A comunidade científica está espantada com os
resultados de um tratamento aplicado em dois doentes com Ébola e dois
especialistas ajudam a entender o que se passa. E uma vacina pode estar a
caminho.
Dois missionários norte-americanos
terão sido salvos de uma infeção grave pelo vírus Ébola com um “tratamento
miraculoso”. Esta “arma secreta” nunca tinha sido aplicada em seres humanos,
mas a FDA terá aberto uma
exceção ao abrigo de uma norma que autoriza a utilização de medicamentos não
testados.
A CNN relata a história da seguinte forma: Kent Brantly
e Nancy Writebol prestavam auxílio aos doentes infetados,
quando há duas semanas se sentiram doentes. Foi confirmada em ambos a infeção
pelo Ébola e o seu estado de saúde piorou muito depressa, tendo estado em risco
a vida. Consciente da emergência da situação, a empresa Mapp
Biopharmaceutical disponibilizou um novo medicamento chamado ZMapp,
que nunca tinha sido testado em seres humanos mas cujos resultados obtidos em
macacos foram promissores (dos oito animais testados, seis sobreviveram à
infeção).
Este “elixir miraculoso” explica-se
da seguinte forma: o sistema imunitário de cobaias expostas a um vírus
desenvolve anticorpos específicos contra ele. Os glóbulos brancos que os
produzem (linfócitos) são isolados em laboratório e multiplicados por processos
de cultura celular. Neste caso, foram separadas três linhas celulares (clones
ou “famílias” de células) que produziram anticorpos específicos muito eficazes
contra o Ébola. Estes anticorpos, reunidos numa solução, serão a base deste
“super medicamento”. A novidade anunciada pela Mapp Biopharmaceutical Inc. é a
capacidade de produzir estes anticorpos em plantas de tabaco, o que acelera
substancialmente o processo de produção (as culturas celulares são “lentas”,
por comparação).
Outro aspeto notável na notícia foi a
urgência da aplicação (porque não foi sujeito aos testes de segurança
obrigatórios) e a recuperação “miraculosa” dos missionários. As doses deste
medicamento (ZMapp) foram enviadas para a Libéria, na esperança de restaurar as
condições mínimas de saúde dos missionários para permitir o seu transporte para
os Estados Unidos da América. O extraordinário foi que, em particular no caso
de Kent Brantly, a recuperação surpreendeu todos. O médico esteve em risco
de vida, mas no dia seguinte à administração do ZMapp conseguiu andar pelo
próprio pé e até tomar banho. A recuperação de Nancy Writebol não foi tão
espetacular, mas foi a suficiente para permitir o seu transporte para os
EUA. Os riscos existem e, como é a primeira vez que se utiliza esta solução em
humanos, ainda há muito que pode correr mal. Mas os primeiros resultados são
muito animadores.
Jorge Atouguia, médico especializado
em doenças tropicais, é perentório em afirmar que não estamos a falar de uma
“cura” em sentido absoluto, mas sim de um tratamento “interessante e
promissor”. Explicou-nos que o que aconteceu foi um processo de imunização, um
princípio terapêutico usado no tratamento, por exemplo, da Raiva. Quando uma
pessoa não vacinada é mordida por um animal infetado, é-lhe administrada
imunoglobulina (anticorpo) específica contra o vírus com o objetivo de diminuir
rapidamente a quantidade em circulação e deste modo “dar tempo” ao organismo
para desenvolver a sua própria resposta imunitária. Essa sim, deverá será capaz
de eliminar a doença.
“Apenas uma vacina será capaz de
curar a doença” e por isso o caso do Ébola foi um tratamento feliz e “uma
notícia positiva”, mas ainda é cedo para falar num processo cientificamente
sustentado de cura. Além disso, para Jorge Atouguia “a vacina contra o Ébola
não é uma prioridade para o sistema de saúde global” — porque é uma doença
ainda muito circunscrita e porque não representa um problema real para os
países do hemisfério norte.
O Observador falou também com Paulo
Paixão, presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia, que disse concordar
que este tratamento é promissor mas que “ainda é cedo para falar em cura”;
estes anticorpos (ZMapp) são “um tratamento e uma pista interessantes”, mas é
precisa muito mais investigação. “Dois casos [os dois missionários] são muito
pouco para uma análise científica concreta” e que “os cientistas estarão
atentos mas muito cautelosos”, porque a informação é escassa e “já não é a
primeira vez que acontece”. Paulo Paixão e Jorge Atouguia fizeram referência ao
caso da epidemia do vírus do Marburgo em Angola (a última ocorreu em 2005),
onde as notícias de tratamentos e possíveis curas circularam depressa mas
acabaram por se revelar infundadas. Paulo Paixão também duvida do interesse da
indústria farmacêutica no desenvolvimento de uma vacina contra o Ébola, porque
apesar da taxa de mortalidade ser muito alta “os números globais de mortes são
baixos quando comparados com outras doenças” (como a Malária, por exemplo).
Entretanto, o imunologista Anthony Fauci declarou à BBC que está
a desenvolver uma vacina que apresentou resultados promissores em animais e
espera iniciar já em setembro os primeiros testes em seres humanos, que
deverão decorrer até janeiro de 2015. Se esta primeira fase correr bem, o
especialista norte-americano afirma que deverá ser possível começar a produzir
a vacina até ao final do próximo ano, com as primeiras doses a ser
administradas aos profissionais de saúde que prestam cuidados diretos nas áreas
afetadas.
Perante a ausência de tratamento ou
cura da infeção pelo Ébola, pela sua elevadíssima taxa de mortalidade e pelo
receio da expansão mundial da epidemia, aumenta a pressão para o
desenvolvimento de um tratamento ou medicação preventiva eficaz. Esta droga
surpreendeu pela sua existência e por se revelar tão eficaz. Resta saber quanto
tempo vai demorar a constituir-se um tratamento de rotina capaz de travar a
epidemia e salvar a vida aos milhares de pessoas já infetadas na África
subsariana.
//Observador
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