram ou não? São personagens da história ou da imaginação? Eram Reis, eram Magos, eram dois, eram três, eram doze? Como poderão ter ido parar à Catedral de Colónia?

A história é contada por S. Mateus[1], um Evangelho para comunidades cristãs de origem judaica. Não fala de Reis, mas de uns Magos que chegaram do Oriente, sem precisar o número. Magos, no sentido actual da palavra, são pessoas que realizam truques de magia. Na Antiguidade, eram os estudiosos de ciências secretas, os sábios e os que investigavam o rumo das estrelas. Cientistas da época!

Olhando, de perto, para esta narrativa nada bate certo com uma história plausível. Nem como fenómeno astronómico, nem como uma convocatória de Herodes aos Sumos-sacerdotes e aos escribas. Por outro lado, como poderia passar despercebida, numa aldeia tão pequena, uma visita de tão célebres personagens, com uma carga de presentes tão impressionante? Como é que o astuto Herodes confia numa história da carochinha?

A. A. Valdés pergunta: quando Jesus, adulto, sai para pregar, ninguém sabe nada disto, nem que Ele é o Messias? Que aconteceu? Houve um ataque geral de amnésia na Palestina?[2]

É melhor ir por outro caminho. Antes de mais, importa ter presente que é preciso mostrar aos judeus cristãos que o que se passou com Jesus já estava previsto na Bíblia. Para se tornar verosímil aos conhecedores das Escrituras eram precisas selecções bem feitas. Hoje, a nós, pode parecer um excessivo e artificial concordismo. Mateus, porém, tinha de escolher o que encaixava melhor com a sua visão messiânica. Ao contar episódios da infância de Cristo, foi buscar narrativas de personagens do Antigo Testamento. Uma das figuras mais admiradas era a do rei Salomão. Gozava de uma sabedoria e inteligência tão extraordinárias que nenhum outro rei teve, nem antes nem depois dele[3]. A sua ciência foi superior não apenas à de todos os outros reis, mas até à de todos os sábios do Oriente. Chegou a compor 3000 parábolas, 1005 poemas e até escreveu tratados de botânica e zoologia!

O episódio mais famoso e divulgado da vida de Salomão foi a visita da rainha de Sabá. Os judeus contavam-na com grande orgulho. Apresentou-se em Jerusalém uma rainha anónima, vinda de um longínquo país chamado Sabá. Tinha ouvido falar da extraordinária fama do rei israelita. Queria conhecê-lo e admirá-lo pessoalmente. Esta passagem era tão popular e conhecida que o próprio Jesus a citou quando os judeus não queriam acreditar nele: “no dia do juízo (final), a rainha do Sul há-de levantar-se contra esta geração para a condenar, porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. Ora, aqui está alguém maior do que Salomão”[4].

2. Na boa arte de fazer concordar, por antecipação, tem de bater tudo certo: uma rainha anónima viajou para Jerusalém de um país do Oriente. Agora, uns Magos anónimos de um país distante do Oriente puseram-se a caminho de Jerusalém. A rainha era sábia, sábios eram também os Magos. Ela procurava o rei dos israelitas para o admirar. Eles buscavam o rei dos judeus para o adorar. A rainha foi guiada por uma estrela. Os Magos também foram guiados por uma estrela até Belém. A rainha de Sabá, ao chegar, colocou enigmas difíceis de resolver e encontrou as respostas. Os Magos chegaram e colocaram um enigma difícil de resolver e encontraram a resposta. A rainha ofereceu a Salomão os presentes que trazia: ouro, incenso e pedras preciosas. Os Magos ofereceram ao Menino os presentes que lhe trouxeram: ouro, incenso e mirra.

Após admirar Salomão, a rainha regressou ao seu país e desapareceu da história. Depois de adorarem o Menino, os Magos regressaram ao seu país e desapareceram da história.

Os Magos desapareceram da história, mas não da imaginação dos cristãos que, relendo o Salmo 72, os fizeram reis. Mais tarde interessaram-se pelo seu número: de dois passaram a três, de três a quatro e, na Idade Média, chegaram aos doze. No séc. II, Sto Irineu insistiu na simbólica dos presentes: levaram ouro, porque Jesus era rei, incenso porque era Deus e mirra porque era homem.

As viagens das relíquias dos Magos não foram poucas e levaram séculos. Depois de terem nomes próprios - Belchior, Gaspar e Baltasar - e de os imaginarem de raças e cores diferentes - branco, amarelo e negro -morreram na Pérsia. Os restos mortais foram para Jerusalém. No séc. IV foram descobertos por Sta. Helena e transladados para Constantinopla no ano 490. Posteriormente, o imperador Manuel doou-os ao Bispo de Milão que os levou para a sua diocese no início do séc. XII. Por pouco tempo. Frederico Barba-Ruiva saqueou a cidade em 1162 e levou os corpos para Colónia (Alemanha), em cuja Catedral repousam actualmente.

3. Para 2017, a grande tarefa de um cristão, e de todas as pessoas de boa vontade, é a Paz anunciada num presépio de há dois mil anos. Chegaram agora D. Trump, V. Putin e Xi Jin Ping, os reis magos do dinheiro, do poder e das armas. Não cabem neste presépio. Mas é este que vale a pena. S. Paulo e o Papa Francisco vão ajudar-nos a saber porquê.

[1] Mt 21-12
[2] Cf.Os Reis Magos existiram? Bíblica, Nov-Dez, 2016, nº 367, pp 3-7
[3] 1Rs 3-5

[4] Mt 12, 42

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