Fortes imagens emanam dos documentos do século XVII
sobre uma mulher comerciante chamada Bibiana Vaz de França, coloquialmente
conhecida como Nha Bibiana. Guineense de nascimento e membro de uma influente gang
mercantil, estabelecida num desses entrepostos “portugueses” de comércio
costeiro, ela ocupa um lugar especial nos escritos do último quarto do século
XVII.
O lugar, onde anteriormente existia uma tabanka, ou
seja, uma aldeia no território controlado pelos Pepel matrilineares, foi
fortificado, nos anos 1580, por comerciantes privados, os chamados lançados com
os negros e tangomaos ou tangomas. Eles,
geralmente tinham um ancestral cabo-verdiano na linha masculina, mas eram
guineenses pela linha feminina, embora alguns tivessem ascendência portuguesa.
A permissão para a fixação foi dada pelos Pepel, dunus di tchon em crioulo
(derivado do português “donos do chão”), aos ditos tangomaos , que viram a
construção de uma fortificação como uma medida de protecção.
Após receber o “direito de cidade” da Coroa
portuguesa (em 1605) e ter-se convertido numa “capitania”, Cacheu logo se
tornou o principal entreposto “português” para o tráfico de escravos, mas
também exportava cera de abelha, marfim, panos de algodão e peles animais.
Por volta da segunda metade do século XVII, tinham
emergido alguns gangs que combinavam o acesso às rotas para o comércio
Atlântico com vínculos certos com os fornecedores africanos locais. Os mais
poderosos gangs de Cacheu foram o Gomes, com origens sefarditas, e o Vaz de
França, relacionado aos grupos matrilineares Banhum e Pepel. Este último
controlava as áreas ribeirinhas do Rio Cacheu e tinha em Farim sua principal
fonte de comércio. Farim encontrava-se no limite das marés, no perímetro ocidental
da confederação de Gabu. Estando nas mãos dos Soninké, esta se desvinculou do
império do Mali no século XVI, e exerceu um domínio incontestado sobre as rotas
comerciais com a região do Alto Níger, no interior, até o século XIX.
Redes comerciais marítimas eram, sobretudo,
articuladas para a compra de noz de cola na região de Serra Leoa, mais ao sul,
e a sua troca, com barras de ferro e sal, por escravos e ouro na área de Farim.
A criação, por decreto real, mas com fundos privados, da Companhia de Cacheu,
em 1676, tinha como intenção tomar conta deste lucrativo comércio de escravos...
Uma das pessoas mencionadas no decreto de criação da
Companhia foi Ambrósio Gomes, marido de Nha Bibiana, um rico traficante de
escravos, com raízes africanas e sefarditas, que já tinha ocupado o posto de
capitão-mor e era visto como um futuro director da companhia. Nascido em Cacheu
em 1621, as suas raízes paternas apontam para a vila de Arraiolos, no Alentejo,
onde passou uma parte da sua infância numa família de origem sefardita. Sua mãe
era originária das Ilhas Bijagó, situadas defronte à costa da actual
Guiné-Bissau, que durante séculos foram importantes fontes de escravos. Ele era
tido como alguém capaz de inspirar mais medo e respeito do que o então
governador de Cacheu, um morgado — proprietário de terras — em Cabo Verde que
estava encarregado da companhia. Desde os anos 1640, Ambrósio Gomes
regularmente fez ouvir sua voz em Lisboa, reclamando do tratamento desigual
dispensado aos comerciantes guineenses, em comparação com os cabo-verdianos.
Uma fonte francesa descreveu-o, a ele e a seu filho Lourenço, como “negros, mas
civilizados e respeitados em seu país”.
Embora os dados biográficos sobre a vida de Bibiana
sejam muito sumários, sabemos que ela nasceu no início do século XVII. As
primeiras referências ao apelido Vaz, de origem cabo-verdiana, remontam ao
século XVI e sempre estiveram associadas ao rio Gâmbia, conforme atesta uma
menção ao primo de Nha Bibiana, Francisco Vaz de França em carta ao Rei escrita
pelo então capitão-mor de Cacheu em 1647. Muito pouco se sabe de Nha Bibiana
antes da morte do seu marido Ambrósio Gomes, além do facto de já estar casada
nos anos sessenta. Embora faltem dados conclusivos acerca do seu casamento com
Ambrósio Gomes, a aliança entre os dois gangs foi significativa.
Logo após a morte de seu marido, em 1679, uma disputa
com o recém-indicado comandante militar de Cacheu, José de Oliveira,
catapultou-a, já em idade avançada, para os livros de história. Ao fazer
cumprir a “regra da exclusão”, que proibia todo comércio com os “estrangeiros”
— holandeses, ingleses e franceses —, ignorando, assim, a recusa da comunidade
mercantil local em reconhecer o contrato da companhia, o comandante precipitou
a sua própria queda. Bibiana, seu irmão Ambrósio Vaz e seu primo Francisco
armaram uma emboscada e fizeram-no prisioneiro em 25 de Março de 1684, assim
que saiu da missa celebrada no hospício católico local. Ele foi algemado como
um escravo e humilhado diante da comunidade de Cacheu, quando Bibiana
declarou-o, publicamente, culpado de abuso de poder. A seguir foi mandado rio
acima, para Farim, onde foi mantido por mais de um ano no apertado e escuro
corredor de uma casa que Bibiana tinha lá. Pouco antes do “golpe”, os
comerciantes de Cacheu tinham feito uma petição acusando-o de “injustiças,
desonras, tiranias, roubos e aleivosias” além de deslealdade e furto.
Relatos posteriores claramente identificam Bibiana
como a dirigente que estava por trás da conspiração. Foi dito que todos os
encontros dos rebeldes tiveram lugar em sua casa, em Cacheu, e que foi ela que,
efectivamente, recebeu os assessores do comandante após sua prisão. Apesar
disso, a declaração que se seguiu à prisão, num tom marcadamente “republicano”,
trazia a assinatura de seu irmão, na época, um dos mais ricos comerciantes
afro-atlânticos da região. Em vez de ser uma chefe nominal, Nha Bibiana foi a
mais respeitada anciã do clã, mas não exerceu nenhuma função administrativa e
não sabia escrever o português. Em vez de ser uma figura secundária, que
permaneceu nos bastidores como muitas de suas congéneres, ela, por causa de sua
extensa clientela, que tanto era atlântica quanto africana, desempenhou um
papel-chave nos acontecimentos. Os eventos que se seguiram demonstram o
estreito relacionamento entre ela, seu irmão e seu sobrinho, que apoiaram os seus
actos.
Uma vez que o eminente prisioneiro não era somente o
comandante militar, mas também o director local do monopólio da coroa
portuguesa representado pela companhia comercial, a revolta revelou o profundo
e enraizado conflito entre os interesses portugueses na região e os dos gangs
mercantis locais. Ao reclamar poder político, os revoltosos declararam:
1. Não admitir capitão desse Reino, nem destas Ilhas
[de Cabo Verde], sem primeiro dar conta a Vossa Majestade, e esperar que saia
‘resolução’;
2. Nenhum Português negociará com os gentios, mas só
com os moradores da praça com pena do perdimento das fazendas;
3. Não queriam nem haviam de aceitar como não
aceitaram o contrato da Companhia, instituído por especiais ordens da VM, nem
tão pouco admitir na praça, nem ainda como particulares, os administradores
dela.
Quando a notícia chegou a Lisboa, a situação causou
grande embaraço e preocupação às autoridades portuguesas, temerosas de perder o
seu principal porto continental na costa da Alta Guiné.
O “golpe” de Cacheu, se tivesse sucesso, implicaria
no abandono de qualquer esperança portuguesa de competir com os rivais
europeus, além de acarretar a perda do lucrativo comércio com o Kaabú, no
interior. E o fato de que, dentre todas as pessoas, uma mulher; e, ainda por
cima africana e idosa, estava frustrando os planos portugueses na região, era
outra grande cruz a ser carregada pelos estrategistas políticos de Lisboa.
A parceria entre Nha Bibiana, viúva, e seu irmão,
então com seus cinquenta e tantos anos, é crucial para a compreensão do espaço
social no qual os conflitos tiveram lugar. Seus fortes laços colaterais,
estabelecidos por meio da coabitação e dos casamentos mistos com linhagens
africanas governantes, reproduziram um padrão de interacção afro-atlântica que
facilitou a tessitura das redes interculturais altamente fluidas, pelas quais a
região era conhecida. Estas encarnavam a efectiva combinação entre mobilidade
geográfica e social, que lhes permitiu assumir o controlo do comércio regional.
Seus “descendentes mestiços” representavam a essência do parentesco bilateral
num contexto matrilinear característico dos gangs mercantis da região. Foi
precisamente esta configuração que deu a mulheres como Bibiana uma base de
poder sociocultural que elas transformaram em riqueza económica e influência
política.
A sindicância sobre a revolta entre os moradores de
Cacheu (ocorrida em 1687) demonstra o quanto Bibiana foi aviltada e acusada de
reter toda a fortuna do falecido marido que ela recusou repartir com os filhos
do falecido Gomes, apesar de muitas queixas apresentadas a coroa portuguesa de
comerciar livremente com os africanos e outros europeus, como os ingleses,
especialmente na calada da noite, sem recolher qualquer imposto aos cofres de
Cacheu. Usando estes argumentos como pretexto — porque, afinal de contas, todos
negociavam com os comerciantes rivais operando na região e que pagavam mais —,
pedia que “aquela mulher” — algumas vezes também mencionada como “a viúva” —
fosse mantida sob custódia e submetida a julgamento, e que fosse feito um
inventário de suas posses. Os sindicantes acrescentaram que seria também
aconselhável colocar o seu irmão e o seu primo por trás das grades, pois, do
contrário, eles poderiam esconder a riqueza da família obtida ilegalmente.
Enfatizaram que ela deveria ser julgada em Cabo Verde, não só sugerindo que o
então comandante não tinha nenhuma influência significativa sobre a
administração, mas que queriam remover o "Gang Vaz" do poder.
Quando Bibiana foi, finalmente, feita prisioneira,
levada para Cabo-Verde, ela se beneficiou da hospitalidade de um chefe
linhageiro Banhum, ou udjagar (djagra em kriol), em cuja casa ficou.
Quando a Nha Bibiana, finalmente, foi concedido o
perdão real, após ter pagado uma soma simbólica como indemnização pelas perdas
sofridas pela Coroa, ela retornou à Guiné e moveu uma vigorosa campanha para
libertar seu irmão que, afinal de contas, fora o seu principal parceiro nos
eventos. No fim, tanto seu irmão quanto seu primo foram perdoados. Em troca, os
sindicantes decidiram obter uma declaração escrita, uma promessa e obrigação,
mas que não foi assinada directamente por ela, já que se declarou “analfabeta”.
Este documento formalizou o acordo entre a coroa portuguesa e Bibiana, que
prometeu construir uma fortaleza de pedra em Bolor, defronte a Cacheu, na barra
do mesmo rio, numa posição estratégica que controlava o acesso ao rio. Mas ela
somente o faria em troca da soltura e do perdão ao seu irmão e primo.
Entretanto, afirmou, com certa ironia, que, por ser mulher, não poderia levar a
cabo a construção do forte. Além disto, na região não havia pedra considerada
boa para construção, a qual teria de ser trazida de Cabo Verde. Todavia, ela se
declarou pronta para, “voluntária e livremente”, pagar pela construção.
Levando-se em conta a perda de bens sofrida durante e devido à sua ausência —
ela disse que tinha sido deixada somente com a posse de alguns escravos — e o
fato de que seu primo estava na posse de todos os seus bens, ela teve de contar
consigo própria para honrar o pagamento. A primeira parcela, com a metade do
valor, deveria ser paga quando seu primo chegasse a Cacheu, para o que não foi
fixada uma data, e a segunda deveria ser efectuada um ano depois. Ela
acrescentou que se devia “mandar-lhe restituição ao dito seu irmão a esta praça
soltandose da prizão em que está porque com a sua pessoa continuara o negócio
que não se pode perder por ser molher”. E, como forma de assegurar o
cumprimento de seu lado na barganha, ela deu em garantia “todos os seus bens
materiais”. Depois de tudo o que foi dito e feito, pode-se imaginar o que, na
prática, realmente significava esta garantia, já que nenhum desses bens podia
ser acessado por estrangeiros.
Depois de soltos, seu irmão Ambrósio e seu primo
Francisco tornaram-se alvos das autoridades de Lisboa, Cabo Verde e Guiné.
Francisco, referido como “primo de Bibiana”, foi acusado de crueldades, tais
como ter matado brutalmente alguns de seus escravos e “causado terror a todos e
ao gentio” na área do Rio Nunez mais ao sul. Um inquérito foi ordenado para que
se pudesse dar-lhe um “exemplar castigo”. Ambrósio tornar-se-ia um dos críticos
mais abertos das políticas e do apoio — ou da falta de ambos — de Lisboa,
durante os trinta anos seguintes, incluindo a falta de ajuda para lidar com as
ameaças dos africanos. Quase todas as petições formuladas pelos comerciantes de
Cacheu, nesse período, traziam sua assinatura. Nada foi mencionado sobre
Bibiana nos documentos após 1694, o que não surpreende, levando-se em conta a
sua idade já avançada e o seu estado de saúde.
O primeiro-ministro de Cabo Verde irá efectuar uma visita oficial à Guiné-Bissau no próximo dia 2 de Junho. José Maria Neves será acompanhado por uma delegação com uma componente governamental, empresarial e cultural.
ResponderEliminarO anúncio desta primeira visita de José Maria Neves a Bissau, enquanto Chefe do Governo cabo-verdiano, foi feito este domingo logo após ter recebido o seu homólogo guineense Domingos Simões Pereira, que se encontra na Cidade da Praia no quadro da sua participação no II Diálogo Estratégico sobre «Inovação na gestão do desenvolvimento» promovido pelo Instituto Pedro Pires para a Liderança.
A visita cuja duração ainda não foi definida terá o seu inicio precisamente no dia em que a TACV retoma a ligação aérea Praia/Bissau.