Eu acho que!
Algumas ponderações sobre a famigerada
Reforma do Sector da Defesa e Segurança
Victor Gomes Pereira
22.11.2012
A
história das nossas forças de defesa e de segurança, mais
conhecidas por FARP – Forças Armadas Revolucionárias do
Povo, precederam a fundação do Estado guineense, o que pode,
muitas vezes, levar as pessoas a pensar, que foram elas, as
únicas responsáveis pela fundação do Estado, o que,
naturalmente, não constitui verdade, visto ser o PAIGC e
Amílcar Cabral, os verdadeiros fundadores da nacionalidade
guineense.
A história das FARP forjada na luta de
libertação nacional que conduziu à independência nacional, na realidade,
confunde-se com história do país. Na continuidade do que era a realidade
durante a luta armada, após a proclamação da independência nacional, o país
continuou a ser governado pelo partido único, o PAIGC, que integrava no seu
seio, civis e militares, cujos heróis eram, na sua esmagadora maioria,
constituída por militares.
Amílcar Cabral era das poucas exceções civis
que aparecia no leque dos heróis nacionais. Ademais, durante os quinhentos
anos da colonização portuguesa, o território foi sempre governado, sem
excepção, por militares, daí que a relação da população com a estrutura do
poder tenha sido sempre mantida com militares.
Com efeito, a farda militar ou policial
atravessou toda a história do país, desde a colonização até a independência.
E quando se deu a abertura política e democrática, era imperativa a
separação do poder civil do militar ou paramilitar, mas igualmente
imperativa, também era a reforma do sector da defesa e segurança a fim de
criar umas verdadeiras forças republicanas.
A verdade é que não chegou de haver uma
verdadeira reforma no sector, por motivos essencialmente de conveniência
política. Não convinha ao antigo partido único perder o seu braço armado e
de segurança, a quem foi contínua e abusivamente foi manipulando, antes,
durante e após a abertura democrática, inclusive até os dias de hoje.
A questão do equilíbrio étnico nas forças de
defesa e segurança
A Guiné-Bissau é essencialmente constituída por
um mosaico étnico e cultural, que naturalmente deveria refletir-se na sua
estrutura do poder, em especial nas suas forças de defesa e segurança. Sobre
isso não existem dúvidas. Entretanto, verifica-se a predominância de um
certo grupo étnico nesse sector.
As razões dessa predominância são, entre
outras, o facto de a luta armada de libertação nacional ter decorrido na
zona geográfica da sua predominância, o facto de ser uma das etnias
maioritárias, e a questão de pura vocação. Esse desequilíbrio poderia ser
corrigido num processo normal de recrutamento, que infelizmente tarda em
acontecer. Recorde-se que o último recrutamento data de 1985.
Assim, os originários de outras etnias que
foram recrutados acabaram por abandonar, ou por falta de vocação, não
resistindo às precárias condições de vida nos quartéis, ou por terem
alternativas melhores em outras áreas para as quais estejam mais
vocacionadas.
Não havendo recrutamento oficial, as pessoas
foram sendo arroladas por via informal, seja por aderência a conflitos, como
foi o caso do conflito de 1998, seja pelo regresso aos quartéis dos antigos
desmobilizados, seja ainda pelo fenómeno de um parente com algum ascendente
moral, levar um familiar para a sua unidade militar, qual moço de recados,
que de seguida se transforma em soldado que segue a sua carreira normal.
Mas diga-se que neste último caso, não se trata
de uma exclusividade das forças de defesa e segurança. Os recrutamentos para
o aparelho de Estado têm sido feitos da mesma maneira. Os dirigentes,
sobretudo das instituições que angariam receitas para o erário público,
recrutam familiares, para exercer atividades subalternas, ou como supostos
estagiários, que depois se tornam efetivos funcionários públicos.
Essa forma de angariação agravou o
desequilíbrio, porque se outras etnias acusam a falta de vocação, não
resistindo às adversidades dos quartéis, os recrutamentos informais são
feitos por aqueles que ficaram nos quartéis junto do seu meio familiar ou
étnico.
O clientelismo e o nepotismo generalizados no
aparelho de Estado potenciaram o crescimento do desequilíbrio étnico. Tanto
assim é, que nas estruturas civis do aparelho de Estado, onde uma pessoa de
determinada etnia tenha durado muito tempo, a tendência é para o pessoal
dessa instituição ser maioritariamente da sua afinidade étnica ou religiosa,
porque enquanto esteve no lugar foi arrebanhando informalmente junto da sua
família, etnia ou religião.
Portanto, quando não há recrutamentos oficiais,
que se baseariam em critérios objetivos de mérito e de competência, a
tendência é para que outros critérios subjetivos prevaleçam.
Necessidade de correção do desequilíbrio
étnico nas forças de defesa e segurança
A correção do desequilíbrio étnico é uma
necessidade que todos reconhecem, e a reforma do Estado, e em particular do
sector da defesa e segurança deverá lograr esse objetivo. Entretanto, a
procura do equilíbrio nesse sector deve ser pragmática, realista e justa,
não escamoteando uma realidade histórica bem documentada, não pondo em causa
a capacidade operativa das nossas forças, e não interrompendo a carreira de
gente inocente para fazer estatística.
O sector de defesa e segurança nunca foi um bom
sítio para fazer carreira. As casernas nunca foram um bom sítio para viver.
Aqueles que foram capazes de resistir, ou que não tiveram outras
alternativas na vida, não por falta de capacidades, mas por força do
clientelismo e do nepotismo, não podem hoje tornar-se mais uma vez vítimas
da situação que outros criaram. Houve altura em que ser recrutado ou
permanecer nas fileiras das forças armadas era uma espécie de castigo para a
maioria dos que lá estavam.
Muita gente utilizou influências para evitar o
cumprimento do serviço militar obrigatório, ou para obter a isenção, a fim
de pode continuar estudos no estrangeiro ou trabalhar na administração civil
e fazer carreiras mais promissoras. Hoje, muitos dos que falam do
desequilíbrio no sector da defesa e segurança, para furtar-se ao serviço
militar, já utilizaram ou foram coniventes com expedientes a que só gente
bem colocada na estrutura do poder consegue aceder.
É por tudo isso que a reforma das forças de
defesa e segurança deve ser encarada como um processo longo, dispendioso, e
até penoso, cujo resultado final pretendido não dependa apenas de um
ajuntamento aritmético de pessoas para fazer inventário, mas também de
emoções e sentimentos, e de identificação de pessoas com certas profissões
ou carreiras.
Em algumas etnias da Guiné-Bissau encontram-se
poucos candidatos a carreira militar, por mais promissora que aparentemente
seja, porque não é tradição dessa etnia o ramo militar. Entretanto, se for
para o comércio, por exemplo, os oriundos dessas etnias serão os primeiros a
aparecer e conseguem prosperar por causa da sua vocação. Cada sector de
atividade é dominada por uma certa etnia, mas nem por isso constituiu um
alarme social.
Ninguém se indigna e nem deve indignar-se que
uma só etnia domine estrondosamente o comércio. Mas se porventura alguma
reforma tiver que ser feita para garantir o equilíbrio étnico nesse sector,
naturalmente que os que lá estão não devem ser vistos como os maus da fita e
responsabilizados pela situação, porque não impediram os outros de entrarem
para o sector.
Só não entraram por uma questão de falta de
vocação ou existência de outras alternativas. Refira-se ainda que há uma
etnia essencialmente emigrante, razão porque os oriundos dessa etnia
preferirão emigrar-se a ter fazer a carreira nas forças armadas. O mesmo se
diz da etnia que domina o sector de serviços, nomeadamente a advocacia,
cujos oriundos preferirão fazer carreiras nessas áreas a filiar-se nas
forças armadas.
Portanto, os que pretendem apoiar a reforma no
sector da defesa e segurança devem partir dessa premissa, talvez uma das
razões do insucesso de tentativas de reforma no sector tenha sido a falta do
realismo, o preconceito e também, em alguns casos, o desconhecimento da
realidade histórica das nossas forças armadas.
Muito Obrigado
Até daqui a quinze dias
Bissau, 22 de Novembro de 2012
Victor Pereira
Jornalista
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.