segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Conto: Domingo

O Domingo estava desnorteado, às mãos do vento, cinzento, choroso.

Da janela acenei para o fazer desistir de tanta nebulosidade e quase nem sorriu.

Sentindo-o sem o ver, nem sabia se estava de frente ou de costas para saber se ia ou vinha, quem sabe, de um nojo ou mau resultado do jogo que viu. Não fiz caso, porque é o dia dos sete que em blocos semanais nos vão consumindo sem pago, que se oferece de borla para nele se fazer lazer, prazer, livrar e passear de modo privado.

Da porta a ele, passei sem dizer bom dia Sr. Domingo. Sem acelerar, porque nada tinha com horários, andei por rectas e curvas até chegar à estação de trem.

Encontrei junto à bilheteira uma família da nossa terra GOSTOSA-BONITA, desplantada do leste Sara, com dois rebentos descidos num hospital lisboeta, confortável e elegantemente trajados, a caminho de um rapa na linha de Sintra.

Com a cara bem centrada no redondo orifício da bilheteira, qual Mia Couto, num português temperado com citi de kiriol guineense e flocos de kanha de Gabú, negociava bilhetes para si, esposa e duas filhas bem alfacinhas.

A mãe, com uma malinha de rufo colorido, tida a tiracolo, acompanhava discretamente o combate do marido para se fazer entender no acto de venda e compra de passagens a uma das estações ou apeadeiros do destino, como também vigiava as divertidas filhotas, que só em português diziam e se entendiam.

Entre mim e o pai de família, não havia ninguém na bicha, pelo que, logo que se despachou me despachei e, quase que integrado ao grupo familiar, cumprimos as formalidades de validação dos bilhetes e subimos para a plataforma, onde em linhas paralelas se cruzavam as composições com cabeças fortemente motorizadas e barulhentas.

Maternalmente prudente, a mãe, num fula firme, mas doce, antes de nos dirigirmos às entranhas do comboio, dirigiu-se às filhas que, tal como o trem que fazia paragem, pararam de brincar com palavras em português e se aprumaram para tomar lugar na carruagem. Não entendi o que ela disse, mas compreendi que as crianças compreenderam o que na língua materna dos pais lhes foi dito. Entramos assim num segundo espaço de uso instrumental da língua por uma mesma família, de múltipla idiossincrasia.

Sentado ao lado do marido, meti conversa com o casal, em crioulo nosso, sob a observação e compreensão das lindas filhas e tivemos um djumbai salteado até os deixar na carruagem. A tomar café junto à nova estação, senti festa por ter tido uma viagem percebida em várias línguas fraternas, cúmplices e alegremente complementares.

Djarama bui, minha família de tchon di Gabú Sara.


Mantenhas

Por Ernesto Dabo

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