"A lei ao serviço da vida e de tudo o que a qualifica na sua dignidade inviolável. Sem referência à pessoa e ao seu bem maior (o bem comum), a lei corre o risco de ser desajustada e, por vezes, iníqua."
Jesus enfrenta, desde o início da sua
missão pública, a desconfiança fria e distante dos fariseus que o vigiam
atentamente e fazem provocações acusatórias. Marcos escreve o seu texto após a
perseguição de Nero que dizimou muitos cristãos e a comunidade precisava de
alento e confiança. O que havia acontecido a Jesus constituía um apoio
espiritual reconfortante.
O confronto apresentado na leitura de
hoje, Mc 2, 23-28 e 3, 1-6, é o último de uma primeira série que havia
ocorrido: ora com os escribas a respeito do perdão dos pecados ao paralítico,
ora com os publicanos e pecadores por estar sentado com eles à mesa, ora com
discípulos de João e os fariseus por questões ligadas à prática de jejum, ora
com os espias a propósito da observância do Sábado. A partir deste último, os
opositores de Jesus tomam a decisão de o matar e elaboram um plano com este
objectivo.
O confronto com os fariseus-espias
ocorre ao sábado e desenrola-se em dois episódios, sendo o primeiro o das
espigas apanhadas na seara do campo e comidas pelos discípulos porque tinham
fome; e o segundo, o da mão ressequida curada na sinagoga. E a novidade de
Jesus afirma-se cada vez mais: O amor de Deus que não faz acepção de pessoas,
prefere os esquecidos da sociedade e quer que tudo, sobretudo as instituições e
as leis, esteja ao serviço da vida na sua integralidade. Que mensagem oportuna
e interpelante! Que mensagem luminosa e encorajante para todos/as os/as que
lutam por causas nobres e irrenunciáveis! Que mensagem centrada no essencial
para não nos perdermos em pormenores que, sendo importantes como as folhas das
árvores, comportam o risco de esconder o tronco e a seiva que lhes dão suporte
e vida!
“O centro da obra de Deus é o homem,
afirma o comentário da Bíblia Pastoral a este confronto sabático, e prestar
culto a Deus é fazer o bem ao homem. Não se trata de estreitar ou alargar a lei
do sábado, mas de dar um sentido totalmente novo a todas as estruturas e leis
que regem as relações entre os homens. Porque só é bom, aquilo que faz o homem
crescer e ter mais vida. Toda a lei que oprime o homem é lei contra a vontade
de Deus, e deve ser abolida”. Belo e iluminador comentário em que se apoia a
presente reflexão dominical.
A novidade de Jesus apresenta-se em tons
de arco-íris: O valor da consciência informada; a lei ao serviço da vida; o
imperativo de defender o humano de cada pessoa e de todas; a indignação como
reacção à falsidade imposta e à sua indignidade; o saber gerir o tempo com os
seus ritmos: reconhecer Jesus como Senhor. E o arco-íris brilha na harmonia do
conjunto das suas cores. Tratamos destes pontos com um olhar cristão - outros
se podem facilmente destacar. Ainda que brevemente, fazemos algumas considerações.
A consciência é o santuário de Deus em
cada pessoa. A sua dignidade sai reforçada com esta presença amiga e benfazeja,
iluminadora e conselheira. Esquecê-lo é sujeitar-se ao risco da sua dimensão
subjectiva, facilmente influenciável pela disposição anímica ou gosto
espiritual, de circunstância. Recordar esta verdade encorajante é memória
saudável e certeza ética de fidelidade crescente.
A lei ao serviço da vida e de tudo o que
a qualifica na sua dignidade inviolável. Sem referência à pessoa e ao seu bem
maior (o bem comum), a lei corre o risco de ser desajustada e, por vezes,
iníqua. Em qualquer das suas formulações, na área da educação e das
comunicações sociais, no campo político e económico, na esfera religiosa. A
sensibilidade pessoal e a opinião pública estão muito despertas para esta
realidade. E ainda bem! Urge, por isso, a prática de uma atenção lúcida e
crítica ao ambiente cultural e religioso que nos envolve e condiciona. Quem tem
dúvidas sobre este assunto?! De contrário, o humano que há em nós pode ser
desvitalizado, adulterado e “vendido” como a última novidade.
A indignação ética perante a falsidade é
um dos maiores imperativos humanistas e cristãos. Sempre. Mas sobretudo nos
nossos tempos. Jesus dá o exemplo ao sentir-se espiado pelo bem que faz, pela
novidade de que é portador, pelo proceder contra-corrente. Na sinagoga e no
templo. Perante a obstinação dos “iluminados” e duros de coração. Indignação a
todos os níveis, sempre que a mentira se sobrepõe à verdade e adquire livre
circulação. Indignação consequente que promova os valores que são resposta ao
que se denuncia.
Saber gerir o tempo e seus ritmos
diversificados é, sem dúvida, outro grande contributo humanizante. “O
quotidiano é o que nos revela mais intimamente”, afirma Michel de Certeau no
seu ensaio dedicado à antropologia do quotidiano e ao levantamento dos seus
sinais (Tolentino de Mendonça, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas, p. 31).
E este padre poeta e teólogo aconselha-nos a estar sentados à soleira do
instante onde Deus nos pode surpreender e encontrar e lembra que “Jesus
reconfigura o tempo partindo de outro olhar. O tempo da gramática de Jesus é o
momento como oportunidade, ocasião para ser no aqui e no agora, mas em diálogo
inseparável com o tempo de Deus. O instante, este instante não é apenas uma
porção de vida que passa. Temos, por isso, de plasmá-lo como lugar de encontro,
encarando a plenitude não como uma utopia inalcançável, mas como um convite”
pág 53.
O sonho de Deus reveste o dinamismo de
um projecto em realização na história: tem o seu começo quando nos alvores da
criação Deus vê que tudo era bom e belo, com particular relevo para o par
humano, homem e mulher; e assim abre novos horizontes ao tempo: trabalho
oneroso e ócio gratuito e contemplativo, cuidado da terra e dos seus frutos e
alegria de ser dom oferecido à felicidade dos outros, amor de redenção de
limites e falhas/pecados, como em Jesus de Nazaré, o Senhor do Sábado feito
doação até ao fim; esperança de transformação radical que, pela ressurreição,
abre os horizontes da plenitude, da consumação final.
A liturgia de hoje deixa-nos perante um
grande desafio que é apelo: Valorizar e santificar o domingo como o dia do
Senhor”na consciência de que o futuro da fé e da Igreja passa, de modo
particular, pela capacidade dos cristãos viverem o domingo, de santificarem o
tempo”. (Manicardi, p. 105) E, assim, de sermos agentes de humanização da
sociedade e da família, do negócio honesto e útil e do lazer fruitivo, do belo
e da bondade, do instante aberto e do tempo, solar da eternidade.
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