1 Depois do êxito mundial de Sapiens,
com mais de um milhão de exemplares vendidos, Yuval Noah Harari publicou em
2015 Homo Deus, que, depois de reflectir sobre as ameaças da biotecnologia e da
inteligência artificial ao humanismo e que nova religião poderia substituí-lo,
termina perguntando em que devemos centrar-nos se pensarmos em termos de meses
ou de anos, respectivamente. Se adoptarmos uma visão realmente ampla da vida,
"todos os outros problemas e questões são eclipsados por três processos
interconectados: 1. A ciência converge num dogma universal, que afirma que os
organismos são algoritmos e que a vida é processamento de dados. 2. A
inteligência desconecta-se da consciência. 3. Algoritmos não conscientes mas
inteligentíssimos rapidamente poderiam conhecer-nos melhor do que nós próprios".
Estes processos levantam três perguntas-chave: "1. Os organismos são
realmente só algoritmos e realmente a vida é só processamento de dados? 2. O
que é mais valioso: a inteligência ou a consciência? 3. Que é que acontecerá à
sociedade, à política e à vida quotidiana quando algoritmos não conscientes mas
muito inteligentes nos conhecerem melhor do que nós próprios?"
2 Realizar-se-á o sonho do salto para
máquinas inteligentes e autoconscientes, e a caminho da imortalidade?
Nem Luc Ferry, para quem, embora não se importasse
de viver mais tempo, pelo contrário, a imortalidade neste mundo é um
"fantasma", nem Jean Staune vêem como é que um computador poderia
aceder ao estado de consciência ou sequer de simulá-lo. Também não vejo. Aliás,
como é possível a emoção, sem uma base biológica? E a consciência, a
consciência de si, continua um "milagre": essa luz que,
auto-iluminada, ilumina tudo o que não é ela, e que faz de cada um uma
intimidade única, de tal modo que eu não sei o que é ser outro. Essa consciência
de si, no seu carácter intransferível, é avassaladora. Sobretudo: tenho um
cérebro, mas sou eu. A ciência não explica.
E como produzir uma máquina
verdadeiramente livre, se precisamente "programar" se contrapõe a ser
livre, dispor de si em liberdade? A tese de máquinas conscientes parte do
pressuposto da identidade entre cérebro e consciência. Ora, embora a
consciência tenha emergido a partir das propriedades ontológicas da matéria,
realmente a consciência não parece redutível ao cérebro. De facto, temos
cérebros, mas somos eus. Como se passa da objectividade para a subjectividade,
de processos da ordem da terceira pessoa para a vivência de si na primeira
pessoa?
3 No entanto, o jesuíta Javier
Monserrat, neurólogo, filósofo e teólogo, levanta algumas questões pertinentes.
Segundo ele, este é o paradoxo: por um lado, "o modo de ser real próprio
do homem não pode reduzir-se ao modo de ser real dos animais, e, muito menos,
do mundo físico da pura matéria", mas, por outro, "não é menos
verdade que a ciência nos impõe hoje aceitar que formamos parte de um processo
evolutivo unitário que não tem alternativa".
A natureza humana, aberta, terá mudanças
evolutivas, mas a pergunta é: "Produzir-se-á uma mudança qualitativa na
natureza humana?" É evidente que as novas tecnologias abrem perspectivas
impressionantes para promover o futuro da evolução e da natureza humana. Não se
pode duvidar de que a espécie humana poderá dispor de cyborgs ao seu serviço e
de que "a sua actividade intelectual e puramente orgânico-biológica poderá
dispor do apoio de imensas redes externas de computação ao serviço do
conhecimento, da saúde e controlo do próprio corpo e do domínio geral sobre a
natureza". Instrumentos de uma capacidade superior àquela que até há pouco
se poderia sequer imaginar. O mundo dos cyborgs e das redes de computação
externa "será uma dimensão de realidade diferente, da qual o homem poderá
fazer um uso instrumental, mas que, para responder à pergunta formulada acima,
não será ontologicamente idêntica à ontologia humana e que, por conseguinte,
nunca poderá ser integrada numa unidade ontológica nova que pudesse dar lugar a
uma natureza humana qualitativamente diferente da que conhecemos até
agora". Porquê? Há irredutibilidade entre a ontologia do mundo da
computação e a ontologia do mundo animal-humano. A razão é clara: "tanto
as máquinas humanóides ou cyborgs como as redes de computação externa, por
exemplo, como as concebe Raymond Kurzweil, são sistemas seriais ou
conexionistas (PDP) que funcionam de uma forma mecânica e cega, sem que haja a
mínima semelhança ontológica com os sistemas biológicos associados evolutivamente
à sensibilidade-percepção-consciência, à existência de sujeitos psíquicos
conscientes e à mente animal e humana."
As coisas poderiam mudar?, pergunta.
Responde afirmativamente. E a razão, hoje cientificamente estabelecida, é que
"o mundo da sensibilidade-consciência emergiu das propriedades ontológicas
da matéria. Portanto, se fôssemos capazes de construir uma engenharia
apropriada para aproveitar a capacidade ontológica da matéria para produzir
"sensibilidade", então poderíamos ir construindo máquinas que não
fossem mecânicas e cegas, mas que funcionassem de um modo mais próximo do mundo
biológico. No entanto, hoje as coisas não vão por aí (estamos a falar quase de
ciência-ficção) e só se faz uma engenharia computacional mecânica e cega, como
vemos em Kurzweil, que, além disso, se distancia explicitamente da incipiente
neurologia quântica que, em princípio, poderia ser a única via para construir
máquinas mais próximas da vida real".
4 Até onde iremos nas nossas
capacidades, com as novas tecnologias? E o que é que verdadeiramente queremos?
Como escreve Luc Ferry, "nunca a palavra regulação (ético-política)
designou uma tarefa mais decisiva do que na situação inédita, e sem dúvida
irreversível, que é agora a nossa".
Por decisão pessoal, o autor do texto
não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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