“Este
prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora
ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que
associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil
tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.
E
fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este
presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo
não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No
país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, “e cá vamos
indo, se deus quiser”.
Não
sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre
acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais
baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a
morte, que somos, que somos.
Partimos
então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho porque
só a perda é certa.
O
meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que
amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder
estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer.
Poder estar em Portugal apesar de o governo nos mandar embora. Contrariar quem
nos manda embora como se fosse senhor da casa.
Eu
gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que
este país não é seu, nem do governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro
Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as
vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do
pesadelo que o governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de
viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este governo rebentou
com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos,
falando da “total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que
caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina
a míseras notas de pé de página”.
Este
país é dos bolseiros da FCT que viram tudo interrompido; dos milhões de
desempregados ou trabalhadores precários; dos novos emigrantes que vi chegarem
ao Brasil, a mais bem formada geração de sempre, para darem tudo a outro país;
dos muitos leitores que me foram escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a
perguntar que conselhos podia eu dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam
emigrar.
Eu
estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado, quando um membro do seu
governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os professores emigrassem. Ir
para o mundo por nossa vontade é tão essencial como não ir para o mundo porque
não temos alternativa.
Este
país é de todos esses, os que partem porque querem, os que partem porque aqui
se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles, forte, bonito, inventivo.
Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem mais pela imagem de Portugal,
mais pela relação Portugal-Brasil, do que qualquer discurso oco dos políticos
que neste momento nos governam. Contra o cliché do português, o português do
inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá, revirando a história do
avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a colonização, da escravatura.
Este
país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de poesia em Lisboa, e depois
a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda pública, e acartou 7000
livros, uma tonelada, para um 11º andar, que era o que dava para pagar de
aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo ter ficado demasiado
caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma sala que o actual
presidente da República.
E
é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para que haja cinema, de
quem não cruzou os braços quando o governo no poder estava a acabar com o
cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores portugueses numa
conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem aos jornalistas
presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui vendo, à
distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem dividas à
segurança social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida. E ainda
assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as pessoas
juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.
Não
devo nada ao governo português no poder. Mas devo muito aos poetas, aos
agricultores, ao Rui Horta que levou o mundo para Montemor-o-Novo, à Bárbara
Bulhosa que fez a editora em que todos nós, seus autores, queremos estar, em
cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais hostil, com margens canibais.
Os
actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o
trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as
pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é
prémio, é compromisso”.
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