A reconciliação não se decreta, tem que partir de um processo de aceitação e exposição do culpado, que deverá solicitar o perdão as suas vítimas e não o contrário. Também é importante que o processo de reconciliação não reforce o sentimento de impunidade existente. Quem cometeu crime deverá pagar por ele.
A filha mais
velha do antigo Procurador-Geral da República, Nicandro Pereira Barreto
assassinado em 1998 na sua residência em Bissau, disse numa entrevista
exclusiva ao jornal “O Democrata”, que a “reconciliação faz-se com as partes
envolvidas devidamente identificadas”.
Nelvida Pereira
Barreto Gomes, actualmente em Luanda (Angola) em missão do serviço, advertiu as
autoridades nacionais nesta entrevista que é importante que o processo de
reconciliação não reforce o sentimento de impunidade existente.
Explicou ainda
que todos os anos, a família Barreto endereça uma carta ao Procurador – Geral
da República, exigindo a conclusão do inquérito e a divulgação dos resultados
deste ou a continuação da auscultação dos arguidos e a abertura da fase do
julgamento. Todavia, lamenta o facto de nenhuma das cartas ao Ministério
Público ter obtido até neste momento qualquer resposta por parte das
autoridades judiciais guineenses.
D: Assassinato
do Nicandro Pereira Barreto aconteceu há 15 anos. A família voltou a endereçar
e recentemente uma carta ao ex- Procurador-Geral da República, Abdú Mané. Pode
explicar as razões que motivaram a mais esta iniciativa?
NB: A iniciativa não é recente. A carta insere-se no
quadro de outras correspondências anualmente enviadas ao Procurador-Geral da
República da Guiné-Bissau, com cópias para todos os órgãos de soberania do
Estado, pois é inaceitável, para família Barreto, que volvidos 15 anos sobre o
assassinato, o Estado guineense, através do seu órgão judicial, tenha sido
incapaz de dar por concluída a fase de inquérito, extrapolando todos os prazos
judiciais para o fazer, deixando a família Barreto carente de uma satisfação
que de há tanto tempo a esta parte tem clamado.
Num Estado de direito, em que este reclama para si o
monopólio da administração da justiça, essas prerrogativas constituem um poder-
dever de Estado, que em nenhum momento se deve negligenciar sob pena de se cair
na anarquia própria da vingança privada, em que cada um faz justiça pelas suas
próprias mãos. Como tal, por ocasião dos 15 anos da morte de Nicandro Barreto,
a família endereçou como em todos os anos transatos, uma carta ao
Procurador-Geral da República, exigindo do Estado o comportamento legalmente
devido, ou seja, a conclusão do inquérito e o arquivamento e divulgação dos
resultados destes ou a continuação de arguidos e a abertura da fase do
julgamento.
Gostaria ainda de lembrar que um princípio
importante na administração pública, é de que toda a petição do cidadão deverá
ter resposta da entidade pública a qual é dirigida. Causa-nos imensa estranheza
o facto de nenhuma das cartas ter obtido até este momento qualquer resposta por
parte das autoridades guineenses.
D: Fala-se da
existência de um relatório da polícia judiciária portuguesa enviada, por via
diplomática, a sua congénere guineense em finais de 1999. A família Barreto tem
na sua posse pistas de investigações realizadas pela polícia portuguesa?
NB: A família Barreto teve conhecimento da
transmissão as autoridades da Guiné-Bissau, do relatório das investigações
realizadas pela polícia judiciária portuguesa. Não dispomos de mais informações
relativas ao conteúdo desse documento. Essa é a razão pela qual temos vindo a
insistir com a Procuradoria-Geral da República da Guiné-Bissau no sentido de
divulgar o relatório e dar continuidade as ações processuais, em consequência.
D: Assassinato
de Nicandro Barreto ocorreu pouco depois do fim de conflito político-militar de
1998/1999. Acha que a morte do seu pai tinha motivações políticas ou algo mais
de que isso?
NB: Não quero especular sobre o assunto. Gostaria
contudo de recordar que o assassinato de Nicandro Pereira Barreto ocorreu no
período imediatamente após término do conflito político-militar, num momento
específica da vida política guineense, marcada pelas divergências e clivagens
no seio da classe política e particularmente no seio da família política a que
ele pertencia. Essas tensões eram agudizadas pela perspectiva de um Congresso
que se previa fraturante. Acresce-se a isso o facto de Nicandro Barreto ter
sido o mentor e ideólogo de uma das teses a ser apresentadas durante o referido
Congresso. Recordo-me que o inquérito levado a cabo pela polícia judiciária
portuguesa incidiu muito sobre estes factos e interrogatórios efetuados a
algumas personalidades políticas na altura, atestam isso.
D: Até hoje a
família exige a realização da justiça sobre assassinato do seu pai, mas
infelizmente o Ministério Público não conseguiu nem sequer divulgar os
relatórios do inquérito. Acha que no desaparecimento físico estariam envolvidos
‘’tubarões’’ deste país, facto que levaria o Ministério Público a hesitar na
conclusão do processo?
NB: Não temos elementos que nos permitam tirar essas
conclusões. Contudo, os silêncios destas entidades são chocantes e presta-se efetivamente
a especulações de vária ordem, para além de não ajudar a estabelecer e manter
confiança do cidadão nas instituições judiciárias.
Por esse motivo, seria importante que o Ministério
Público divulgasse o relatório das investigações, quer o que foi elaborada pela
polícia judiciária portuguesa como também o que foi preparado pela polícia
judiciária guineense, como normal após um inquérito na consequência de um
homicídio. Não se compreende que passados 15 anos sobre um crime horrível, não
tenha sido assumida nenhuma posição oficial por parte das entidades judiciais
do nosso país.
D: Na
qualidade da filha mais velha, será que a senhora recorda ainda das
circunstâncias da morte do seu pai?
NB: Com certeza.
D: As novas
autoridades eleitas têm em perspectivas a realização de uma Conferência
Nacional de Reconciliação. A família Barreto estará disposta em perdoar os
autores físicos e morais que assassinaram o antigo Procurador-Geral da
República?
NB: Considero extremamente interessante a
perspectiva da realização de uma Conferência Nacional de Reconciliação.
Todavia, para que uma iniciativa desta natureza tenha sucesso e com ganhos
visíveis a nível da pacificação da sociedade, não poderá ser dissociada de um
elemento extremamente importante: justiça. A reconciliação faz-se com as partes
envolvidas devidamente identificadas: as vítimas e os carrascos. É
imprescindível que estes últimos confessem o crime e as respectivas motivações,
sem o qual as vítimas não poderão decidir se estão despostas a perdoar os seus
algozes. A reconciliação não se decreta, tem que partir de um processo de
aceitação e exposição do culpado, que deverá solicitar o perdão as suas vítimas
e não o contrário. Também é importante que o processo de reconciliação não
reforce o sentimento de impunidade existente. Quem cometeu crime deverá pagar
por ele.
A medida da pena é que poderá ser atenuada em função
do arrependimento manifestado. Em todos os processos de reconciliação
experimentados, sendo os mais conhecidos os da África do Sul, Ruanda e de
Marrocos, não houve perdão sem a confissão e o reconhecimento da culpa.
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