Estudo antropológico junto de famílias
de colonos procura cruzar histórias de vida com a história da colonização e
descolonização portuguesa em África.
A guerra colonial passou desapercebida a
muitas famílias portuguesas em Angola e Moçambique, alheadas do conflito e
surpreendidas depois pelo processo de descolonização decorrente do 25 de Abril
de 1974.
O fim do império significou o regresso a
Portugal de centenas de milhares de cidadãos nacionais, pejorativamente
apelidados de “retornados”, iniciando um processo de integração em muitos casos
traumático e com efeitos ainda no presente. O “retorno” foi precisamente o
último tema do painel “democratização e descolonização” que encerrou o primeiro
dia da conferência O Ano do Fim. O Fim do Império Colonial Português, que
terminou na sexta-feira no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em Lisboa.
“Muitas destas famílias [de colonos]
receberam o 25 de Abril em Portugal com indiferença, acabando por ser obrigados
a regressar por força dos conflitos armados internos da pós-descolonização,
nomeadamente em Angola”, explicou Elsa Peralta, antropóloga e investigadora do
ICS. A guerra colonial que antecedeu as independências foi seguida com igual
distanciamento. “Na maior parte das entrevistas que realizei junto desta
população, não se verifica um discurso que permita pensar que existia uma noção
do que estava a acontecer. Nem sequer havia consciencialização que ocorria um
conflito armado”, revela, ressalvando que esta indiferença não pode ser
generalizada a toda a sociedade colonial.
A natureza do regime que a revolução de
Abril encerra em Portugal e o seu minucioso controlo da informação junto das
populações africanas poderá explicar em parte este distanciamento, segundo
defendeu António Costa Pinto, historiador e organizador da conferência, que
alerta para a ausência de grandes estudos sobre esta temática. Elsa Peralta
alarga o leque de hipóteses ao facto destas populações estarem concentradas em
centros urbanos, longe dos palcos do conflito, e à ausência de qualquer tipo de
politização e envolvimento, que potenciava o desinteresse.
“É difícil aferir e podem existir várias
explicações”, salienta a antropóloga que iniciou esta investigação há cerca de
ano e meio, no âmbito do desenvolvimento do projecto “Memória, esquecimento e
pós colonialismo: representações públicas do Império Colonial Português”. “Este
trabalho segue a longa tradição tipológica das biografias familiares, escritas
a partir da recolha de dados etnográficos e de entrevistas em profundidade. Uma
abordagem que permite compreender como forças sociais e quadros culturais e
históricos são incorporados com a experiência individual. Ou seja, a partir de
experiências de vida concretas, pretende alcançar estruturas sociais, políticas
e históricas mais amplas.” Deixam de ser apenas histórias de vida, para se
tornarem também na história da colonização e descolonização portuguesa em
África.
Apesar das quatro décadas decorridas
sobre as independências e o regresso forçado a Portugal destas populações, na
sua maioria brancas, mas também mestiças e negras, Elsa Peralta encontrou
muitas resistências para revisitar este passado, que deixou feridas perenes que
ainda perduram, em muitos casos. “Muita gente recusou-se a falar, não só por
receio de exposição, mas simplesmente por não quererem recordar. Há um
ressentimento muito grande, privado, mas também com uma face pública, expresso
quando chega o momento das eleições, por exemplo. Não imagino estas populações
a votarem em candidatos ou linhas políticas próximas de figuras que identificam
como responsáveis pelo processo de descolonização. Não desculpam o que
aconteceu.”
Um passado traumático, que causa mágoa e
ainda não se reconciliou com o presente. “Os ressentimentos que emergem das
entrevistas são geralmente três, começando pelo rancor relacionado com o
carácter súbito e inesperado da descolonização e do regresso a Portugal. Para a
maioria dos entrevistados, a possibilidade de virem a abandonar África era
nula, mesmo depois do 25 de Abril. Sentem-se inconformados e mesmo ludibriados
pelo processo das independências conduzido pelas forças revolucionárias em
Lisboa”, esclarece Elsa Peralta. A perda dos bens materiais deixados para trás
e o chamado “desapossamento”, ou perda da legitimidade aos olhos do Estado e da
sociedade, são igualmente factores de ressentimento, segundo a investigadora.
E depois, houve os traumas de um
regresso súbito e inesperado a Portugal, onde foram recebidos, em muitos casos,
com hostilidade e desconfiança por uma sociedade então emersa num processo
revolucionário, marcado pela forte radicalização ideológica em torno da questão
colonial. “Aqui são apelidados de ‘retornados’, que muitos consideram, na melhor
das hipóteses, um eufemismo para nomear uma população de refugiados das guerras
civis em África. Na pior das hipóteses, consideram-no um termo ofensivo e
persecutório que permitia rotular parte da população nacional como conivente
com a doutrina salazarismo e da colonização.” Para outros ainda, a expressão
seria apenas inexacta, visto já estarem em terras africanas há várias gerações.
Inquestionável é que muitos dos
testemunhos recolhidos por Elsa Peralta contrastam claramente com o quadro
traçado para esta população, que sugere a sua integração positiva na sociedade
portuguesa: “Esta suposta história de sucesso não é corroborada por muitos dos
entrevistados, que preferem salientar o efeito traumático, marcado por uma
integração muito difícil, que, em muitos casos, ainda hoje não está
completada.” Com o público
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