Peter
Thompson, o recentemente nomeado mediador internacional para o processo de
reconciliação nacional da Guiné-Bissau, fala ao SOL da esperança numa solução
negociada para a crise guineense e no que falta para garantir a viabilidade do
conturbado país.
Que
expectativa tem sobre o sucesso do processo de reconciliação agora lançado?
Estou
optimista. Chegou a altura do povo da Guiné-Bissau encontrar uma solução comum
para os seus problemas. O meu lema para o processo de reconciliação é «um
futuro partilhado». Um futuro partilhado implica uma discussão partilhada sobre
identidade nacional [guineense] e essa discussão deve ocorrer na Assembleia
Nacional Popular, onde todos os cidadãos estão representados. Em comparação com
o nosso processo de paz, na Irlanda do Norte, os problemas fundamentais [da
Guiné-Bissau] não são tão complicados. Na Irlanda do Norte, tivemos de lidar
com o problema da religião, do que estava certo e do que era errado. Na
Guiné-Bissau é uma questão de construir consensos através do diálogo. O povo da
Guiné-Bissau quer todo o mesmo futuro, mas tem diferentes maneiras de
interpretar a solução.
Foram
traçadas algumas ‘linhas vermelhas’ na negociação?
Não,
eu não aceito «linhas vermelhas». A única forma de criar um futuro partilhado é
através de um debate aberto. Fiquei muito impressionado pela capacidade dos
políticos guineenses em sentarem-se à volta de uma mesa e, abertamente,
discutirem as suas divergências. Se alguém quer dizer algo, diz. Em comparação,
já estive envolvido em conversações noutros estados, onde dois partidos
políticos não podiam estar na mesma sala juntos. Não nos podemos esquecer que,
na Irlanda do Norte, conseguimos trazer e juntar na mesma mesa de negociações
os piores inimigos – pessoas que se tentaram matar umas às outras, que mataram
pessoas da família com quem estavam agora a conversar. Acho que a grandeza de
um homem define-se pela sua capacidade de se reconciliar com o inimigo.
É
expectável a realização da segunda volta das presidenciais interrompidas pelo
golpe de Abril de 2012?
De
um ponto de vista técnico e logístico, penso ser impossível acontecer uma
segunda volta das eleições presidenciais [de 2012]. Acredito que agora todos os
partidos políticos estão a preparar-se para um novo processo eleitoral. Tive a
oportunidade de ser um dos observadores internacionais na primeira volta e
espero que as eleições possam ocorrer o mais cedo possível.
E
o regresso de Carlos Gomes Júnior ao poder?
Penso
que essa é uma questão para os partidos políticos que escolhem os candidatos e
para o povo da Guiné-Bissau que vota neles.
Falou
como elementos das forças armadas? Há algum interesse genuíno da parte dos golpistas
militares na resolução da crise?
Os
veteranos das Forças Armadas estão representados numa subcomissão do proceso de
reconciliação nacional. A maior preocupação dos soldados é o seu futuro em
termos económicos. Se eles deixarem as Forças Armadas como parte da reforma do
sector da segurança, o que terão fazer para ganhar dinheiro? Por isso é que
ficam nas Forças Armadas até serem idosos, com uma arma numa mão e um saco de
arroz noutra. Talvez, ao encontrar-se uma solução para este problema, poder-se-á
dar às Forças Armadas um papel mais construtivo na sociedade. Criar
oportunidades económicas para os militares que queiram deixar as Forças Armadas
acabará também por contribuir para a luta contra o crime organizado, que é o
pior tipo de ‘oportunidade económica’.
Tem
falado com cidadãos comuns? O que lhe dizem os guineenses?
Tenho
sim. Nos últimos quatro anos, visitei cada região do país e, de forma regular,
visito mesquitas, igrejas e escolas para ouvir a opinião das pessoas. Como
sabemos do processo de paz na Irlanda do Norte, o maior desafio é criar um
futuro partilhado para que cada parte o sinta como seu. A reconciliação
nacional deverá ser ‘propriedade’ não só de políticos, mas de taxistas,
vendedores do mercado e agricultores – as mulheres e homens comuns da
Guiné-Bissau. Se a paz é um negócio, a sua população é a sua accionista. Os
líderes das organizações internacionais deviam passar mais tempo fora da
capital, com o povo da Guiné-Bissau: estes têm um sentido de esperança que
inspira. O povo da Guiné-Bissau tem os mesmos desejos que o povo português –
uma boa educação, um emprego estável e uma boa qualidade de vida para a sua
família. O cidadão guineense comum não quer nem deseja violência, conflitos ou
crimes. Não estão interessados em políticas de culto de personalidade nem estão
interessados que os militares façam política. Querem as mesmas coisas que eu e
você.
A
luta interna no PAIGC fragiliza o processo?
Lutas
internas nos partidos são um processo normal na democracia. Desde que estas
disputas sejam pacíficas e justas e não prejudiquem o processo de
reconciliação. Espero que todos os partidos políticos tenham debates vivos nas
disputas pelas respectivas lideranças, mas também na construção da paz, do
desenvolvimento e da justiça social.
Como
nasceu este processo?
Inicialmente,
o processo de reconciliação nacional foi estabelecido pela Assembleia Nacional
Popular em 2009. Foi originariamente criado com o apoio das Nações Unidas para
melhorar as relações entre as várias etnias, discutir a identidade nacional, a
compensação das famílias das vítimas e o legado do conflito – basicamente,
todos os problemas do país desde a sua independência de Portugal. Eu fui um
observador internacional neste processo. Vejo o meu papel de conciliador como
uma continuação do trabalho que já fiz no passado, mas, claramente, as
circunstâncias são muito diferentes agora e há maiores desafios para
reconciliar os vários pontos de vista e para criar alguma harmonia entre os
políticos guineenses. A Assembleia Nacional Popular é um espaço de muita
abertura – todos são francos e eu próprio devolvo essa mesma franqueza. As
pessoas da Irlanda do Norte são famosas por dificilmente enganarem.
Como
surgiu o convite para a mediação?
Já
me encontrava envolvido na comissão há alguns anos como observador
internacional neste processo (em conjunto com o meu colega, o político
britânico Ian Paisley Junior). Sou o Coordenador do Grupo Parlamentar Britânico
para a Guiné-Bissau e o Representante Africano da PACTX-NI, uma instituição
britânica que partilha a experiência e o legado do processo de paz na Irlanda
do Norte. Tenho experiência como negociador em conversações decorrentes de
conflitos em vários estados africanos, usando as lições e o exemplo da Irlanda
do Norte. Como Membro Observador da comissão de reconciliação, ia apresentar as
lições do exemplo da Irlanda do Norte durante a Conferência de Reconciliação
Nacional em Janeiro de 2012, organizada pelas Nações Unidas. Infelizmente, o
antigo Presidente da Guiné-Bissau Malam Bacai Sanhá faleceu e a conferência foi
cancelada. Depois do golpe de Estado em Abril, as actividades da Comissão e da
Assembleia Nacional Popular pararam devido à crise política. Não queria que
este processo acabasse, por isso acabei por desenvolver várias conversações e
encorajar as partes a reunirem-se na Assembleia Nacional Popular para
encontrarem, juntas, os caminhos para o futuro do povo da Guiné-Bissau – um
futuro partilhado para todos. Os membros da Assembleia Nacional Popular
decidiram que este novo processo necessitava de um moderador externo para
contrabalançar todos os pontos de vista e argumentos, e eu aceitei este repto
em Dezembro de 2012, com o apoio do Grupo Parlamentar Britânico para a
Guiné-Bissau e o povo guineense.
Há
uma solução para esta crise? É razoável acreditar no regresso à ordem
constitucional?
Sim,
acredito que há uma solução a ser encontrada. Mas esta solução deverá ser uma
solução guineense para problemas guineenses. Se for à biblioteca, não irá
encontrar um livro chamado “Como resolver os problemas da Guiné-Bissau”. As
respostas têm de ser encontradas no coração e na mente do povo da Guiné-Bissau.
A comunidade internacional pode ajudá-lo a compreender o que deseja, mas
precisa também de lhe dar os recursos e ferramentas para criar um futuro
partilhado por si próprio. Quanto à ordem constitucional, esta não é negociável
– é o direito do povo da Guiné-Bissau.
Qual
o paralelo entre a crise crónica da Guiné-Bissau e a da Irlanda do Norte?
São
dois países etnicamente diversificados de 1,7 milhões de pessoas, em luta para
encontrarem uma identidade nacional unificada. Após 40 anos de um conflito
sectário e de milhares de mortes, os políticos da Irlanda do Norte aprenderam a
unir uma das mais divididas sociedades do mundo. Estabelecemos várias
instituições de reconciliação importantes, incluindo uma Comissão para Vítimas
e Sobreviventes, e um departamento na polícia para investigar crimes
históricos. O futuro partilhado é agora uma obrigação legal do Governo da
Irlanda do Norte. Uma outra experiência relevante é o nosso processo de reforma
do sector de segurança. A Irlanda do Norte tem actualmente o mais abrangente e
bem sucedido exemplo de reforma no sector de segurança no mundo actual. Foi
criado um serviço de segurança centrado na comunidade, inclusivo de todas as
crenças e tradições da comunidade e de todos os seus actores políticos. A
Guiné-Bissau poderá aprender muitas lições desta experiência e eu estarei a
trabalhar sem cessar para promover o exemplo da Irlanda do Norte e os seus
valores de reconciliação e justiça. Muitos dos políticos mais importantes da
Irlanda do Norte manifestaram o seu apoio a esta minha determinação.
Qual
o papel do crime organizado nesta crise?
Claramente,
a Guiné-Bissau com o tráfico de droga que vai até à Europa a partir da América
Latina. Mas para lá da questão, bem conhecida, do tráfico de droga, não devemos
esquecer outras formas de crime que ocorrem no país e em toda a região,
incluindo a desflorestação ilegal, a venda de medicamentos contrafeitos e o
turismo sexual pedófilo. São crimes que destroem comunidades e famílias e que
receio que ocorram todos os dias na África Ocidental, rendendo milhões de euros
para criminosos em Portugal, Reino Unido e em todo o lado. De um ponto de vista
da reconciliação nacional, é óbvio que um sistema político mais coeso e uma
economia mais estável podem desempenhar um papel mais decisivo na luta contra o
crime organizado.
Esteve
reunido recentemente com Bill Clinton, qual a visão do ex-Presidente dos EUA
sobre a crise guineense?
O
Presidente Clinton foi um dos negociadores-chave no nosso processo da Irlanda
do Norte. É uma das pessoas que nos ajudou a criar um futuro partilhado e as
suas experiências são uma importante inspiração para o meu trabalho em Bissau.
Estive com ele várias vezes para discutir a reconciliação nacional. Encorajou
muito o meu trabalho e espero revê-lo em breve para partilhar com ele o nosso
progresso em Bissau.
Como
vêem Reino Unido e os EUA a Guiné-Bissau?
A
maioria das pessoas não consegue sequer encontrar a Guiné-Bissau no mapa. Há
muito pouco comércio ou investimento e nenhuma ligação cultural com o país.
Esta é uma das razões pela qual os problemas ficaram escondidos da comunidade
internacional. O melhor contributo possível da parte do Reino Unido será o de
partilhar as lições do processo de paz da Irlanda do Norte.
A
comunidade internacional esqueceu o país? Que apelo lhe faz?
Talvez
não tenha esquecido, mas pode ter negligenciado. O mundo enfrenta muitos
desafios actualmente, no Médio Oriente, no Norte de África e em todo o lado. A
Guiné-Bissau pode não ser uma prioridade na mesma escala hoje, mas merece
ter-se em consideração o que acontecerá no futuro se uma solução partilhada
para a crise política actual no país não for encontrada agora. Como o meu
médico costuma dizer sempre, a prevenção é melhor do que a cura. Vamos resolver
os desafios que o povo da Guiné-Bissau enfrenta agora antes que estes se
tornarem amanhã em problemas maiores para o resto do mundo. Vamos reforçar as
instituições do Estado e criar incentivos para a democracia. Isto irá prevenir
a maioria dos problemas mais graves.
Que
contactos têm mantido com outros actores externos como Angola, Portugal e a
Nigéria?
Tenho
com regularidade encontros com representantes destes três países. Angola e
Nigéria são países importantes em África e têm a oportunidade de exercer uma
influência positiva no desenvolvimento do continente. Em relação a Portugal,
sou com regularidade convidada para a Assembleia da República. Alguns dias
antes do golpe de Estado, estive no Palácio de São Bento para expressar as
minhas preocupações e quando regressei de Bissau, onde estava a monitorizar as
eleições, três semanas depois do golpe de Estado, fui directamente para o
Parlamento em Lisboa para me reunir com membros da Comissão Parlamentar dos
Negócios Estrangeiros. A minha relação com Portugal é muito construtiva e
espero que Portugal seja um forte apoiante do processo de Reconciliação
Nacional. Culturalmente, Portugal é um irmão mais velho da Guiné-Bissau e penso
que pode ter um papel fundamental no desenvolvimento do país. Sei que a relação
entre os dois Estados passou por algumas dificuldades, mas o povo português
pode beneficiar das oportunidades económicas de uma Guiné-Bissau em paz e
estável. Talvez agora seja um bom momento para Portugal ter um debate
relativamente à sua relação com a Guiné-Bissau.
A
CEDEAO é finalmente um parceiro ou mantém-se um obstáculo neste processo?
A
CEDAO é um importante actor no esforço internacional, em conjunto com a União
Africana, a União Europeia e as Nações Unidas. Nenhum destes actores é um
obstáculo se estão a contribuir. Para ser honesto, a melhor contribuição que a
CEDAO e outros podem fazer é unirem-se e proporem uma solução conjunta para o
desenvolvimento deste país pobre. Ninguém tem todas as respostas sozinho.
Como
observa a desestabilização progressiva de toda a África Ocidental?
Preocupa-me,
e o mundo deverá prestar atenção. A África Ocidental tem muitos estados
frágeis, vulneráveis ao crime organizado, à destabilização política e ao
terrorismo. Estes são problemas que vão chegar a Lisboa, Londres e a todo o
lado se não forem contidos rapidamente. A Guiné-Bissau é um dos Estados mais
frágeis de África e todos precisamos de trabalhar para evitar a desintegração
regional.
Acredita
na viabilidade da Guiné-Bissau? De que necessita o país?
Sim,
acredito no futuro do país. O povo da Guiné-Bissau é extremamente determinado.
Sabe que a Guiné-Bissau chegou a ser uma colónia britânica durante 16 meses,
entre 1792 e 1793 e tivemos de sair porque a população local era muito dura? O
povo guineense é orgulhoso, determinado e inteligente. Os guineenses querem um
futuro partilhado, mas precisam de ajuda para criar este debate partilhado. A
maioria dos problemas actuais – por exemplo, as eleições e os militares –
surgiram devido a uma falha de entendimento mútuo. De um ponto de vista de
curto prazo, as instituições democráticas do país necessitam de ser reforçadas
– a Assembleia Nacional Popular deve ser fortalecida para reflectir-se como a
voz eleita do seu povo. O sector público deve ser mais eficiente em termos
financeiros e os sectores de segurança e justiça precisam de aprender as lições
dos países vizinhos. De um ponto de vista de longo prazo, o país precisa de uma
reforma económica total. Um sector público sustentável, uma política fiscal
realista e uma forma viável de comercializar os seus recursos naturais, são as
únicas formas de o país construir um futuro sólido.
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