Somos um país plural, forjado na diversidade étnica. A nossa invencibilidade reside na força da nossa união.Unidos somos fortes, como um time de futebol. E divididos somos fracos, como uma casa cheia de fortuna em discórdia.Nesta luta contra a pobreza e subdesenvolvimento é proveitosa a destreza de cada um de nós, por mais pequena que seja. Não devem haver parentes pobres porque todos somos úteis, independentemente das nossas proveniências sociais, das latitudes geográficas donde viemos, do grupo etnico a que pertencemos, da fé que professamos e da religião que seguimos. Tão pouco as ovelhas negras nesta pluralidade, porque elas são a porta da vulnerabilidade à qualquer união fragmentada. – General, Jurista, Dr. Daba Naualna
Por, Major Reinaldo Saraiva Hermenegildo,
na REVISTAMILITAR
1.
Introdução
“Jamais alguém viu o Estado (…) o Estado é
uma ideia.” 1
Em função da complexidade e da dimensão do
assunto tratado, seria intelectualmente desonesto, e cientificamente impreciso
tentar abordar os conceitos de Estado e Soberania na sua totalidade, por isso,
apenas farei uma abordagem no que concerne a alguns aspectos dos conceitos de
Estado e Soberania, porque também, «mas nem sempre se deve esgotar
completamente um assunto, a ponto de nada se deixar a cargo do leitor. Não se
trata de fazer ler, mas de fazer pensar.»2
Os conceitos de Estado e Soberania, são
temas de uma abrangência e uma latitude ampla, não cabendo no cômputo deste
trabalho um estudo aprofundado do tema. Para além de as interpenetrações dos
temas tratados dificultarem a instauração e definição de fronteiras entre os
mesmos, porque eles não se dividem nem se separam, mas complementam-se e
interpenetram-se mutuamente.
No presente trabalho abordarei as seguintes
questões: uma pequena introdução ao tema do Estado e da Soberania (1), os
conceitos de Estado e Soberania: Que paradigma? (2), o Estado moderno - da
centralização pura à descentralização aparente (3), o Estado unitário: entre o
normativo e o político (4), a Crise do Estado-soberano? (5), o caso particular
da União Europeia (5.1) e uma breve conclusão (6).
O paradigma do actual Estado não é
certamente o mesmo desde a sua criação, passando pelos vários períodos
históricos até aos dias de hoje. Aristóteles entendia por exemplo o Estado como
uma “sociedade perfeita, politicamente organizada”, conceito que hoje
dificilmente se poderia adoptar. Facilmente compreendemos nos dias de hoje, a
desactualização da afirmação de Aristóteles na sua essência, já que a sociedade
não é perfeita, e não é politicamente organizada3. Porém podemos afirmar que o
Estado é político, mas nem todo o político poderá ser estatal. Para uns o
«Estado e sociedade política identificam-se e aquele é tomado como fenómeno
humano permanente e universal. Para outros, o Estado é uma espécie de sociedade
política» 4, ou ainda, «um conjunto de órgãos que numa sociedade aparecem a
exercer o poder político», ou como «uma instituição social equipada e destinada
a manter a organização política de um povo interna e externamente.»5
Para Jean Baudouin, «o Estado não é nem o
produto obrigatório de uma necessidade histórica, nem o resultado de uma
estratégia premeditada. Emerge de uma multidão de projectos e de escolhas que,
encaixados uns nos outros, acabaram por dar origem a “configurações” largamente
inéditas» 6. O Estado moderno tal como hoje se conhece e que aqui analisamos é
para Adriano Moreira «criação do Renascimento, é todavia o herdeiro de um
fenómeno que acompanhou sempre a sedentarização dos grupos sociais» 7.
Nos dias de hoje em que o mundo
encontra-se em constante mutação, e na qual o sistema internacional é cada mais
complexo, torna-se urgente estudar e compreender o Estado sobre várias ópticas,
porque o «Estado tem tanto de peculiar que tudo aconselha a separar o seu
tratamento do estudo de outras figuras, embora afins» 8. Para António José
Fernandes, «o Estado é efectivamente uma instituição complexa; é como Maurice
Hauriou o considerou, «a instituição das instituições» (1929), na medida em
que é a instituição suprema ou final, pois nenhuma outra tem um poder de
integração superior ou mesmo igual ao seu. Não há na sociedade, para além do
Estado, instituições agregativas. O Estado engloba o conjunto das suas
instituições, sem que nenhuma delas o inclua» 9. No entanto, actualmente este
paradigma não se pode aplicar uma vez que existem organizações para além do
Estado, constituídas também por Estados, que englobam o próprio Estado, sendo o
caso mais paradigmático a União Europeia.
A complexidade e a importância do
conceito, levou os mais variados autores das mais diferenciadas áreas, a
pronunciar-se sobre o conceito de Estado, dentro destes destaca-se Georg
Jellinek (1851-1911), tendo como ponto de partida uma análise sociológica, afirmou
que «em toda a parte onde haja uma comunidade de homens unificados pelos
escopos comuns a que tendem constantemente, em toda a parte onde a realização
desses escopos é tida como sua por alguns, que impõem a vontade aos outros, e
obtém, graças aos seus comandos, que a comunidade efectivamente se mova, como
um todo, no sentido desejado, em toda a parte, principalmente, onde tudo isto
se passa entre homens estavelmente estabelecidos num determinado território,
temos Estado.»10
Convém esclarecer alguns aspectos quanto
ao conceito de Estado. Porque, ou o conceito de Estado não se pode aplicar nos
mesmos moldes com que foi criado, ou então estamos perante uma evolução do
conceito, que se torna necessário adaptar ou redefinir. Saber se os conceitos
já estão desactualizados, na sua essência, ou se os mesmos tem de ser
interpretados e compreendidos de forma diferente, adaptando-os à actual
conjuntura internacional, e dando-lhe uma nova “faceta”. Porque as premissas
que estiveram na génese dos conceitos evoluíram e estes também evoluíram,
contudo, se ainda se questiona essa evolução, poderá eventualmente ser devido
ao facto de se tratar de matérias muito sensíveis, em que os Estados não querem
abdicar, e porque estão igualmente ligados ao conceito de poder11, fazendo
parte de uma mesma realidade, a trigonometria: Estado - Soberania - Poder.
Falar de Estado implica impreterivelmente
falar de Soberania, e na interacção destes dois conceitos. No sentido em que «a
moderna ideia Estado tem o seu expoente na ideia de soberania.»12 Apesar de nem
todos os Estados serem soberanos, já que «para que um Estado seja soberano -
nota Roland Mane (1976) - o poder de querer e o poder de comandar não podem
estar subordinados a nenhum outro» 13. Para Adriano Moreira, é no Renascimento
que se estrutura o Ocidente dos Estados: cada um destes é uma entidade dotada
de um poder que não reconhece igual na ordem interna nem superior na ordem
externa, poder chamado soberania14. Francisco Suárez15 (1548-1617), quando
escreveu o seu Tratado “De Legibus ac Deo Ligislatore” (1612), refere que um
poder é soberano “quando não há outro que lhe seja superior, pois esta palavra
significa a negação de um poder superior ao qual devesse obedecer quem o
detém”. «Este é, pois, o sentido lato da palavra soberania. Em sentido
restrito, o termo aparece para indicar em toda a sua plenitude, o poder do
Estado moderno, que, mediante sua lógica absolutista interna, suplantou a
antiga ordem medieval, cuja natureza e dinâmica assentavam-se nas duas
vertentes universalistas do poder medieval, a Igreja e o Império.»16
O facto de existirem vários Estados
pertencentes a múltiplas Organizações Internacionais17 de natureza
diferenciada, quer de cariz económica quer militar, limita e impede até a acção
dos Estados, deixando de ter o poder de querer e comandar, tal como o tiveram
no passado. A pertença a organizações, por exemplo, como a União Europeia e a
Organização do Tratado Atlântico Norte. O emergir no sistema internacional18 de
algumas «das Nações Unidas e outras organizações internacionais e
supranacionais, acentuaram os aspectos limitativos da soberania, vista hoje
como subordinada à ordem jurídica internacional. Portanto, entre os corolários
principais da soberania estão o dever de não ingerência na área de jurisdição
exclusiva dos outros Estados e sua subordinação ao Direito Internacional (…)
“Estado Soberano deve ser entendido como sendo aquele que se encontra
subordinado directa e imediatamente à ordem jurídica internacional”.»19
Presentemente assistimos, no que concerne
aos vários tipos de soberanias, a «transferências de competências soberanas
para modelos de soberanias cooperativas, participadas, ou até hierarquizadas, é
de regra inevitável sem modelo final padronizado» 20.
Não cabendo no cômputo deste trabalho uma
discussão aprofundada dos conceitos de Estado e de Soberania, nem tão pouco uma
descrição histórica pormenorizada (da evolução) dos mesmos. Apenas se parte de
algumas definições, para posteriormente, iniciar uma breve análise dos mesmos.
2. Conceitos
de Estado e Soberania: Que paradigma?
O conceito de Estado21 e de Soberania22
tal como hoje os conhecemos surgiu no séc. XVI, principalmente com Bodin23.
Para Bodin o conceito de «soberania integra as características do poder
absoluto com uma unidade que se sobrepõe à complexa rede se suseranias e de
homenagens, de laços hierárquicos pessoais, ao parcelamento da autoridade, à
confusão entre poderes públicos e privados existentes no feudalismo» 24. O
poder soberano era entendido como estando acima de tudo, num plano superior.
Bodin entendia que soberania como
sendo,aquele poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado. Ela é a força
de coesão, o instrumento político imprescindível à República. Portanto, a
soberania, na visão do seu principal formulador, é um poder absoluto,
auto-suficiente, isto é, não se sujeita, de forma alguma, a outro poder (summa
potestas superiorem non recognoscens). A soberania, conforme Bodin, seria ainda
perpétua, transcendente, pois é exercida para sempre; indivisível, na medida em
que na sua essência é una, isto é, o soberano é a única autoridade com poderes
para promulgar a lei para todos, ordenar ou proibir o que quiser, não responde
perante qualquer outro poder sobre a terra. Não há hipótese de soberania delegada,
pois, se vier a ser, estará integralmente em cada delegação. O poder de fazer a
guerra, celebrar a paz e, principalmente fazer ou revogar a lei, é exclusivo
do soberano, pois esta qualidade só a tem quem não está ligado por vínculo
algum de sujeição pessoal a quem quer que seja25.
Como facilmente já se percebeu os
princípios invocados por Bodin quanto ao conceito de soberania, perderam na sua
essência o verdadeiro sentido clássico26. Com a integração na EU, estes
princípios desactualizaram-se, já que a EU também por exemplo, promulga leis,
algumas (regulamentos) com aplicação directa e imediata nos seus Estados
membros.
O Estado moderno de tipo europeu27,
nascido depois da guerra dos trintas anos (1618-1648), que veio a dar origem ao
Tratado de Vestefália (1648), tem especificidades próprias: Estado Nacional,
Secularização ou laicidade, soberania. Aqui o conceito soberania compreendido
como «poder supremo e aparentemente ilimitado dando ao Estado capacidade não só
para vencer as resistências internas à sua acção como para afirmar a sua
independência em relação aos outros Estados» 28. Na mesma linha de pensamento,
António José Fernandes, «os Estados soberanos caracterizam-se por desfrutarem
de um poder supremo (sem igual) na ordem interna e de um poder independente
(sem superior) na ordem externa» 29. Contudo, o conceito de soberania «implica
ainda imediatividade ou ligação directa entre o Estado e o indivíduo, ao
contrário do que sucedia no sistema feudal» 30.
Porém, quem pela primeira vez falou do
conceito de Estado em termos científicos foi Maquiavel «Todos os Estados, todos
os domínios que tiverem e têm império sobre os homens são Estados e são ou
repúblicas ou principados» 31.
António C. Alves Pereira salienta que «com
a formação dos grandes Estados nacionais no século XVI desenvolveu-se o moderno
conceito de soberania, para expressar a extensão do poder estatal em toda a sua
plenitude. A partir do fim das guerras religiosas organizou-se a nova sociedade
internacional com base no Direito Internacional resultante dos Acordos de
Vestefália (1648), compreendendo, desde então, um sistema interestatal centrado
na teoria da igualdade soberana dos Estados. O conceito de soberania configura
uma categoria histórica, portanto, variável no tempo e no espaço.»32
Com os Estados modernos vieram-se a
consagrar os conceitos de soberania ilimitada, apesar de o conceito de
soberania em Bodin não consagrar a existência de um poder soberano ilimitado.
Tendo em vista cessar com alguns dos paradoxos à volta do conceito Charles
Rosseau, defende a sua substituição pelo conceito de Independência. Para
Rosseau, «a soberania é o poder absoluto e incontornável do Estado de agir
(tanto nas questões internas como externas)». No entanto, algumas teorias
contemporâneas não aceitam o termo de soberania absoluta, e preferem em função
da actual conjuntura internacional, «o princípio da soberania como poder
limitado pelo direito». Ainda para Rosseau, «o Estado não dispõe de um poder
ilimitado e incontornável, a noção de soberania não serve para critério do
Estado. Por isso propõe o conceito independência - que, habitualmente, se
identifica com o conceito de soberania externa.»33
O exercício pleno dos poderes soberanos
por parte de um Estado, são logo limitados desde o início, uma vez que para um
Estado ser aceite na ordem internacional tem de ser reconhecido pelos outros
Estados, «a importância do facto resulta de que um Estado apenas adquire a
personalidade internacional e pode exercer as inerentes prerrogativas se tiver
sido reconhecido pelos outros Estados; cada Estado é livre de reconhecer ou não
reconhecer um Estado que aparece» 34. O que se compreende facilmente que o
Estado está desde o inicio por outros Estados, já que uns podem reconhecer e
outros.
Independentemente de um Estado ser
reconhecido ou não, um facto é indubitavelmente impossível de fugir dele, o da
ingerência na ordem jurídica interna do Estado que espera ser reconhecido, por
aqueles Estados que têm o ónus de o reconhecer. Após esse reconhecimento, «o
Estado assume a totalidade das prerrogativas que a comunidade internacional lhe
atribui, a maior parte delas consagrada no direito internacional» 35, mas só
depois de os outros Estados o reconhecerem e aceitarem, o que só esse facto
implica um limitação, e cumulativamente uma ingerência na soberania dos
Estados. Para além de que mesmo quando assume todas as prerrogativas, estas são
sempre limitadas, em função do poder dos Estados36.
Numa das suas obras Adriano Moreira refere
que «o conceito de soberania é o elemento organizador, ao mesmo tempo
ideológico e estrutural. Trata-se do “poder absoluto perpétuo de uma República”
(Bodin), esta última palavra significando Estado. O seu corolário é a
independência de cada um em face de todos, e portanto a igualdade jurídica. A
evolução do modelo para Estado nacional» 37. Ainda relativamente a Jean Bodin,
foi ele que teorizou «esta ideia de Estado ou República», para que «o “poder
soberano” é (para Bodin) indissociável da ideia de Estado, afirmando que aquele
é a coluna dorsal deste, e que uma República sem soberania «qui unist tous les
membres et parties d’icelle et tous les mesnages et collèges en corps» deixa de
o ser38 (…) o poder soberano, constitui, segundo Bodin, a força de união e de
coesão da comunidade política que cristaliza as indesejáveis mudanças de
comando e de obediência, perigosas para a sobrevivência de qualquer agrupamento
social. Esse poder deve pois ser também perpétuo, para estar constantemente
presente no espírito dos componentes do Estado, onde se incluem os órgãos
individuais e colegiais eleitos por tempo determinado; os detentores do poder
soberano, devem suceder-se nos tronos, hereditariamente sem interrupção.»39
Para Bonald, «a família, a igreja e o
Estado constituem as estruturas fundamentais do poder soberano. A soberania do
Estado é concedida por Deus ao monarca secundado pela nobreza para governar os
seus súbditos, cujo dever principal é a obediência.»40
Nos dias de hoje, o seu corolário está no
mínimo fragilizado, em função do actual processo de globalização41 em curso, um
Estado muito dificilmente, é independente, dadas as constantes, mas também
necessárias, mutações do sistema internacional42. Acrescido da volatilidade e
da incerteza do sistema internacional, os Estados são cada vez menos
independentes, e cada vez mais interdependentes, quer em relação a outros
Estados quer em relação a outras Organizações Internacionais.
Como já referi anteriormente, quem pela
primeira vez falou do conceito de Estado em termos científicos foi Maquiavel
«Todos os Estados, todos os domínios que tiverem e têm império sobre os homens
são Estados e são ou repúblicas ou principados» 43. Na mesma linha de
pensamento António Ribeiro dos Santos assinala que «Nicolau Maquiavel (Niccolò
Machiavelli) (1469-1527) avança com a própria palavra Estado com um sentido
laico, de autonomia política, que o desliga do direito natural, uma vez que os
valores eternos e imutáveis são substituídos pela “razão de Estado”, que
justifica os meios usados príncipes para atingirem os seus objectivos» 44. O
conceito de Estado está em parte ocidentalizado, e segundo Max Weber «o
desenvolvimento do Estado se confunde durante vários séculos com a história
geral do ocidente» 45. Não se pode contudo, esquecer alguns contributos
importantes para a formação do Estado como «a desmilitarização progressiva dos
senhorios mais poderosos é a condição indispensável para a formação do Estado»
46.
Os conceitos de Estado e Nação são
indissociáveis na medida em que «o Estado afirma-se assim como uma instituição
política legitimada pela Nação, detentora da soberania que é recusada aos
monarcas, os quais, desde a remota Antiguidade Oriental procuram justificá-la,
identificando-a com a expressão da vontade dos deuses, que presidem aos
destinos dos mortais» 47. Sem, no entanto, esquecer que se foi o Estado que deu
origem à nação, ou inverso, não cabe no cômputo deste trabalho, contudo parece
que «foi o Estado que forjou a Nação, como notou Lord Acton, sendo menos comum
que a Nação tivesse dado origem ao Estado» 48.
O conceito de Estado apresentado por
Marcello Caetano49, na qual mais tarde Freitas do Amaral vai pegar, «o Estado é
a comunidade constituída por um povo que, a fim de realizar os seus ideais de
segurança, justiça e bem-estar, se assenhoreia de um território e nele
institui, por autoridade própria, o poder de dirigir os destinos nacionais e de
impor as normas necessárias à vida colectiva.»50. Aqui estão presentes os três
elementos do Estado, o povo, o território e o poder político. Entendimento
idêntico tem António Ribeiro dos Santos, «o Estado, entidade territorial, tem
três elementos fundamentais: o espaço (raum), ou seja, a área total com as suas
características físicas, como o clima, a orografia, a hidrografia, a fauna e
flora, a sua situação, ou posição, que pode ser marítima, continental ou
insular, (lage) e a fronteira (grenze).»51
A definição avançada por Marcello Caetano,
é um seguimento da definição de Jellinek, segundo o qual «o Estado é a unidade
de associação dotada originalmente de um poder de dominação, e formada por
homens instalados num território» 52. Quanto à definição de Estado Max Weber,
«considerando não ser possível definir o Estado com referência ao fim da sua
acção de associação política, uma vez que tem tido intervenções em todas as
actividades, Weber diz que, “por isso, o carácter ‘político’ de uma associação
só pode ser definido por aquele meio - às vezes elevado ao fim em si - que não
é sua propriedade exclusiva, porém constitui um elemento específico e
indispensável de seu carácter: a coação física”53.»54
Para Max Weber, embora o Estado detenha “o
monopólio da força legítima”, implica também não só a força mas também a sua
legitimação, que vai desde a forma de designação dos seus órgãos até à
resolução mínima dos problemas que lhe são socialmente colocados. O Estado é um
aparelho que exerce o poder e a autoridade55. Ainda Max Weber, quando se refere
ao Estado «considera-o uma associação de dominação política, “quando e na
medida, em que sua subsistência e a vigência de suas ordens, dentro de
determinado território geográfico, estejam garantidas de modo contínuo mediante
ameaça e a aplicação de coação física por parte do quadro administrativo. Uma
empresa com carácter de instituição política denominamos Estado, quando e na
medida em que seu quadro administrativo reivindica com êxito o monopólio legítimo
da coação física para realizar as ordens vigentes.”» 56
Não tendo este trabalho como objectivo
realizar uma classificação taxionómica dos vários tipos de Estado57, contudo, é
fundamental perceber do porquê do aparecimento do Estado58:
a) Necessidade, em toda a sociedade
humana, de um mínimo de organização política;
b) Necessidade de situar, no tempo e no
espaço, o Estado entre organizações políticas historicamente conhecidas;
c) Constantes transformações das
organizações políticas em geral e das formas ou tipos de Estado em particular;
d) Conexão entre heterogeneidade e
complexidade da sociedade e crescente diferenciação política;
e) Possibilidade de, em qualquer sociedade
humana, emergir o Estado, desde que verificados certos pressupostos;
f) Correspondência entre formas de
organização política, formas de civilização e formas jurídicas;
g) Tradução no âmbito das ideias de
Direito e das normas jurídicas do processo de formação de cada Estado em
concreto 59.
Como se verificará mais adiante, os
princípios supracitados pelo professor Jorge Miranda que estiveram na origem do
Estado, estão na actualidade desactualizados, pelo que facilmente se compreende
o porque da crise do Estado. Já que se os princípios que permitiram a criação
do Estado implodiram, este (Estado) tende, também, a deixar de se manter como
dantes, no seu estado puro.
Estes tópicos para além de serem
importantes para perceber o aparecimento do Estado, serão bastante úteis para
analisar mais à frente, o porque da actual crise do Estado, e/ou a eventual
desactualização do conceito de Estado na sua essência.
Jorge Miranda, enuncia algumas
características que são profícuas trazer à colação, no âmbito deste trabalho,
para as compreender enquanto características próprias do Estado, mas sobretudo
para perceber posteriormente uma putativa evolução ou desactualização do conceito
de Estado. Sendo assim, são características gerais do Estado a «complexidade de
organização e actuação, da institucionalização, da coercibilidade e da
autonomização do poder político, bem como, em plano algo diferente, da
sedentarização.»60
O mesmo autor refere ainda que «os Estados
em concreto adquirem valor jurídico e simbólico, enquanto exprimem momentos
históricos determinados ou determinadas feições de individualizar os Estados, a
sua forma ou o sistema político, uns em relação aos outros» 61. Os Estados
assumem-se assim, como sendo a «forma histórica do momento» 62.
O território, a população e o aparelho
político63 constituem os três elementos do Estado, para António José Fernandes
em virtude disso, o Estado será então «a organização política de uma sociedade
dispondo de órgãos próprios que exercem o poder sobre um determinado
território».64
3.
O Estado moderno - da centralização pura à descentralização aparente
A centralização/descentralização65, no
actual Estado moderno, é um subtema que considero importante e complementar
para o presente estudo, em virtude deste (subtema) ajudar a compreender o tipo
de Estado e de Soberania.
No que toca à formação e origem dos
Estados modernos centralizados, Ribeiro dos Santos afirma que «os monarcas aceitam
este emancipação das cidades, que oscila entre a pressão, o pagamento de
elevadas quantias às autoridades senhoriais e acção armada, para arrancar
cartas de franquia aos senhores feudais, uma vez que esta situação vai
enfraquecendo a ordem senhorial, propiciando a formação dos Estados modernos, centralizados»
66. (Negrito meu)
Na mesma linha de pensamento Carlos E.
Pacheco Amaral refere que «a desconcentração e o autogoverno surgem como
instrumento de centralizarão e de construção do próprio Estado moderno,
unitário e centralizado, por natureza» 67, e seguindo as palavras de Bernard d’
Orgeval em que a descentralização «é uma manifestação do centralismo» 68. A
descentralização «constituindo técnicas de instauração, aperfeiçoamento e
garantia da centralização política característica do Estado moderno» 69,
permite ao Estado assegurar o poder, através de uma descentralização aparente.
O poder do Estado tanto pode ser limitado
de fora para dentro, ou seja, do exterior para o interior do Estado, como
também, pode ser limitado internamente, por outras entidades nacionais70. «O
Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal,
assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder
político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução
ao mínimo das suas funções perante a sociedade)» 71. O facto de o Estado
dividir/delegar uma panóplia de competências, é apenas mais uma forma de o
Estado concentrar sobre si mais poder72.
Para Luís de Sá, «a abordagem do Estado
ganha em conjugar a perspectiva jurídica - o Estado é normativamente regulado e
produz normas - com a perspectiva sociológica - o Estado é um facto social e
que está no centro de factos sociais, e de uma categoria especial deles, que é
constituída pelos factos políticos. Na medida em que o Estado invoca valores,
justifica-se com base neles e implica a discussão de valores» 73.
O facto de por lei o Estado estar
subordinado ao direito, não implica que este o cumpra, ou então, quando não lhe
interessa ter determinadas normas (jurídicas), muda-as adaptando-as ao seu
interesse, já que «a subordinação do Estado e da Administração Pública ao
Direito nos regimes democráticos também não se cumpre, já que o Poder é uma
relação dinâmica entre os que mandam e os que obedecem, e que, portanto a ordem
jurídica existente é modificada unilateralmente pelo Estado sempre que contenha
normas que não sirvam os seus propósitos políticos» 74. O Estado não é um actor
estratégico racional com objectivos também estratégicos e racionais, uma vez
que a sua racionalidade é, geralmente, limitada.75
O Estado de jure cumpre e respeita o
direito, mas de facto nem sempre é assim, porque «do ponto de vista da ciência
política, a lei é mais um instrumento do Poder do que um limite» 76, e quando
uma lei interessa que tenha preconizado determinadas normas tem, mas se, ao
Estado não interessar que as tenha, não tem. É a diferença entre a perspectiva
normativa e política, enquanto a primeira é uma ciência do dever ser, a segunda
é uma ciência do ser77.
Adriano Moreira, refere a este respeito,
que o Estado procura «afirmar uma imagem, em regra normativa e constante de
leis constitucionais, (que) torna inacessível ao investigador o conhecimento do
processo real e dos reais intervenientes» 78. Por isso, «ficam assim escondidos
os conflitos, as contradições, as forças que se movem em torno da elaboração
das normas jurídicas, dos seus efeitos, do seu modo de aplicação, até à sua não
aplicação; e, sobretudo, a diferença entre o que está legislado e o que é
efectivamente vivido» 79.
Actualmente os Estados tendem a transferir
poderes para múltiplas organizações internacionais às quais pertencem,
operacionalizando-se assim «um movimento de descentralização do poder, de
regionalização até, que se teme conduzir à fragmentação unitário do Estado e a
sua substituição por uma multiplicidade de centros autónomos de poder. Por
outro lado, no plano internacional os Estados parecem compelidos por diversas
ordens de factores (…) a prescindir de sucessivas e crescentes parcelas da sua soberania»
80.
Visto noutra perspectiva «a autonomia
anuncia um novo tipo de Estado, no qual a soberania apenas possui significado a
nível externo, no confronto e nas relações de um Estado com os demais, não
havendo qualquer lugar para ela na organização política interna da
comunidade.»81
Para António Ribeiro dos Santos «o primado
do político é pois a característica fundamental do Estado Moderno, que colhe de
Maquiavel as lições fundamentais para a construção do Estado Absoluto» 82.
Contudo, o Estado na actualidade não é
absoluto, como já foi no passado, mas é centralizador. Apesar de por vezes
invocar certas medidas com carácter descentralizado, essas medidas não passam
genericamente do plano retórico ou de pura fachada política. Principalmente em
áreas pertencentes ao núcleo duro do poder, como seja a defesa e a segurança
das informações83. Porque abdicar de certos mecanismos implica perda de
influência e de poder, facto que os governos não desejam.
Não podemos colocar de parte o facto de
que «quanto mais uma sociedade global é heterogénea, quanto mais integra grupos
ou estratos diferentes pela cultura, pela posição social e pelo papel na
divisão de trabalho tanto mais o seu sistema político tende a organizar-se em
funções diferenciadas, especializadas, ligadas umas às outras por uma rede
complicada de relações hierárquicas.»84
4.
Estado unitário85: entre o normativo e o político
O Estado português segundo a Constituição
da República Portuguesa (CRP) de 1976, é um Estado Unitário (art.º 6, da CRP).
Segundo António José Fernandes86, «o estado é unitário é um Estado simples, em
que há um poder político para todo o território», podendo este assumir a forma
de Estado Unitário centralizado, como Portugal, ou descentralizado, conforme o
grau de concentração e centralização de competências. Adriano Moreira no que
concerne ao tipo de Estado unitário refere que «o Estado unitário tem a
soberania que o caracteriza externamente, e internamente não tem pluralidade de
poderes políticos. Mas existem modelos históricos ou actuais em que as coisas
se passam diferentemente» 87.
Se
realizarmos uma breve leitura da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
e da Constituição francesa de 1791, podemos retirar o seguinte quanto à
dicotomia Estado e Soberania, «”a soberania é una, inalienável, e
imprescritível; Ela pertence à Nação; (…)” (Artº 1.º), conferem a este conceito
um significado jurídico, uma vez que legitima o poder político e portanto o
Estado.»88
Ainda segundo o mesmo autor, «nos últimos
anos, se pretendeu introduzir, nos Estados centralizados, mecanismos que
permitissem dar uma imagem descentralizada dos órgãos de decisão e do aparelho
burocrático do Estado» 89, sem contudo se efectivar na prática, não passando na
maioria das vezes de medidas de cosmética política, e de descentralização
aparente, «no fundo, procedeu-se apenas a uma certa desconcentração dos poderes
da administração central do Estado, aumentando-se as atribuições dos
representantes locais do poder central, sem contudo se reduzir o poder da
administração.»90
De uma forma geral «se o Estado moderno
acabou por se impor no final de um lento processo de centralização política e
de diferenciação institucional, foi porque esse trabalho utilizou por toda a
parte as mesmas formas e procedimentos» 91.
No
caso específico nacional, «O Estado português actual pode ser classificado como
correspondendo a um tipo dominante capitalista, a uma forma de governo «mista
parlamentar - presidencial», a um sistema de governo que tem evoluído, mas que
se aproxima nos últimos anos do presidencialismo de Primeiro-ministro, a uma
estrutura unitária centralizada mas parcialmente regionalizada (Açores e
Madeira) e a um regime político» 92.
Para outro autor, em La Fin des
territoires, «o Estado como intervenção específica do Ocidente é sem dúvida a
única forma de “governança” que se ocupa a recusar toda a identidade
particularista, quer se trate de interesses privados, de culturas específicas
ou de grupos comunitários, e a fazer surgir uma esfera de dominação pública e universalista»
93.
O Estado dispõe de um conjunto
diversificado de instrumentos que lhe permitem capturar 94, assegurar e
aumentar o seu poder, a «desconcentração, descentralização e autogoverno
constituem instrumentos de que um Estado soberano dispõe para a implantação do
seu poder» 95, apesar de várias vezes os responsáveis governamentais utilizarem
um discurso retórico contrário ao praticado. Uma vez que estes instrumentos são
utilizados para concentrar poder, nem que para isso seja necessário
delegar/dispersar algumas competências em outros organismos. Trata-se de uma
descentralização aparente. O que normalmente se delega são competências de
carácter administrativo (e burocrático), e não político, como geralmente
invocam96. Porque «os domínios de actividade das entidades descentralizadas ou
desconcentradas nunca são subtraídos ao Estado, uma vez que os respectivos
órgãos centrais de poder jamais perdem capacidade de intervenção sobre eles.»97
No que concerne aos instrumentos
supracitados, utilizados pelos responsáveis políticos, estes «são,
paradoxalmente, técnicas de concentração e de centralização; de redução à
unidade do poder político depositado nos órgãos centrais de poder: os órgãos de
soberania. Por isso é que o Estado moderno, até mesmo por definição, é unitário.
Mais ou menos concentrado e mais ou menos centralizado, nele o poder político é
sistematicamente atribuído em regime de monopólio e de exclusividade aos
respectivos órgãos centrais.»98
O Estado paulatinamente desde a sua
criação foi centralizando cada vez mais poder em torno de si próprio, apesar de
por regra apresentar um discurso retórico em sentido contrário. Porque desde o
cidadão minimamente atento ao cientista político mais perspicaz sabe que «o
Estado, órgão que concentra o pensamento colectivo, coage os indivíduos, sem
ser necessária uma justificação que promane de um somatório momentâneo de vontades»
99.
A descentralização é utilizada pelo
Estado, geralmente apenas como bandeira política e com carácter discursivo,
esta assume, por definição, um mínimo de centralização e justifica-se
precisamente pela construção na prática concreta da unidade política sobre a
qual assenta e ao serviço da qual foi desenvolvida. Através dela o Estado
dota-se de uma pluralidade de instituições e de centros de poder espalhados
estrategicamente pelo seu território - mas estes não são politicamente
distintos nem se encontram desligados dos órgãos centrais de poder. Pelo
contrário, longe de beliscarem, sequer, a centralização unitária do poder
político e legislativo, as unidades descentralizadas ocupam um lugar subalterno
na estrutura hierárquica unitária do Estado e encontram-se sobre a alçada do
controle e da tutela dos órgãos centrais de poder, responsáveis directos e
discricionários pelas suas criação, existência, sobrevivência, actividades,
funções e, obviamente, extinção também. É certo que a descentralização implica
a atribuição de um mínimo de competência de decisão às entidades
descentralizadas; mas estas funcionam, sempre, como «agentes do poder central»
e funcionam sob a «subordinação hierárquica do centro 100.
As mutações existentes no sistema
internacional, em parte devido ao processo de globalização101 em curso, tornou
as relações transnacionais mais fluidas, tornando-se por vezes difícil saber
onde está o centro de decisão102, porque este, também em boa verdade deixou de
existir na verdadeira acepção da palavra, o que obrigou os Estados a repensar
as suas funções. De acordo com Habermas «a deslocação da organização da
comunidade política para novos níveis de decisão - revela a União Europeia como
resposta dos Estados Europeus a essa sua contemporânea incapacidade organizativa.»103
O atributo primordial de soberania do
Estado não exige (nem isso seria possível) a centralização e a concentração
integrais de todo o poder nos órgãos centrais do Estado - o que a verificar-se
constituiria uma tal sobrecarga que conduziria necessária e forçosamente às
suas impotência e imobilização totais. Para além disso, é com referência à
centralização que a descentralização e a desconcentração se definem. Quer uma,
quer outra, adquirem significado e legitimidade precisamente na razão em que
contribuem para a garantia da implementação na prática concreta, da vontade e
das políticas soberanas definidas unitariamente no centro. Constituem
correctivos, mecanismos de modernização e de garantia do centralismo e da
estrutura hierárquica, burocrática e racional que enforma a estrutura política
primordial do Estado moderno. A salvaguarda e a execução da unidade do Estado e
do seu poder soberano são, sempre, o primeiro e grande objectivo da sua
implementação. De tal modo que descentralizar ou desconcentrar é viabilizar a
estrutura e o poder hierárquicos do Estado, de cima para baixo, e garantir as
suas «autoridades e eficiências 104.
Carlos E. Pacheco Amaral resume de uma
forma bastante clara esta temática, «a desconcentração e a descentralização integram,
portanto, o paradigma moderno do Estado e da regionalização (…) na
contemporaneidade, constituem mecanismos auxiliares, de apoio e de
revitalização do seu poder soberano (…) penetra no âmbito do político, e aponta
para um novo tipo de Estado, substancialmente diferente: um Estado onde
coexiste uma multiplicidade de centros de poder autónomos (…) a autonomia fica
aquém da soberania.»105
5.
Crise do Estado-soberano?106
“De uma maneira geral, a nova paisagem
internacional não se resume a cenários hobbesianos” 107
Saber se foi o Estado que deu origem à
nação, ou inverso, não cabe no cômputo deste trabalho, contudo parece que «foi
o Estado que forjou a Nação, como notou Lord Acton, sendo menos comum que a
Nação tivesse dado origem ao Estado» 108.
Para Ribeiro dos Santos, «o nascimento do
actual Estado-Nação, última metamorfose do Leviathan, foi uma consequência
natural da ascensão sócio-económica da burguesia» 109.
O Estado-nação é identificado por muitos
políticos e intelectuais como estando em crise, «admitindo a crise do
Estado-nação na Europa, internamente fragmentado em regiões e organismos
infra-estaduais, externamente cedendo a sua soberania a uma “organização
pública compósita”»110. A crise do Estado-nação, não se processa exclusivamente
no plano supranacional, mas também no plano infra-estadual. No entanto, não se
pode ignorar o facto de que o Estado-nação «não é uma substância etérea
flutuando nos ares, mas uma construção intelectual, cultural e social ligada a
uma conjuntura histórica singular» 111. Mas, «ante a crise do Estado, a
ideologia política e internacionalista clássica procurou salvaguardar certos
valores estaduais, entre eles - e sobretudo - a soberania.» 112
Independentemente das várias evoluções do
conceito de Estado, ele é sempre o principal «troféu da política» 113, e é
concomitantemente «o regulador da luta de que se constitui troféu» 114, e ainda
por mais ameaças que sofra quanto à sua existência, «o Estado nunca é um mero
«grupo» como qualquer outro» 115, tem uma dimensão e importância de tal ordem,
que lhe tem permitido resistir às várias ingerências de diversa índole, e
manter-se como a principal organização a nível social.
O Estado-nação refere António Figueira, é
«como uma estrela que continua a brilhar mesmo depois de se ter apagado», é
hoje ainda «o paradigma dominante do pensamento social, determinando o modo
como interpretamos o mundo (mesmo que já não o modo como o transformamos),
apesar do diagnóstico generalizado da sua «crise terminal» e do advento de um
novo «cosmopolitismo».» 116. Indo de encontro ao defendido por António
Figueira, de que o Estado-nação é como uma estrela que continua a brilhar. É
preciso ter em conta que a luz que emana é reduzida e com tendência para
continuamente se reduzir ainda mais.
Para António Ribeiro dos Santos, «a Nação,
para além de ser entendida como um corpo de cidadãos tradicionalmente unidos,
constituindo um organismo com capacidade para legitimar o poder do Estado,
inspirou também numerosos pensadores que a colocaram no centro das suas
preocupações filosóficas.»117
O Estado, na sua acepção clássica e
integrando os elementos em que tradicionalmente é decomposto - território,
povo/nação e poder político - está em crise118. «No âmago da crise do
Estado-nação está o renascimento dos nacionalismos, das antigas querelas
étnicas e a consequente explosão do terrorismo.»119
O Estado ao longo dos tempos, evoluiu de
forma continuada «para outra forma de poder, legitimado internamente por
competências estatutárias e uma “ética de responsabilização”»120. «se a crise é
do Estado em si, ou sobretudo de um dos seus tipos históricos - o Estado
Moderno - e quais os seus verdadeiros motivos e possíveis soluções (…) Pode-se
falar de fim do Estado, à semelhança do que fizeram muitos afirmando o fim do
Direito, ou pode-se simplesmente esperar que o homem reinvente o Estado uma vez
mais.»121
Num sistema em constante mutação, em plena
época da globalização e de interdependências múltiplas, o Estado torna-se cada
vez mais «a resultante da existência de uma sociedade complexa e, por sua vez,
um dos factores de criação de uma sociedade cada vez mais complexa» 122. Na
mesma linha, Jean Boudouin afirma que «a invenção do Estado-nação continua uma
excepção brilhante, tipicamente ocidental, apenas exportada marginalmente,
ameaçada além disso nas suas próprias cidadelas pelos efeitos da mundialização
(…) por um lado, existe seguramente uma mundialização aparente do Estado. A
sociedade internacional julga-se e define-se como uma sociedade interestatal
(…) como teorizou o movimento aparente de mecanismo irreversível de
modernização política e institucional das sociedades» 123.
Apesar de a generalidade das vezes o
Estado tender a coincidir com a Nação, nem sempre assim acontece, uma vez que
«embora a Nação tenda a ser um Estado, não há necessariamente coincidência
entre a Nação e Estado: há Nações que ainda não são Estados (pela sua pequenez,
por exemplo) ou que estão repartidas por vários Estados, e Estados que não
correspondem a Nações, como geralmente acontece nos países novos aonde acorrem
todos os dias emigrantes dos mais diversos contos do globo, cada qual com os
seus facies nacional próprio. É que em muitos casos, em vez de ser a Nação que
dá origem ao Estado, é o Estado que, depois de fundado, vai pelo convívio dos
seus indivíduos e pela unidade de governo criando a comunidade nacional» 124.
Para António José Fernandes, «são Estados
soberanos aqueles que, teoricamente, detêm um poder sem igual na ordem interna,
nem superior na ordem externa. Têm, por conseguinte, o poder de querer e de comandar»
125. Esta referência vai de encontro à definição de soberania, apesar de esta
«já não corresponde ao conceito renascentista» 126. Contudo, «o mundo novo dos
“fluxos internacionais” privilegia as relações informais entre indivíduos e
grupos, funciona mais com a eficácia do que com a legitimidade, tende a alargar
permanentemente a sua autonomia em relação ao universo das regulações estatais»
127. A questão dos fluxos internacionais, levanta muitas questões, algumas
delas mais visíveis do que outras. O aumento dos fluxos internacionais
conjuntamente com o aumento das interdependências a nível global, implica que
os «problemas internos tendem com frequência crescente para se transformarem em
internacionalmente relevantes, e que estes por sua vez tendem para internacionais»
128.
A segurança129 surge como um dos fins do Estado,
e «o Estado existe porque a sociedade acredita que sem ele não é possível
manter a paz interna e assegurar a defesa externa. Assim, a segurança das
pessoas e dos valores é uma das primeiras finalidades do Estado» 130, nos dias
de hoje poder-se-á tornar difícil o Estado cumprir essa finalidade, não só
devido a ingerências externas de diversa ordem, mas também devido ao facto de
participar em organizações com fins de segurança colectiva, e outras em que
cada vez mais tendem para uma cedência de competências em áreas nucleares do
Estado, e de partilha de soberania, como é o caso da Política Externa de
Segurança Comum (PESC) e da Política Externa de Segurança e Defesa Comum
(PESDC) da União Europeia131. Para alguns autores como Ernest Renan132, as
nações não são eternas: “Elles ont commencé, elles finiront. La confédération
européenne, probablement, les remplacera.”133
Relativamente a este facto Marta Rebelo
salienta que a União Europeia «fornece uma panorâmica privilegiada sobre o
processo de erosão da soberania portuguesa ante o Direito da União: o IVA é um
imposto de criação e para financiamento europeu; a harmonização fiscal, pela
via tributação indirecta ou mesmo do PEC, vem moldando o nosso sistema fiscal -
o poder tributário, pilar do conceito de soberania, há muito que vem sendo
absorvido e exercido em Bruxelas» 134
O facto de as finalidades da organização
Estado poderem ser cumpridas por outras organizações, a nível internacional
e/ou transnacional, coloca a própria organização Estado em perigo, uma vez que
outras organizações passam a desempenhar algumas das suas funções essenciais.
Contudo, o facto de compartilhar soberania
com outras organizações, poderá na actualidade ser uma forma, ou a única
possível, de manutenção do Estado como soberano, ou como soberania possível.
Porque «a sociedade internacional é sempre concebida segundo o “modelo
vestefaliano” do interestatismo e não pode tolerar uma modalidade de
organização do espaço fora da figura do Estado e sem sacralizar a fronteira»
135. Neste novo cenário internacional, os conceitos de soberania e fronteira
tendem a diluir-se, mesmo para países que sempre tiveram as sua fronteiras
estáveis há vários séculos como Portugal, e presentemente «a soberania do
Estado Português dilui-se há muito em questões maiores ainda do que a definição
da ZEE: as nossas fronteiras têm a dimensão de 25 países europeus; a moeda é
única, por ora a 12; o PEC é de todos; a segurança é cada vez mais uma tarefa
«comum»; o nosso universo jurídico é (quase) um ditado que nos chega aos
ouvidos desde Bruxelas, o poder de fazer a guerra é, cada vez mais conjunto; a
organização económica segue o modelo da cartilha de Roma; e os impostos são
cada vez menos domínio estadual.» 136
António José Fernandes, sugere que o
Estado aparece-nos «como um sociedade política integrada, caracterizada por uma
integração permanente entre a base social (população) e o aparelho do Estado
(Direcção e Corpo do Estado)» 137. Nos dias de hoje será porventura difícil
considerar esta definição como possível e actual na integra, porque o Estado
deixou de ser uma sociedade política integrada, tal como já o foi no passado,
na medida em que está integrada em organizações supranacionais, em que a
pertença a essas organizações implica sintomaticamente perda e/ou partilha de
competências e poderes. A integração permanente entre a população e o aparelho
do Estado torna-se difícil em função da volatilidade da população, das suas
necessidades de movimentação neste mundo em devir, e devido aos cada vez mais
intensos fluxos migratórios.
Como já referi anteriormente, «O Estado é
efectivamente uma instituição complexa; é como Maurice Hauriou o considerou, «a
instituição das instituições» (1929), na medida em que é a instituição suprema
ou final, pois nenhuma outra tem um poder de integração superior ou mesmo igual
ao seu. Não há na sociedade, para além do Estado, instituições agregativas. O
Estado engloba o conjunto das suas instituições, sem que nenhuma delas o
inclua.»138
Segundo Henri Lefebvre, «O Estado não é o
quadro natural da actividade política como parece sugerir hoje a mundialização
aparente do “modo de produção estatal”. É o produto de uma construção social e
cultural que tomou formas e ritmos diferentes de um país para o outro, a
fortiori, de um continente para o outro» 139.
Se na génese da criação dos Estados esteve
a «necessidade de superar os conflitos de interesses levou os homens a
conceberem sociedades mais complexas (...) garantidos por autoridades dotadas
de poder coercitivo» 140, volvidos estes anos desde a sua criação e superados
os conflitos que estiveram na génese da institucionalização do Estado, este
tende a perder o seu peso inicial, uma vez que as necessidades da população
(conflitos de interesses), não são os mesmos nos dias de hoje, e ou a
organização Estado, se adaptada ou tende a ver-se esvaziado de competências, e
a perder importância, em virtude de não satisfazer as necessidades da
população. Sendo assim, existe uma tendência para a população procurar
satisfazer as inúmeras necessidades, que o Estado deixou de satisfazer ou
satisfazer bem, noutras organizações, especialmente de carácter supranacional.
Em parte devido ao facto de o Estado
deixar de satisfazer as necessidades das suas populações surge «a ideia de
associar as nações de uma forma suficientemente audaz, mas em domínios em que a
partilha de soberania fosse julgada necessária pelos governos» 141. Contudo, a
partilha de soberania não se viria a processar apenas em áreas que os governos
considerassem necessárias, mas passaram também, paulatinamente a compartilhar
competências em áreas do núcleo duro da soberania, como a moeda, a justiça, a
segurança, entre outras.
As constantes mutações neste mundo em
devir levou à transformação do «Estado nacional em Estado Regional, o velho Estado-Nação
vê-se também confrontado com acções de poderosas Organizações
Não-governamentais (ONG’s), que, embora benéficas, não deixam de ser
instituições que alteram os anteriores conceitos de soberania nacional» 142. O
multiculturalismo, apesar das múltiplas vantagens que trouxe, também veio
contribuir para a crise do Estado-nação, uma vez que esse «multiculturalismo
característico da pós-modernidade trouxe consigo a crise do Estado-nação e da
constituição sua essência, a que já se chamou “reestruturação supranacional do
globo”. A pós-modernidade a organizacional trouxe consigo, então, as formas de
organização supranacional e a constitucionalização do supranacional.»143
Os vários fluxos migratórios
transnacionais, e as múltiplas implicações dos mesmos, para a além de originar
uma série de problemas de segurança para os Estados, provoca «cada vez mais o
fosso existente entre o Estado e a Nação, aponto de tornar a própria designação
de Estado-Nação, actualmente inadequada.»144
Para Sabino Cassese, a crise do
Estado-nação, surgiu primeiro, aquando do aparecimento de organismos poderosos,
como os sindicatos e os grupos industriais, colocando-se, então, em causa a
soberania interna do Estado; continuou, depois, em crise Estado devido ao
desenvolvimento de organizações de Direito Internacional Público, como a
Sociedade das Nações - hoje ONU - ou as instituições de acepção, mais recente,
esta crise traduz a inadequação das entidades estaduais para dar resposta às
exigências das novas formas de cidadania e da sociedade, em geral 145.
Ainda relativamente à ONU146, a grande
maioria dos seus Estados membros, cerca de dois terços, considera o «conceito
moderno de soberania, principalmente em relação à soberania económica, apenas
soberania formal», continuando na mesma linha Michael Mann, este por exemplo,
aponta que os Estados latino-americanos são economias dependentes, mas que
«também lhes faltam o grau de soberania económica que a maioria dos Estados
europeus já detinha no século XIX (…) a crise do Estado não é de
pós-modernidade, mas de modernidade insuficiente» 147. Sendo assim, a crise do
Estado, «por mais paradoxal que seja, exige uma reflexão mais profunda sobre o Estado»
148, para se poder compreender as suas mutações.
5.1.
O caso particular da União Europeia149
A vertente económica desde a adesão à
Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, ficou cada vez mais dependente de
países terceiros e das decisões das instituições europeias, perdendo Portugal
capacidade de controlo sobre esta vertente, facto que não se sucedeu exclusivamente
com Portugal, porque «a esfera da economia, da moeda e do comércio é
seguramente a que parece, mais do que qualquer outra, escapar ao domínio
tradicional dos Estados-nações e que atesta a tendência aparentemente
irreprimível para a “globalização” da cena internacional» 150. António Ribeiro
dos Santos refere que «a actual sociedade transnacional europeia impulsiona uma
nova metamorfose do Leviathan, ou seja, a criação de uma Mega-confederação,
aglutinadora de numerosos e descaracterizados Estados-nações» 151.
Apesar de esta não ser a única área que é
afectada pela mundialização, já que «o aumento do poder da transnacionalidade
exerce-se em múltiplos domínios» 152, mesmo em atributos essenciais do núcleo
duro soberania dos Estados. Declarar a guerra, fazer justiça, criar impostos153
e cunhar moeda, foram durante muitos anos atributos essenciais do Estado. No
entanto, paulatinamente o Estado tem perdido parcialmente alguns destes
atributos, ou pelo menos o seu controlo total.
Começando pelo último atributo supra
mencionado, cunhar moeda, Portugal já deixou de ter moeda nacional e de cunhar
moeda, após adesão ao Euro. E percorrendo a linha de pensamento de Gilberto
Dupas, o Estado-nação «está cada vez mais limitado para decidir plenamente a
sua política monetária, definir seu orçamento, organizar a produção e o
comércio e cobrar impostos sobre as empresas» 154. O caso particular da União
Europeia sobre o «prisma da soberania, conforma uma situação particular», uma
vez que passou, por exemplo a poder «cunhar moeda, pois esta competência é um
dos apanágios da soberania estatal» 155.
Com a integração na UE156, Portugal vai de
futuro continuar a transferir atributos essências da soberania nacional para a
União, não que esta seja, eventualmente, uma opção nacional, mas sim uma
necessidade de poder acompanhar o processo de integração europeia da forma mais
activa e participada possível. Com o desenvolvimento da PESC e da JAI, apesar
de não fazer cessar os sistemas nacionais, tem implicações directas nestas áreas
fundamentais do Estado. Sabino Cassese, assume ainda, que de facto o Estado
encontra-se em erosão, e define esse encadeamento «como um processo histórico e
culturalmente condicionado, na medida em que a crise é, actualmente acentuada
na Europa, mas pouco sentida.»157
Manuel Castells referindo-se ao conceito
de Estado-rede assinala que a União Europeia «está organizada como uma rede que
implica compartilhar soberania, em vez de transferir soberania a um nível
superior (…) que não elimina o Estado-nação e sim o redefine (…) este tipo de
Estado parece ser o mais adequado para processar a complexidade crescente de
relações entre o global, o nacional e o local, a economia, a sociedade, a
política, na era da informação.»158
A questão da Constituição Europeia 159,
relançou ainda mais o debate acerca do conceito de soberania e da crise do
Estado-nação, e veio igualmente confirmar que presentemente «não somos,
todavia, em todos os predicados do conceito clássico soberanos como Estados»
160. Ainda no que toca à questão da Constituição Europeia, mas agora
relacionado com o conceito de soberania, a autora considera que «a consulta aos
povos da Europa que, par com os Estados, formam o substrato de soberania
compósita da União Europeia.»161
Não é apenas em África ou na Ásia que o
Estado permaneceria uma construção particularmente insegura, é desde já na
Europa e na América do Norte que estaria destinado, se não a um “esvaziamento
progressivo” (Jessop), pelo menos a um “apagamento relativo” (P. Braud). O
declínio ou mesmo a crise do Estado-nação no próprio centro das mais velhas
cidadelas do mundo ocidental, seria não apenas o indício, mas mais ainda a
consequência de uma “viragem do mundo”. James Roseneau, (…) assinala, a este
respeito um “desdobramento” da cena internacional: por um lado, um mundo
“estato-centrado”, antigo, codificado, articulado ao redor do modelo
diplomático e interstatista clássico, do outro, um mundo “multicentrado”, no
seio do qual as colectividades nacional-estatais tradicionais têm defrontar a concorrência
cada vez mais devastadora de outras formas de governação colectiva e de
investimentos individuais cujos fins e métodos são eles próprios manifestos e
contrastantes, mas que têm em comum contornarem e parasitarem os pólos
estatais, esvaziando-se assim de uma parte da sua substância e da sua
legitimidade. A coexistência mediocremente pacífica entre estes dois mundos
gera assim um universo frágil e incerto no seio do qual a subida proliferante
das transnacionalidades ainda não suscitou respostas colectivas ordenadas e
pacificadoras 162.
Se é verdade que entre o “nacional”, o
“internacional” e o “transnacional” se jogam relações cada vez mais subtis e
incertas, estas teorias medianas recordam que a comunidade internacional está
menos inerte do que parecia e se revela capaz de reconduzir ou de inverter
respostas à nova desordem do mundo 163.
Contudo, independentemente daquilo que se
diga, relativamente ao Estado, se este está em crise, se os conceitos
evoluíram, se as suas funções foram alteradas na sua essência, o que é
incontornável é «que o Estado, com múltiplas formas, mas sempre com os mesmos
elementos estruturais, é ainda hoje o principal agente das relações internacionais»
164, apesar de já não ser o único como foi no passado. Como destaca António
Celso Alves Pereira, «as transformações e os desafios que o velho Estado-nação
vem enfrentando a partir da segunda metade do século XX atingiram de forma
definitiva o seu poder e as suas condições de acção política nos campos interno
e externo. A concorrência de novos actores políticos não estatais e de novos
sujeitos de direito na ordem internacional subtrai ao Estado a exclusividade da
acção internacional, situação de que desfrutava desde os primórdios do sistema
eurocêntrico.»165
O actual processo de globalização em
curso, «veio acentuar a evidência de que o Estado, como actor internacional,
perdera parte da antiga importância que lhe fora historicamente conferida a
partir da Paz de Vestefália e que, hoje, se vê ameaçado em seu poder e limitado
em sua acção - interna e externa. (…) O Estado, apesar de tudo, não perdeu sua
real importância, mas a exclusividade da acção internacional» 166. Já que os
Estados passaram a actuar no cenário internacional de «forma autónoma, com
absoluta liberdade de acção no sistema internacional, surgem outros actores não
estatais» 167. Adriano Moreira no prefácio de uma das suas obras refere que
«houve uma alteração fundamental nas circunstâncias que antes apontaram para a
autonomização da ciência política e das relações internacionais, que foi a
crise do Estado soberano acompanhada pela multiplicação de outros agentes na
vida internacional.»168
O autor Michael Mann refere que «a perda
de poder não se dá em todas as esferas da sua acção externa (…) alguns dos seus
poderes continuam a crescer (…) os Estados regulam cada vez mais as esferas
privadas íntimas do ciclo de vida e da família. A regulamentação estatal das
relações entre homens e mulheres, da violência familiar (…) a política estatal
de protecção ao consumidor e ao meio ambiente continua a proliferar, e os
activistas “verdes” exigem uma intervenção estatal ainda maior» 169. Contudo,
estas áreas apesar de importantes e de actualmente terem vindo a ganhar espaço
no âmbito das teorias das relações internacionais170, são do domínio do poder
suave (Soft power 171).
Em torno do debate da Constituição
Europeia, algumas questões ganharam ênfase, para além de como alguns autores
defenderam, o facto de os Estados-nação estarem em crise originou uma
transferência dessa mesma crise para a União Europeia, «a Constituição Europeia
com a crise de legitimidade que se transferiu do Estado-nação para a União Europeia»
172. Se fizermos uma comparação, mesmo superficial, com o processo de
globalização e a transferência de competências dos Estados para a União
Europeia, podemos verificar mutatis mutandi, que quando um Estado, por exemplo,
transfere competências e poderes para outra organização internacional como a
União Europeia, transfere também parte dos seus problemas, ou seja, neste caso
particular a crise do Estado-nação.
Não podemos omitir o facto de que a
«sustentação jurídica da União Europeia está na transferência de soberania por
parte dos Estados membros» 173. Para Joana Stlezer a transferência de parcelas
de soberanas «se tornou possível em virtude da mutação que o próprio conceito
de soberania sofreu ao longo do tempo. Ora, se a conceituação de soberania
continuasse atada à sua ideia e poder absoluto e intangível, a partir de um
acto de transferência de soberania, o Estado deixaria de existir ou a
transferência não se completaria (…) Antes una e absoluta, a soberania passou a
se demonstrar divisível».174
O
mesmo se sucede com a globalização175, que não trouxe exclusivamente aspectos
positivos para os Estados e para as sociedades. A globalização trouxe o avanço
económico e científico-tecnológico, por exemplo, para as regiões mais
desfavorecidas e menos avançadas do mundo, mas também trouxe os problemas das
regiões mais desfavorecidas para as regiões mais avançadas. A globalização
trouxe também, passe a redundância, «a globalização do crime organizado» 176,
que «constitui poderoso desafio à soberania do Estado, uma das ameaças mais
difíceis de ser superada pelo Estado pós-moderno». Na qual o Estado perdeu,
pelo menos parcialmente, «nas sociedades democráticas o Estado perde a
capacidade de controlar os fluxos de informação entre cidadãos» 177.
A globalização, tal como a transferência
de competências dos Estados para a União, não é um processo unidireccional, nem
bidireccional, mas multidireccional de efeitos múltiplos. Como salienta Marta
Rebelo, a «incapacidade organizativa, que nasce de uma crise de legitimidade do
Estado-nação indutora da erosão do conceito clássico de soberania. Interessante
é constatar que essa crise de legitimidade se transferiu, a par de uma série de
competências e deveres, para esta resposta supranacional. (…) Uma era marcada
pelos avanços científicos e tecnológicos, pela globalização, pela modificação
da natureza do Estado como epicentro da ordem jurídica. É a formatação dos
novos percursos da humanidade» 178.
Se os Estados-nação deixaram de cumprir os
seus fins essenciais para o qual foram concebidos, a resposta a essa inércia ou
limitação estadual para continuar a satisfazer as necessidades das populações,
deu origem ao surgir de outra organização de carácter supranacional, para
compensar a perda de competências dos Estados. Alguns Estados Europeus por sua
iniciativa e vontade, criaram a Comunidade Económica Europeia (CEE), actual
União Europeia179 «como resposta à crise de legitimidade do Estado-nação, à sua
incapacidade para garantir a coesão social, para manter vivos os laços de solidariedade
cívica, reportando-nos à sua essência original. Paradoxalmente, e porque a
União Europeia surge, para os europeus, como o novo paradigma organizacional,
próprio da era pós-moderna, a crise de legitimidade do Estado-nação
transfere-se para o patamar supranacional.»180
6.
Breve conclusão
“A sociedade já não é o que foi, não pode
tornar a ser o que era - mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há-de
ser, não sei. Deus proverá.” 181
Esta breve conclusão, por paradoxal que
pareça, não pretende ser uma conclusão na verdadeira acepção da palavra, em
virtude da especificidade do tema, paralelamente com a sua amplitude,
complexidade, e o seu carácter multidimensional.
Depois de analisar alguns dos conceitos de
Estado, e algumas das suas especificidades «mostra-nos que embora este
apresente ao longo do tempo características diferentes, mantém todavia o
monopólio do Poder, que constitui a sua prerrogativa essencial. As diferenças
aparentes, as metamorfoses do Leviathan, ou menos hostil e aos Estados que
constituem o seu ecossistema, com os quais tem de negociar diplomaticamente a
sua viabilidade e sobrevivência, sempre ameaçada pela “ultima ratio” - a
guerra.»182
Já desde a origem do Estado que se discute
a necessidade da existência do Estado, «aceitar o facto básico de que o homem
em sociedade não implica reconhecer que necessariamente tem de viver numa
sociedade política nem que o Estado é a sociedade política necessária» 183.
O Estado é a forma histórica do momento,
que tem servido para uma descrição da cultura política num dado momento. O
Estado é um conceito multidimensional e composto com uma dinâmica histórica. O
Estado é uma construção simbólica e implica sempre a ideia simbólica do poder.
Na mesma linha Georges Burdeau184 salienta que, o poder ao deixar de ser
incorporado na pessoa do chefe, não pode deixar de existir. Por isso, será a
instituição estatal encarada como sede exclusiva do poderio público, ou seja, o
poder é institucionalizado no Estado.
Adriano Moreira refere que «é por isso que
sugerimos a necessidade de criar e desenvolver na ciência política o estudo
sistemático da clandestinidade do Estado, para compreender esse fenómeno
constante e maquiavélico do afastamento entre o que o Poder proclama e aquilo
que o Poder faz.» 185
Para muitos autores e estudiosos desta
temática, o conceito de soberania sofreu uma evolução incontornável, deixando
de existir na sua essência, tal como foi concebido por Bodin, sendo assim,
«deduz-se a eliminação da soberania em face da ordem jurídica internacional,
ou, pelo menos, uma transformação profunda no conteúdo da palavra, que já não
traduzirá o sentido originário e tradicional.»186
Actualmente, como refere António C. Alves
Pereira «não há, definitivamente, que falar em soberania absoluta, uma vez
que este é um conceito desenvolvido à época do fastígio do eurocentrismo (…)
sendo uma categoria político-jurídica de natureza eminentemente histórica,
portanto, variável no tempo e no espaço, a soberania passa, nos dias actuais,
por uma completa transformação (…) torna-se cada vez mais difícil formular uma
definição abrangente de soberania.»187
Para Celso D. de Albuquerque Mello188 o
conceito de soberania trata-se de um «”conceito jurídico indeterminado e cujo
conteúdo e limites vai variar com a consciência jurídica e as circunstâncias
políticas em cada época histórica”. Trata-se, pois, de uma das noções mais
obscuras e mais polémicas no âmbito do Direito Público e da Ciência
Política.»189
O conceito de soberania não é um conceito
indeterminado de forma involuntária, mas porque interessa que o seja, para
permitir uma interpretação extensiva e uma adaptação aos ciclos políticos
nacionais e internacionais. No entender de Celso D. de Albuquerque Mello, «não
há uma definição integralmente sólida do que seja a soberania. Este é um
conceito jurídico indeterminado (…) os ‘conceitos jurídicos indeterminados’ são
expressões vagas utilizadas pragmaticamente pelo legislador com a finalidade de
propiciar o ajuste de certas normas a uma realidade cambiante ou ainda pouco
conhecida.»190
Para uma panóplia diversificada de
autores, o conceito de soberania não perdeu importância, já que «a soberania
tomou nova forma, composta de uma série de organismos nacionais e
supranacionais, unidos por uma lógica única. Esta nova forma global de economia
é o que chamamos de Império.» 191 Já para outros autores como Anthony Giddens,
«a soberania não é indivisível, mas regular e caracteristicamente moldada pelas
posições geopolíticas dos Estados, suas respectivas forças militares e, em um
grau menor, pela sua situação na divisão internacional do trabalho.»192
António Celso Alves Pereira salienta que
«numa conjuntura em que a interdependência é a regra, e em que a soberania,
como vimos, muda de conteúdo, parece mais viva do que antes a reivindicação da
igualdade efectiva dos Estados, o que parece contrário à natureza das coisas.
Nunca aconteceu que essa igualdade fosse efectiva, nem é de esperar que,
mantendo-se o Estado como modelo do agente político internacional por
excelência, isso venha a acontecer. O elitismo, baseado no poder efectivo ou no
poder funcional, é que parece ser a regra da comunidade internacional» 193.
Para este autor os Estados continuam a ser soberanos, apesar de o conteúdo da
soberania ter mudado. Ou seja, pode-se falar em soberania, mas não nos mesmos
moldes como foi concebida. A soberania afastou-se paulatinamente do seu
conceito clássico, perdendo a sua essência.
Para António Celso Alves Pereira, «os
Estados-nação estão deixando de ser sujeitos soberanos e passando a ser actores
estratégicos194 que se ocupam dos interesses daqueles que supostamente
representam, em sistema global de interacção. Trata-se de uma situação de
soberania partilhada sistematicamente.»195
A crise do Estado-nação existente ao nível
dos Estados nacionais é transportada para a União Europeia, porque os Estados
além de transferirem competências, transferem também os problemas intrínsecos
dos próprios Estados, «o maior paradoxo da União Europeia, enquanto sociedade
policontextual: ao responder à crise de legitimidade do Estado-nação, chama a
si essa mesma questão - o problema da legitimidade» 196.
Se a União veio resolver muitos dos
problemas dos Estados, também contribui para acelerar a crise dos próprios
Estados, e para que estes transferissem a crise que atravessam para a União
Europeia. Por paradoxal que pareça, e «porque a União Europeia surge, para os
europeus, como o novo paradigma organizacional, próprio da era pós-moderna, a
crise de legitimidade do Estado-nação transfere-se para o patamar supranacional.»197
A União Europeia permitiu e propiciou uma
cooperação mais estreita entre os Estados, mas também veio afectar
indubitavelmente os Estados quanto aos seus conceitos clássicos. Apesar o
Estado na sua essência se ter alterado, e por mais contestado que seja, o
«Estado contínua válido e necessário» 198.
O Estado português também não ficou
incólume à crise dos Estados soberanos. O facto de Portugal participar em
várias organizações internacionais de diversa índole, tem contribuído
indubitavelmente para a perda de parcelas de soberania. Mas mais preocupante é
quando essa perda se processa em áreas pertencentes ao núcleo duro da
soberania, como seja a defesa e a segurança, já que «esta questão tem
incidências pesadas na redefinição da soberania, entendida não formalmente mas
na perspectiva das capacidades efectivas de que o Estado disponha. (…) Talvez
não haja outra questão mais relacionada com a eventual evolução para o Estado
exíguo, uma perspectiva que nenhum Estado da mesma área parece disposto a aceitar»
199. É especialmente devido a estas questões que Adriano Moreira afirmou que «o
estado português caminha para o estado exíguo» 200/201.
Adriano Moreira referiu ainda quanto ao
conceito de Estado que «é por isso que sugerimos a necessidade de criar e desenvolver
na ciência política o estudo sistemático da clandestinidade do Estado, para
compreender esse fenómeno constante e maquiavélico do afastamento entre o que o
Poder proclama e aquilo que o Poder faz.» 202.
Muito se tem dito e escrito quanto à crise
do Estado, mas «a geral conclusão de que é necessário um sistema mundial de
gestão, para evitar a catástrofe da guerra e a catástrofe da paz sem
disciplina, só tem a novidade de exigir mais um sistema (…) e que hoje cresce
um consenso mundial a exigir uma fórmula consentida e ainda não encontrada»
203. O facto de ainda não existir uma fórmula consentida, e concomitantemente,
na «ausência de uma resposta clara, não temos alternativa senão regressar ao
Estado-nação soberano e tentar compreender uma vez mais como torná-lo forte e
eficaz.»204
O Estado desde a sua criação até aos dias
de hoje teve uma evolução, impulsionada quer por factores externos da
conjuntura internacional, quer pelas forças que operam dentro da caixa negra
205 do próprio Estado.
O Estado «como forma histórica
predominante contemporânea» 206, continua a ter «um lugar essencial nos
sistemas políticos» 207, reconstruindo-se permanentemente, e não como Carl
Schimtt afirmou que o Estado caminha para o “fim da estatalidade”, ou seja,
para o “fim do estado”, porque a «crise de l’État signifie de part et d’autre,
crise d’un type d’État déterminé, non fin de l’État.»208. Mesmo, apesar do
«processo de integração supranacional que corre na Europa ainda não permite, de
forma clara, afirmar a superação da estatalidade» 209. Para Norberto Bobbio o
Estado «é um mal necessário», mas não o podemos «dispensar o Estado e, por isso
se recusa a anarquia.»210
Para uns autores essa evolução foi devida
ao ambiente interno, para outros ao ambiente externo. No meu entender, essa
evolução não foi devida exclusivamente, nem ao ambiente externo, nem ao
ambiente interno, mas sim a ambos. É devido à dicotomia e à interacção dos
ambientes externos e internos que o Estado evolui.
A soberania, evoluiu paralelamente com o
evoluir do Estado, já que ambos estão intimamente interligados,
interdependentes e complementam-se mutuamente. Contudo, a soberania, na sua
essência já não existe, o seu conceito clássico de poder supremo desapareceu,
tendo sido substituído por outro conceito, que não é certamente o mesmo desde a
sua nascença.
Os Estados modernos deixaram de ser
soberanos na sua essência, perdendo concomitantemente, parte do «monopólio da
força legítima» 211. Contudo, o conceito de soberania não desapareceu, porque
os Estados continuam a ter soberania, com uma particularidade - só têm a
soberania possível, que é limitada. Na mesma linha de pensamento, Noberto
Bobbio, refere que o «Estado não só não desapareceu como cresceu e se alargou
de modo a suscitar a imagem de um polvo de mil tentáculos.»212
Na actual sociedade contemporânea, «sem
vértice nem centro» 213, Francis Fukuyama, na sua recente obra, A Construção de
Estados - Governação e Ordem Mundial no Século XXI referiu que «os Estados têm
para o bem e para o mal, uma imensa variedade de funções» 214, e que, «o que os
Estados, e só os Estados, são capazes de fazer é congregar e exercer de forma
adequada o poder legítimo. Este poder é necessário para impor uma supremacia do
direito a nível interno e é necessário a nível internacional para preservar a
ordem mundial.»215
O Estado assume-se assim, como uma
entidade superior bastante complexa e com múltiplas especificidades, e que na
actualidade, para além de continuar a ser o principal actor das relações
internacionais, é acima de tudo uma ideia216.
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