Deus bate à porta de um par de noivos,
surpreende-os nos seus sonhos familiares e faz-lhes uma proposta aliciante,
embora estranha e perturbadora. Quer dar início à nova fase do projecto que tem
em curso desde a criação do mundo: repor a dignidade original do ser humano
que, entretanto, tinha sido ferida pelo pecado, e abrir-lhe os horizontes de
novidade insuspeitos.
Os noivos habitam em Nazaré, são gente
humilde e honrada, vivem os esponsais e aguardam, em esperança confiante, a
fase que se segue: habitar juntos. Ela é Maria e ele, José. Cada um, a seu
modo, tem o coração posto no futuro que se avizinha. Ambos, sem dúvida,
partilham a expectativa messiânica, como bons judeus, e aguardam a sua
realização. Ambos são surpreendidos pelo convite do enviado de Deus que
pretende a sua colaboração generosa e pede a aceitação correspondente. Maria
vai ser a Mãe do Filho de Deus, o Emanuel, a quem será dado o nome de Jesus.
José terá a missão de velar pela família e garantir o seu sustento, ser
responsável legal, inserir na história que remonta a David a nova situação
criada.
Lucas e Mateus, autores dos relatos
destes episódios como eram vividos pelas comunidades a que dirigiam os seus
escritos, mostram a reacção de perturbação e medo dos convidados. Em tons
diferentes e propósitos diversos. Nem era para menos! Imagine cada um o
sobressalto que teria se a “coisa” fosse consigo. O enviado de Deus dá
explicações que reforçam a grandeza da missão que lhes vai ser confiada e o desejo
intenso de que aceitem. O que vem a acontecer, felizmente. E deixa a claro o
respeito pela liberdade humana, iluminada pela verdade descoberta e assumida.
O domingo, que celebramos hoje, traz-nos
a figura de Maria, ficando a de José para outra vez. Vamos seguir os passos do
texto proclamado. Está elaborado, em estilo claro e atraente, para ser um
ensinamento sapiencial à maneira de memória agradecida pelo que aconteceu e não
tanto para fazer um relato histórico, como agora se entende.
É encantador o modo como o Anjo se
aproxima de Maria: “Tendo entrado onde ela estava”, diz o narrador. Que
suavidade e delicadeza! Nada que se compare a visitas ou aparições temerosas
como a alguns profetas ou mesmo a Saulo de Tarso. Parece que pede licença para
lhe falar ou que quer identificar o espaço em que habita: uma casa de família,
onde decorre a vida normal. Nada de esplendoroso como o Templo de Jerusalém
onde acontece o anúncio a Zacarias de que ia ser pai de João. A escolha do Anjo
é significativa e indicia o valor do quotidiano, da ocupação diária, do tempo,
do corpo, da relação entre as pessoas, da interioridade pessoal e da
consciência iluminada pela razão inteligente e pela fé esclarecida. E deixa-nos
o convite a valorizar o nosso dia-a-dia, as tarefas chamadas rotinas, onde o
amor discreto quer brilhar.
“Alegra-te, cheia de graça”, assim
começa a saudação do anjo visitador. Dá-lhe um novo nome. Ela é Maria por
registo familiar; agora é a cheia de graça por indicação divina; no fim do
diálogo, vai ser a serva do Senhor por decisão pessoal. É sempre a mesma jovem,
filha de Ana e de Joaquim, seus humildes pais.
“O Senhor está contigo”. Por isso, não
temas. Serena. Escuta o que Deus sonha para a humanidade por meio de ti: O
Filho do Altíssimo, o herdeiro das promessas a David, aquele que vai iniciar um
reinado sem fim, esse nascerá de ti por acção do Espírito Santo. E Maria evolui
interiormente: Da perturbação e perplexidade face ao anúncio, passa à pergunta
de esclarecimento, ao assentimento e abandono confiante expresso na entrega
incondicional: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”.
Gabriel, o anjo visitador, faz memória
de alguns feitos de Deus para libertar o coração de Maria da perturbação
sentida. E ela escuta e atende. Esta atitude diz-nos que a fé em nós nasce da
palavra, que há necessidade de conservar no coração o que vem da parte de Deus,
que só a coerência de vida é resposta adequada ao seu acolhimento
incondicional. Como seria bom cultivarmos o amor à Palavra de Deus que abre
novos espaços à nossa vida!
Após receber o consentimento de Maria, a
serva do Senhor, o anjo retirou-se. Como chegou, assim partiu. Sem mais
recomendações, nem alaridos. Com plena confiança, deixa o precioso legado a
germinar nas entranhas da que vai ser Mãe. Com plena liberdade. E responsabilidade,
também. Que respeito e discrição! Aqui e agora, o silêncio de Deus mostra toda
a sua fecundidade. E a sua transcendência toma o rosto sereno de uma criança
prestes a nascer.
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.