Crónica de Anselmo Borges, no Diário de Notícias
Quando comparamos o ser humano e os
outros animais, notamos que a linguagem é característica decisiva dos humanos.
Já no século XVIII se deu essa compreensão, pois encontramos inclusivamente
caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco:
"Fala, e eu baptizo-te." Se falasse, era humano. Evidentemente, esta
fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem.
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o
mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos,
comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só
podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na história.
O homem, pelo facto de ser "zôon
lógon échon", animal que tem logos (razão e linguagem), é também
"zôon politikón", animal social, político, diferentemente do animal,
que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na
Política: "A razão de o homem ser um ser social, mais do que qualquer
abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o homem, entre os animais,
possui a palavra." E continua: "A voz é uma indicação da dor e do
prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra
existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o
injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de
modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais
apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a
cidade."
A linguagem humana não se reduz à
expressão emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de
distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente
estas apreciações. Deste modo, a linguagem está na base da ética e funda
eticamente a pólis (a cidade, no sentido da vida política).
Percebe-se assim que o ser humano é
constitutivamente dialogante. Aliás, o que é, logo à partida, pensar senão
falar consigo mesmo? Damos tantas vezes connosco a falar connosco - isso mesmo,
a dialogar connosco no mais íntimo de nós, quando precisamos de deliberar e
vamos apresentando razões a favor e razões contra uma determinada tomada de
posição. Eu próprio, escrevendo o que aí fica, vou dialogando comigo.
Precisamos de falar connosco, mas, para
isso, é necessário ouvir a Palavra primeira que fala no silêncio. Onde é que se
acendem as nossas palavras senão nessa Palavra primeira? Ora, essa Palavra
originária é o próprio Deus. Não diz a Bíblia que Deus tudo criou pela Palavra?
Então, Deus fala através da criação e de todas as criaturas. Precisamos de
ouvi-lo. Rezar é isso: ouvir Deus e falar com ele.
É preciso falar, dialogar em família.
Quando o diálogo morre numa família, o amor vai esmorecendo e caminhando também
para a morte. Mas hoje, desgraçadamente, parece que não há tempo para dialogar
em família, porque o barulho das televisões toma conta de tudo. E os telemóveis
e quejandos, meu Deus! Já se diz que a Última Ceia do século XXI representa
Jesus com as mãos à cabeça, aflito, porque os Apóstolos estão todos entretidos
a olhar e a "dedar" entusiasmados nos seus smartphones!...
Quem não ouve a Palavra que fala no
Silêncio pode produzir tempestades de palavras, mas elas são ocas ou até
perniciosas. Porque então a palavra já não existe para "manifestar o
conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto". Ora, não é
isso que frequentemente se passa nas campanhas eleitorais e nos Parlamentos? E
também em muitas homilias de padres e bispos e discursos de todo o género? Como
faz falta a palavra poética, criadora, revigoradora e que cura! Ah, sim, pela
palavra animamos alguém, damos-lhe força, esperança, abrimos-lhe futuro. Com
uma palavra podemos "matar" alguém, destruir-lhe a vida. Por exemplo,
um professor que diz a um jovem: não fará nada na vida, nunca conseguirá fazer
a minha "cadeira"...
Tudo fica abalado, quando os sofistas e
a sofística tomam conta do espaço público e privado. Nunca mais se vai ao
essencial. E tudo se agrava agora com a ameaça da banalização total das redes sociais.
Para isso chama a atenção um comentário aceso e paradigmático de Umberto Eco,
pouco antes de morrer: "As redes sociais concedem o direito de palavra a
legiões de imbecis que antes falavam só no bar depois de um copo de vinho, sem
danos para a colectividade. Eram imediatamente remetidos ao silêncio enquanto
agora têm o mesmo direito de palavra de um prémio Nobel. Assistimos à invasão
dos imbecis." Já Pascal, nos Pensamentos, se queixava: "... toda a
desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não saber permanecer em
repouso num quarto."
É preciso rezar com Sophia de Mello
Breyner: "Deixai-me com as coisas/ Fundadas no silêncio."
PS: Perguntam-me sobre o que penso
quanto à eutanásia. Já aqui me pronunciei suficientemente sobre esta questão
tão dramática como complexa. Desenvolverei o tema no meu livro Desafios à
Igreja e ao Mundo de Francisco no Século XXI, que será publicado no próximo mês
de Abril. Para já, adianto dois pontos:
1. Não há legitimidade para votação
nesta legislatura, pois os partidos não colocaram o tema e o que pensam sobre
ele nos seus programas eleitorais.
2. Após sério, aprofundado, amplo,
esclarecido e esclarecedor debate, sou favorável a que se proceda a um
referendo. Não percebo porque é que se tem medo de referendar um tema tão grave
e delicado como a eutanásia, cuja aprovação legal implicaria uma mudança de
paradigma civilizacional. E há perguntas prévias, como: o que é que valem a
Constituição da República Portuguesa e a deontologia médica?
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.