Combatente
da Liberdade, Manuel dos Santos, o Comandante Manecas, está nos dois momentos
que ficam para a história da guerra colonial: o assalto ao quartel de Guiledje
e a introdução dos mísseis Strella no cenário da luta pela independência. No
pós independência, acaba por ficar na Guiné-Bissau, onde chegou a ser Ministro
das Finanças e embaixador em Angola. De passagem por Cabo Verde, aceitou dar
uma entrevista ao Expresso das Ilhas. E foi uma conversa sem tabus.
Expresso
das Ilhas — Era estudante de engenharia em Lisboa quando resolve abandonar a
universidade e entrar na luta pela libertação. Quais foram as suas motivações?
Manecas
Santos — Uma era a situação colonial que se vivia em Cabo
Verde, que era terrível. Aparentemente, aqui, já se começou a esquecer como era
Cabo verde há sessenta ou setenta anos, quando se morria ainda de fome. Eu era
miúdo, mas assisti à última fome que houve em Cabo Verde, vivia então em Santo
Antão. E, de facto, há coisas que não se esquecem. Ver gente morta na estrada
por não ter nada para comer. Por outro lado, o PAIGC logo depois da sua
fundação enviou um dos militantes mais antigos, o Abílio Duarte, para agitar as
águas do ponto de vista político em Cabo Verde e ele foi parar ao Liceu de São
Vicente, onde eu estudava. É do Abílio que eu ouço, tinha 15 ou 16 anos, as
primeiras coisas sobre nacionalismo, política, etc. Depois, fui para Lisboa estudar,
o meu irmão também já lá estava e ele estava muito ligado aos meios estudantis
de esquerda o que, obviamente, teve alguma influência sobre mim. Continuámos a
encontrar-nos com outros jovens da mesma geração e fundámos em 62/63 o primeiro
comité do PAIGC em Lisboa e tínhamos contacto com o secretariado-geral em
Conakry através de uma pessoa que estudava em Paris na altura, o António St.
Aubyn. Portanto, a motivação foi esta, não só a situação colonial que se vivia
em Cabo Verde, mas também todo um trabalho político que terá começado com a ida
do Abílio Duarte para Cabo Verde.
E
não havia o sentimento de medo? Afinal, estava-se a arriscar a própria vida
quando se embarcava numa aventura dessas.
Nós éramos jovens. Eu tinha 22 anos
quando saí de Lisboa, nessa altura o medo não é muito (risos).
Na
Guiné-Bissau tem um contacto próximo com Amílcar Cabral…
Não tão próximo. Eu era soldado,
encontrei-me com ele várias vezes, obviamente. Agora, o que lhe posso dizer é
que continuo a pensar que sou um discípulo de Amílcar.
Amílcar
Cabral que é considerado um humanista, por certos historiadores, mas também
capaz de ter posições duras, como no seguimento do congresso de Cassacá.
Não acho que haja contradições. O
Amílcar não teve posições assim tão duras. Basta lembrar que o Congresso de
Cassacá não condenou ninguém à morte.
Mas,
posteriormente acabaram por ser mortos vários comandantes.
Nem posteriormente. O único indivíduo
que foi morto era um dos comandantes de guerrilha balanta, porque resistiu à
prisão. De resto, o congresso de Cassacá não condenou ninguém à morte e Cabral
era formalmente e publicamente contra isso.
Há
documentos que falam na morte de vários comandantes e não apenas de um.
É falso. Há muita gente interessada em
fazer da história do PAIGC um mistério muito grande, com uns indivíduos
maquiavélicos, é tudo mentira.
O
sucesso do PAIGC na Guiné-Bissau pode ser explicado pelos vectores: Cabral,
saúde e educação para a população, a ajuda militar cubana e soviética e o apoio
logístico da Guiné-Conakry?
E a ajuda da Suécia, não te esqueças.
Nos anos finais da guerra. Ajuda que não era em armamento, mas era uma ajuda
humanitária extremamente importante.
Saúde
e educação para a população foi uma estratégia para mostrar o que o PAIGC
poderia dar?
Acho que não foi estratégia, era um
imperativo. Em 1963 começaram a aparecer as primeiras áreas que já não eram
administradas pelo poder colonial e essas áreas tinham de ser administradas e
tinham necessidades. É claro que essas necessidades, principalmente de educação
e saúde, foram, eu diria, sabiamente orientadas por Cabral no sentido de um
desenvolvimento maior das pessoas. E não foi só a saúde e a educação, foi a
justiça, foi a polícia, foram os tribunais populares, enfim, toda uma série de
medidas que se tomaram e que eram importantes para administrar as áreas
libertadas. E ainda dando atenção a uma matéria que está hoje na moda e que o
PAIGC já falava há 60 anos que é o problema do género. As aldeias eram
administradas por um comité eleito e nesse comité havia obrigatoriamente duas
mulheres em cinco pessoas. Penso que actualmente a Guiné-Bissau tem a mulher
mais livre desta costa de África, não é por acaso, vem daí.
Mesmo
com todas estas confusões políticas?
Mesmo com estas confusões todas. A
Guiné-Bissau não tem só coisas negativas, tem muitas positivas, algumas delas
resultantes da luta e algum dia a Guiné-Bissau vai tirar proveito disso. Não
estou pessimista. Vinte anos na história de um país, não é nada. Ultrapassa-se.
Voltando
à Guiné no período da guerra. Quando Spínola chega e adopta a chamada ‘guerra
psicológica’ principalmente batendo na tecla da divisão étnica entre
cabo-verdianos e guineenses, essa tensão sentia-se de facto? Ele descobriu uma
brecha ou esta foi criada artificialmente?
Acho que as duas coisas. Efectivamente o
General Spínola quando chega à Guiné trata de fazer uma anti-guerrilha moderna,
algo que não acontecia com os seus predecessores. Até diria que os
predecessores dele foram quase nossos aliados, tantas asneiras fizeram. O
Spínola faz uma anti-guerrilha moderna que obviamente inclui a acção social. Foi
nessa altura que a população da Guiné-Bissau, aquela que estava junto das
autoridades portuguesas, começou a auferir de melhores cuidados de saúde,
melhores escolas, etc. Era evidente que isso servia para se opor aquilo que o
PAIGC fazia. É dos livros. As coisas entre guineenses e cabo-verdianos devem
ser relativizadas. Vou dar-lhe o meu exemplo, estive em muitas unidades onde eu
era o único não guineense e não preto e nunca tive o mínimo problema. Os
problemas existiam mais em Conakry onde as pessoas estavam confrontadas com
condições não muito fáceis de vida e cada um a querer alguma coisa. Quando há
competição essas coisas vêm sempre ao de cima, até agora. Mas, acho que não é
de dar muito significado. As pessoas falam muito nas contradições entre cabo-verdianos
e guineenses, que terão estado na origem do assassinato de Amílcar Cabral, é
tudo conversa para boi dormir, como diz o brasileiro.
Acha
que isso não teve qualquer reflexo na morte de Amílcar Cabral?
Nada. Que os tipos que estavam a fazer o
complot contra Amílcar Cabral e que acabaram por matá-lo e que queriam dar cabo
do partido utilizaram isso, sim utilizaram. Mas, não creio que tenham tido
grande sucesso com isso. Aliás, depois do assassinato de Cabral vê-se qual foi
o desenvolvimento da luta.
Vamos
lá chegar, mas na altura chegaram a aparecer no Voz di Povo relatos de
perseguições brutais aos cabo-verdianos, no período que se seguiu ao
assassinato de Cabral.
Onde?
No
Voz di Povo, aqui em Cabo Verde.
Pergunto, quem foi morto ou espancado?
Estou
a basear-me nas fontes da época.
Por acaso, eu não estava lá, quando
Cabral é assassinado eu estava na União Soviética. Mas, há aqui muita gente que
estava lá.
Acha
que também se usou isso para fazer propaganda cá?
Eventualmente. Mas, isso é algo que é
mais histórias da carochinha que outra coisa.
Voltamos
então ao cenário de guerra. É nos pós assassinato de Cabral que se dá o salto
tecnológico na Guiné-Bissau…
O segundo salto. O primeiro foi a
artilharia, depois foi as antiaéreas.
Com
os mísseis Strella. É o momento de viragem?
Não diria viragem, diria progresso de
uma mudança muito grande na nossa capacidade ofensiva e na negativa da
capacidade ofensiva da tropa colonial.
O
que representaram, no fundo, os Strella?
Representaram o acabar com os aviões e
os helicópteros, essenciais na guerra de guerrilha.
Há
analistas que defendem também que os Strella ajudaram a diminuir as tensões
entre cabo-verdianos e guineenses porque para operar os mísseis era necessário
pessoal mais bem formado e com conhecimentos, por exemplo, de matemática.
(risos) Havia um cabo-verdiano a operar
em vinte e quatro, que era eu. Os outros eram todos guineenses.
Diz-se
que foi Manuel dos Santos quem abateu o tenente-coronel Almeida Brito, a
primeira vítima dos Strella.
Não fui eu. Quem o abateu chama-se Fodé
Cassamá, guineense de Boé.
Cheguei
a ler que se teria encontrado com a viúva do tenente-coronel Almeida Brito.
Não é verdade. Houve uma senhora, viúva
de um oficial piloto que morreu na Guiné, que foi à Guiné porque pensou que o
marido estivesse preso, mas ele tinha morrido e obviamente estive com ela e
lamentei ter de lhe dizer que efectivamente o marido tinha morrido.
Em
Lisboa, em 2010, durante o lançamento do livro A Última Missão [do coronel Moura
Calheiros, que esteve na batalha de Guidaje] disse que era chegada a altura de
falar desse período…
Sem problemas e sem complexos.
E
acha que estamos a conseguir fazê-lo?
Não.
Porquê?
Há quem queira doirar as pílulas. Quando
vejo aquele programa do Furtado na RTP [A Guerra, documentário sobre a guerra
colonial da autoria e realização de Joaquim Furtado] às vezes riu-me. Até das
contradições do próprio programa. O que se há-de fazer?
Mas
há um doirar de pílula dos dois lados ou só de um?
Acho que é dos dois lados, porque
falamos muito pouco disso. Para o programa do Furtado, por exemplo, fizeram-me
uma entrevista de uma hora e depois passaram um minuto. Acho que estão a
prestar um mau serviço, porque a guerra colonial faz parte da memória de todos
nós e eu acho que os portugueses têm o direito de saber o que aquilo custou. E
não custou pouco, sobretudo na Guiné.
Estamos
a falar de todos os custos? Monetários e humanos?
Sim, sim. E ainda hoje há gente com o
chamado stress pós-traumático, que não conseguiu a recuperação total. Portanto,
acho que poderiam fazer melhor.
Do
lado guineense e cabo-verdiano não falta também contar a história?
Falta, claro. Há muito pouca coisa
escrita por guineenses e cabo-verdianos que participaram na luta na Guiné.
Talvez seja por isso que se tente branquear tanta coisa.
E
idolatrar outras?
Acho que do nosso lado nunca houve tanta
tentativa de idolatrar gente. A não ser por algumas pessoas Amílcar Cabral.
Mas, mesmo isso, se Amílcar Cabral estivesse vivo não ficaria contente.
Em
1973 fazia parte do Conselho Superior de Luta. Hoje não faz parte da lista dos
comandantes aqui em Cabo Verde, que estavam quase todos no Conselho Superior de
Luta. Acha que devia estar nessa lista?
Acho que sim. Mas, isso é uma decisão
que cabe ao governo de Cabo Verde.
Porque
acha que ficou de fora?
Porque não estava cá. Não creio que haja
outras razões.
Aliás,
em 73 é já conhecido na Guiné como comandante Manecas e está à frente do ataque
ao quartel de Guileje. Foi o ‘momento Dien Bien Phu’ de Portugal [batalha
travada entre o Việt Minh e o corpo expedicionário francês no Extremo Oriente,
de 13 de Março a 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da Guerra da Indochina]?
Não houve nada disso na Guiné. Houve uma
acção extremamente importante [Guileje] contra o exército colonial, que já
estava enfraquecido pela falta de aviões. Quando enfrentámos a tropa especial
portuguesa estávamos em vantagem porque era o nosso território e eles não
tinham a aviação a apoiar, não tinham hipótese. O Almeida Bruno [comandava as
tropas portuguesas na altura] disse uma data de asneiras, só que um oficial
dele, um comando africano…
O
Marcelino da Mata?
Não, era outro. Escreveu um livro também
onde contradiz tudo o que o Almeida Bruno contou.
Por
falar em Marcelino da Mata. Ele era tão bom soldado como ele próprio diz?
O Marcelino da Mata é um bandido, um
criminoso, mais nada do que isso. As orelhas que ele tinha não eram de militares,
eram de civis que ele matava [há descrições de soldados portugueses que
Marcelino da Mata usava orelhas cortadas como troféu. Outros dizem que isso é
mentira].
Não
deixa de ser o militar português mais condecorado de sempre.
Pelas más razões.
O
Marcelino da Mata afirmou que o PAIGC tinha morto a mulher dele e que fazia
tudo por vingança.
Tenho as minhas dúvidas. Não creio que o
PAIGC tenha feito coisas dessas. Não fazia. Pode acontecer que num ataque morra
gente, morram civis, isso existe em todas as guerras. Agora, ir deliberadamente
matar a família do Marcelino da Mata que, por sinal, é primo do primeiro
Primeiro-Ministro da Guiné, acho duvidoso. Ele lá sabe as razões que o levaram
a fazer aquelas coisas. Mas, não deixo de dizer que o Marcelino da Mata é uma
vergonha para o exército português. Há poucos dias estava a falar dessa questão
das tropas africanas com o comandante Pedro Pires e ele tem uma opinião com a
qual estou inteiramente de acordo: foi o exército colonial que causou o
problema dos comandos e da tropa portuguesa e que está na base do que eles
sofreram depois da independência.
Mas
o PAIGC garantiu que eles não sofreriam nada.
O PAIGC não garantiu coisa nenhuma.
Há
jornais da época que dizem o contrário.
Isso são os jornais. Documento não há
nenhum.
Eles
foram convencidos a entregar as armas.
Eles entregavam as armas a bem ou a mal.
Eu lembro-me até que na zona onde estava houve uma espécie de rebelião das
milícias com os comandos africanos e um dia chega lá o comandante português
todo alterado porque os comandos tinham recusado entregar as armas eu
disse-lhe: ‘tire os portugueses daí e a gente vai buscar as armas’ e
entregaram-nas imediatamente. Sabiam o que a casa gastava. Não estou a contar
vantagem, era mesmo assim.
O
assassinato dos comandos africanos não podia ter sido evitado?
Podia. Já agora, vou-lhe contar uma
história que me foi contada pelo Nino Vieira numa altura em que ele não tinha
interesse algum em branquear Luís Cabral. Presumo que seja verdadeira. Como
sabe, Luís Cabral tinha boas relações com o Ramalho Eanes [oficial e
ex-Presidente da República português], numa das passagens de Luís Cabral por
Lisboa, o general Eanes pede-lhe que liberte os oficiais de comandos que
estavam em Bissau, que lhe desse documentos para viajarem para Portugal. Luís
Cabral concordou. Quando chega a Bissau chama gente do exército para lhes dizer
para fazerem isso e o chefe da segurança diz-lhe que eles já estavam todos
mortos. (pausa) Mas, a primeira culpa é do exército português que os deixou lá.
Eles eram militares portugueses. Porque evacuaram todos e eles não? Porque não
eram brancos.
Alguns
foram evacuados.
Só o Marcelino da Mata. Mais nenhum.
As
fontes portuguesas contam outra versão.
Não foram evacuados. Fugiram. O único
que foi evacuado foi o Marcelino da Mata e havia razões mais do que suficientes
para o fazerem.
Do
que eu li, houve comandos que recusaram ir porque tinham várias mulheres e só
deixavam levar uma.
Isso é treta.
O
25 de Abril começa na Guiné. Sentiram que era o início do fim do regime
colonial?
Acho que houve alguns oficiais
portugueses na Guiné – o Otelo [Saraiva de Carvalho], o Salgueiro Maia e outros
– os homens que fizeram o 25 de Abril, que entenderam que aquilo não tinha
solução. Ou por outra, a solução tinha de ser uma coisa negociada. O Spínola
foi ter com o Marcello Caetano [o último Presidente do Conselho do Estado
Novo], porque era suficientemente inteligente para saber que aquilo não tinha
solução, e o Marcello recusa-se a negociar seja o que for. Obviamente, não há
nenhum exército que queira perder uma guerra. Não sei se viu os documentários
feito pelo José Manuel Saraiva, um sobre Guileje e outro sobre Medina do Bué…
Nunca
vi.
Ele põe o general Monge a falar e ele
diz uma coisa engraçada é que nessa altura não eram as tropas do PAIGC que
estavam a construir defesas anti-tanque, era a tropa portuguesa.
Ou
seja, estavam a passar para uma guerra defensiva.
Como é óbvio. Sem aviões o que podiam
fazer? Toda a filosofia das tropas especiais numa guerra anti-guerrilha é
baseada na existência de uma aviação eficiente, o que não era o caso.
Mas
continuava a haver uma discrepância grande de forças no terreno: o PAIGC com
pouco mais de 7 mil homens e o exército português com cerca de 35 mil.
Pois é, mas dos quais 90 por cento
estavam acantonados em quartéis e não tinham operacionalidade nenhuma, ao passo
que os nossos soldados eram todos operacionais. E havia uma diferença
qualitativa: a tropa portuguesa, do serviço militar obrigatório, chegavam à
Guiné e dois anos depois iam embora. Quando eles começavam a estar minimamente
preparados para combater iam-se embora, enquanto nós tínhamos soldados com 6, 7
e 8 anos de guerra às costas, gente com uma experiência enorme de combate. Eram
duas realidades diferentes. E nós não tínhamos de ocupar terreno nenhum.
De
qualquer forma, quando se dá o 25 de Abril e terminam as hostilidades, pode-se
dizer que havia cansaço das duas partes?
Havia. Nós todos queríamos acabar com
aquilo. Mas, não tenho dúvidas também que a tropa portuguesa, por razões
óbvias, estava mais cansada.
Ainda
em 74 os primeiros combatentes cabo-verdianos começam a chegar ao arquipélago.
Em 75 dá-se a independência e a democracia chega 15 anos depois. A transição
podia ter acontecido mais cedo?
Teríamos de definir uma série de coisas
e uma delas é se a democracia que foi importada da Europa serve ou não. Aqui em
Cabo Verde, muito provavelmente serve. Na Guiné, acho que tem muitos pontos
escuros. Não podemos esquecer que a Guiné é uma sociedade onde o tribalismo
ainda estava presente. Uma sociedade onde a informação é escassa. Onde o índice
de analfabetismo é alto. As pessoas vão votar porquê e para quê?
Porquê
e para quê?
Essa é a pergunta que eu ponho. O Kumba
foi eleito [Kumba Yalá, presidente da Guiné-Bissau de 2000 a 2003, quando foi
deposto por um golpe militar], as pessoas não se perguntam porquê? Como é que
um tipo daqueles chega e é eleito Presidente da República? É uma das
interrogações que as pessoas podem legitimamente pôr. E a verdade é que a
introdução de um sistema multipartidário contribuiu para um recrudescimento do
tribalismo na Guiné.
Porque
os partidos foram procurar apoios junto das tribos?
Obviamente. Isso não é novidade. O
próprio Cabral disse que indivíduos destribalizados quando procuram o poder
lembram-se que são balantas, ou fulas, para irem buscar as solidariedades.
Já
que cita Cabral, eu perguntei sobre a democracia cabo-verdiana porque foi o
mesmo Cabral quem disse que o homem africano devia ser livre de decidir por si
próprio.
Deixe-me dizer-lhe outra coisa. Um dos
problemas disto tudo é que a Europa e a América pensam que o que é bom para
eles é bom para toda a gente. Ora, Amílcar Cabral era um indivíduo que dava uma
importância enorme à participação das pessoas e essa é uma das pedras de toque
da democracia – directa ou indirecta. (pausa) Não penso que fizemos as melhores
coisas depois da independência e penso que podíamos ter feito muito melhor, mas
considerar que a democracia representativa é uma panaceia que vem resolver
todos os problemas… Basta ver os resultados.
Cabral
é que disse que devemos andar pelos próprios pés.
De acordo com as nossas próprias
realidades.
No
livro de Humberto Cardoso “O Partido Único em Cabo Verde: Um Assalto à
Esperança” levanta-se a dúvida se Manuel dos Santos tinha sido persuadido a
ficar na Guiné ou se tinha sido impedido de regressar a Cabo Verde. O que
aconteceu?
Nem uma coisa nem outra. Era um partido
com as características que todos conhecem e quando termina a luta armada, no
quadro da unidade Guiné/Cabo Verde, o partido ordenou-me que ficasse na Guiné,
nem me perguntou a minha opinião. E eu fiquei. Não fiquei zangado, devo dizer,
mas era assim. Fui a Angola também.
Onde
participou na guerra civil ao lado do MPLA.
Não fui obrigado também, mas fui. É
preciso ajuizar o comportamento das pessoas pela época em que elas viveram e
tiveram determinado comportamento. Devo dizer que me sinto bem na Guiné. Estou
como peixe na água. Sou o último que tem o estatuto das duas nacionalidades
originárias, na Guiné sou guineense, em Cabo Verde sou cabo-verdiano. Nasci em
Cabo Verde, mas tenho direito à nacionalidade originária por ter sido
combatente e entendo que não devo perder essa qualidade.
A
14 de Novembro de 1980 dá-se o Golpe de Estado de Nino Vieira. Na altura, os
autores do golpe preferiram falar em Movimento de Reajustamento, exactamente o
que tinha sido dito em Cassacá. Foi uma manobra inteligente?
Há tempos estava a falar com um italiano
e ele disse-me que os militares mais inteligentes do mundo são os guineenses:
dão golpes de estado mas nunca assumem o poder e nunca dizem que foi um golpe
de estado, dizem que foi outra coisa qualquer (risos).
Mas,
quando tentam encobrir o golpe sob a cortina do reajustamento isto foi para
quem? Para a comunidade internacional ou para o próprio PAIGC?
Acho que foi para todos. O PAIGC esteve
na corda bamba, nessa altura, na Guiné.
E
houve trocas de cartas bastante violentas entre Aristides Pereira e Nino
Vieira.
Pois, mas o problema não está aí, está
no interior. Houve um hiato de uns meses em que o PAIGC esteve… Mas, com a
realização do Congresso voltou à normalidade em termos partidários.
Há
analistas políticos guineenses que dizem que essa data significou a segunda
morte de Cabral.
Não tenho essa opinião. Amílcar Cabral
já foi morto uma data de vezes.
Na
altura tornou-se também pública a insatisfação que havia em relação a Cabo
Verde e aos cabo-verdianos, tanto mais que alguns regressam ao arquipélago.
Você nunca regressou. Acha que era mais respeitado porque tinha sido um
comandante de terreno.
Não foi por causa disso.
Pergunto-lhe
isso porque o Osvaldo Lopes da Silva falou nos ‘comandantes de retaguarda’.
Ele era um deles (risos). Uns dias
depois do 14 de Novembro eu estava cá. Vim falar com Pedro Pires e com o
Presidente Aristides Pereira. Aristides Pereira já morreu, mas Pedro Pires pode
confirmar isso.
De
qualquer forma, acaba por regressar à Guiné.
Continuei a fazer parte do governo,
nunca saí. Ok, eu sou respeitado na Guiné. Acha isso uma coisa má?
Não
estou a fazer juízos de valor, estava apenas a tentar saber porque é que alguns
vieram embora e você ficou.
Vou-lhe dizer outra coisa, o Nino, o João
Bernardo Vieira, continuou a ter boas relações com todos os combatentes que
estavam aqui em Cabo Verde. E quando o PAICV perdeu o poder até ajudou alguns.
Quer
explicar melhor isso?
Não, não quero. Mas é a verdade. Sabe
que Guiné e Cabo Verde têm uma ligação histórica e étnica muito grande. Você
era capaz de imaginar que o Nino Vieira era de ascendência cabo-verdiana? A mãe
dele chamava-se Florença de Pina Araújo, descendente de gente da ilha do Fogo,
e o pai dele era dos Vieiras daqui de São Domingos e agora? E há outros, muitos
mais.
Da
parte do PAICV não houve nenhuma pressão sobre si porque ficou na Guiné?
Podia ter havido. Penso que se o
camarada Aristides tivesse ido à Guiné naquela altura seria capaz de modificar
muitas coisas. Mas, não foi. Se fosse Cabral tinha ido. Na hora.
Bem,
o Nino Vieira era ligeiramente ameaçador nas suas cartas, não dava grandes
garantias.
(silêncio) Eu sei do que estou a falar.
Nino Vieira e Aristides Pereira continuaram a ter relações estreitas, sou
testemunha disso, até da ajuda que Nino Vieira deu a Aristides Pereira quando o
PAICV perdeu as eleições.
Os
jornais cabo-verdianos, jornais oficiais do partido, da altura mostram outra
coisa.
Espero que você, enquanto jornalista,
não acredite em tudo o que dizem os jornais (risos).
Sabe
certamente que se chegou a escrever nos jornais cabo-verdianos que Manuel dos
Santos era a flor na lapela de Nino Vieira.
(risos) O que é que eu hei-de fazer?
Éramos amigos sim e fomos amigos até ele morrer. Isto pode escrever, que eu
assino por baixo. Mas, não mais do que isso. Nunca estivemos juntos em
negócios. Éramos amigos e somente isso.
Em
91 Cabo Verde abre-se para a democracia. Na Guiné-Bissau a realidade tem sido
outra, golpes, contra golpes, os próprios Estados Unidos da América
consideraram a Guiné um narco-estado. Para que serviu a guerra de libertação
afinal?
Serviu para mudar uma série de coisas na
Guiné. Como estava a dizer-lhe há bocado, a Guiné não tem só coisas negativas.
Há mais para além dos títulos e há pessoas.
Há
hoje uma nova fase na Guiné?
Estamos a assistir à tomada do poder
pelo actual Primeiro-Ministro, que é um homem que não pode ser acusado de ter
estado na luta de libertação nacional, porque era muito pequeno, mas que é um
individuo que viu que há muitas coisas boas na história da Guiné e que é
preciso tirar proveito delas.
Os
militares não voltarão às ruas?
Creio que não. Eles também já
descobriram que o crime não compensa. Este Primeiro-Ministro merece ser
ajudado.
De
qualquer maneira, o sonho de Amílcar Cabral – de uma Guiné independente,
democrática e desenvolvida – ainda está por cumprir 40 anos depois.
Amílcar Cabral não era sonhador, era um
político avisado. Queria que a Guiné-Bissau fosse diferente daquilo que é hoje,
não tenho dúvidas nenhumas, e penso que um dia vai ser. Cabral e aquilo que ele
disse ainda está bem vivo e pode ser utilizado. Cabral não era um profeta,
seria o primeiro a dizer que não era isso, mas as suas análises políticas ainda
são actuais em muitos domínios.
E
seria o primeiro a dizer que falhou em algumas situações?
Não creio. Assim como não considero que
eu falhei. Se a direcção central for a correcta, mesmo que haja desvios, um dia
chega-se lá. E é isso que Cabral representa: um dia chega-se lá.
Qual
é o legado de Cabral?
Não espera que lhe responda a isso em
dois minutos pois não?
Acha
que o cabralismo é hoje recordado somente em certas datas?
O cabralismo é uma treta! Não acredito
nessas histórias de cabralismos e outros ismos.
Há
muitos camaradas que considerariam isso uma heresia.
Esses são os primeiros a violar as
regras (risos). Aqueles que batem no peito? São os primeiros a violar as
regras. Acho que Cabral é um homem cujo pensamento merece ser estudado, merece
ser tido em conta. As análises dele, eu penso, ainda não foram ultrapassadas,
pelo menos em África, naquilo que diz respeito à vida política dos países
africanos. Cabral teve uma frase em que ele diz que a grande fraqueza dos
movimentos políticos africanos era a sua falta de ideologia, ou seja, a sua
falta de objectivos claros e concretos que condicionassem a sua actuação.
Resumindo, o que ele queria dizer é que eles falavam uma série de tretas e
depois faziam o que lhes apetecia. Não estamos muito longe disso. Lí aqui»
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.