Criada em 1967, a Rádio Libertação foi
crucial para difundir os ideais do Partido Africano para a Independência da
Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Amélia Araújo, locutora das emissões em português,
era a voz mais conhecida.
"Camaradas e ouvintes, atenção:
dentro de momentos poderão ouvir a Mensagem de Ano Novo que o nosso
secretário-geral, camarada Amílcar Cabral, dirige a todos os camaradas e
compatriotas da Guiné e Cabo Verde.”
Era assim que, há mais de 41 anos,
Amélia Araújo anunciava na Rádio Libertação a Mensagem de Ano Novo de 1973 de
Amílcar Cabral, o fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC).
A locutora das emissões em português era
uma das principais vozes da rádio do PAIGC. Aos microfones da emissora, em
Conacri, a angolana de origem cabo-verdiana leu muitos textos de Cabral a
denunciar "a política enganosa dos colonialistas portugueses".
As primeiras experiências radiofónicas
começaram em 1964, com a ajuda do marido, o cabo-verdiano José Araújo,
dirigente do PAIGC e responsável pela área de informação. Mas o emissor que
tinham "era muito fraco e não chegava convenientemente à Guiné nem a Cabo
Verde", conta a locutora.
"Foi assim que começámos, com um
pequeno emissor russo e um gravador Grundig, velho, a que às vezes tínhamos de
dar socos para funcionar! Mas tudo isso era maravilhoso porque conseguíamos
fazer as coisas assim mesmo", recorda.
Expansão
do crioulo
Em 1966, Amélia Araújo e quatro
companheiros guineenses foram enviados por Amílcar Cabral para uma formação de
nove meses na União Soviética.
Um ano depois, a Suécia oferece-lhes um
emissor e um estúdio. "E a partir daí criamos a Rádio Libertação, já com
condições excecionais de trabalho para aquela época", sublinha a voz mais
conhecida da Rádio Libertação.
As emissões começaram oficialmente no
dia 16 de julho de 1967. Inicialmente eram apenas 45 minutos por dia, divididos
em períodos de 15 minutos.
A programação era variada. Um dos
programas que a locutora considerava importante era o programa em crioulo, que
todos ou quase todos entendiam. "Porque a luta também serviu para unir
linguisticamente todas as etnias da Guiné. O crioulo expandiu-se e toda a gente
começou a falar crioulo", conta.
Além do crioulo e do português, a rádio
também emitia nas línguas balanta, fula, mandinga e beafada.
"O
meu país é a Madeira!"
O "Programa do Soldado
Português" era uma das produções mais famosas da Rádio Libertação. Emitido
na língua de Camões e com locução de Amélia Araújo, o programa incitava os
militares lusos à resistência e à revolta. Era uma espécie de "guerra
psicológica" com efeito desmoralizador.
"Acho que o programa teve muito
impacto no seio do Exército português porque nós chamávamos a atenção para
aquela guerra que não era nada deles, que não tinha a ver com eles, que não era
da terra deles. Estavam a morrer à toa", lembra.
Houve uma altura em que começaram a
desertar soldados, "inclusive oficiais", sublinha "Maria
Turra", como Amélia Araújo também era conhecida entre os militares
portugueses. "Turra" era o termo usado pelos portugueses para
designar os guerrilheiros independentistas.
A locutora chegou a entrevistar um
soldado da Madeira que desertou, a quem perguntou se considerava que aquela
guerra era justa. “Não acho que seja justa, mas mandaram-me para cá",
disse o militar.
Amélia Araújo argumenta então que se um
país estrangeiro invadisse Portugal, nesse caso ele teria toda a legitimidade
de defender o seu país. "O meu país é a Madeira! Não tem nada a ver com
Portugal", respondeu o soldado.
"Coitado, ele era analfabeto. Era
uma pessoa muito simples", explica a locutora. O português também não
queria acreditar que Amélia Araújo fosse a famosa "Maria Turra".
"Você não vê que não sou portuguesa? Olhe para mim!", Respondeu
Amélia Araújo.
"Comunicado
de Guerra"
Outra produção de grande impacto da
Rádio Libertação era o programa "Comunicado de Guerra". Diariamente,
eram anunciados os combates ocorridos nas diversas frentes, as vitórias ou as
derrotas de ambos os lados. E também eram divulgadas as listas de soldados
lusos mortos que eram publicadas por jornais portugueses.
"Éramos três pessoas a ler os
nomes. Era eu, o António Mascarenhas, que foi Presidente da República, e o
Arnaldo Araújo. Juntávamo-nos os três e líamos alternadamente. Uma lista de dez
ou vinte pessoas parecia uma lista de 40", relata a locutora. E isso,
acrescenta, "impressionava muito os soldados portugueses e fazia-os pensar
sobre o porquê de estarem a morrer ingloriamente."
A emissora dava grande destaque aos
momentos decisivos do PAIGC. Divulgava o hino do partido, as viagens de Amílcar
Cabral, os apoios externos à causa da libertação. E era através da rádio que as
mensagens de revolução chegavam ao povo guineense e cabo-verdiano.
"A rádio teve um papel importante
em relação à luta armada no interior da Guiné. Porque as mensagens chegavam, as
várias frentes de combate sabiam o que se passava nesta, naquela ou na outra
frente", recorda Amélia Araújo.
"Amílcar Cabral até dizia que a Rádio
Libertação era o canhão de boca da nossa luta." O fundador do PAIGC era um
dos principais colaboradores da emissora do partido.
"Locução
como deve ser"
Na Rádio Libertação também havia espaço
para a colaboração dos mais novos. "Blufo" era o programa dirigido a
crianças e jovens e tinha como locutores alunos da Escola-Piloto do PAIGC.
Entre eles estava a cantora
cabo-verdiana Teresa Araújo, filha de Amélia Araújo. Sempre que podia sair do
internato, aproveitava a oportunidade para estar com a mãe. A antiga aluna da
Escola-Piloto do PAIGC gostava de ver como a mãe tratava das bobines e reparava
as fitas.
Amélia Araújo também dava uma ajuda à
filha e aos colegas com os textos em português. "Mandava-nos ler e fazia
as correções necessárias para podermos fazer a locução como deve ser",
lembra Teresa Araújo.
De dia, Amélia Araújo trabalhava no
secretariado do partido. À noite, dedicava-se à rádio. "Dormia muito
pouco, mas naquela altura não sentia falta, tal era o entusiasmo!",
afirma.
A
voz da luta
Para o ex-ministro cabo-verdiano Carlos
Reis, "Amélia Araújo foi uma mulher fundamental para a luta de
libertação" nacional. "Era a voz da luta através da Rádio
Libertação", diz.
"Toda a gente conhecia, tinha de
conhecer a Amélia Araújo. Geralmente conhecia-se primeiro a voz e depois é que
se conhecia a pessoa", conta o antigo combatente e histórico do PAIGC.
O que era então anunciado na rádio
continua ainda bem presente na memória da antiga locutora, hoje com 80 anos.
"'Esta é a Rádio Libertação, a voz
do povo da Guiné e de Cabo Verde em luta'", recorda Amélia Araújo.
"Depois havia uma música e eu dizia assim: 'Nós não lutamos contra o povo
português. Lutamos sim para libertar a nossa terra do jugo colonial
português'." Com o dw
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