Crónica de Anselmo Borges, no Diário de Notícias
"Não se pode compreender nada
actualmente, passando ao lado das revoluções tecnológicas."
Embora pouco debatido, está em marcha
todo um projecto para modificar o homem, no limite, pensando até na
imortalidade, e cientistas trabalham nele, com o apoio financeiro de grandes
grupos, como o Google, que tem em Raymond Kurzweil, um génio informático, autor
de The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology, o seu mais afirmado
profeta. É, pois, relevante que o filósofo Luc Ferry, que já foi ministro da
Educação em França, venha, numa obra exigente e pedagógica, La Révolution
Transhumaniste, alertar para a urgência da reflexão sobre tão complexa
temática: "Não se pode compreender nada actualmente, passando ao lado das
revoluções tecnológicas."
1. O transhumanismo, explica Ferry, é um
filho da terceira revolução industrial, a do digital e das NBIC:
nanotecnologias, biotecnologias, informática, ciências cognitivas, isto é,
ciências do cérebro e inteligência artificial. Tem três características
fundamentais: a passagem de uma medicina terapêutica a uma medicina de
"aumento", concretamente através da engenharia genética e da
hibridação (um exemplo: mediante um implante, ficar com uma visão de águia);
passagem do acaso à escolha, "from chance to choice", da lotaria
genética a um eugenismo; o aumento da vida humana, lutando contra o envelhecimento
e a morte (a Universidade de Rochester já aumentou em 30% a vida de ratos
transgénicos). Numa palavra: avançar para "homens aumentados".
2. No cruzamento da "convergência
NBIC", em simbiose e mútua fecundação exponencial, resultará um avanço
prodigioso na investigação e na técnica, de consequências imprevisíveis. Assim,
por exemplo, na sua obra brilhante e desafiadora De Animais a Deuses, agora
best-seller mundial com o título Sapiens, com mais de um milhão de exemplares
vendidos, o historiador Yuval Harari não hesita em dar como título ao último
capítulo "O fim do Homo sapiens", escrevendo: "Os futuros
senhores da Terra serão, provavelmente, mais diferentes de nós do que nós somos
dos neandertalenses. Isto atendendo a que nós e os neandertalenses somos, pelo
menos, humanos e os nossos herdeiros serão semelhantes a deuses."
E dá exemplos do que está e pode vir a
acontecer. Os laboratórios começam a superar as leis da selecção natural, e aí
está o caso de um coelho verde e fluorescente. Já mudamos o género de um ser
humano através da cirurgia e de tratamentos hormonais. Com a engenharia
genética, produziremos porcos com gorduras boas e poderemos pensar em
"ressuscitar" criaturas extintas, incluindo um neandertalense,
conseguindo talvez desse modo, comparando o seu cérebro com o nosso,
"identificar que alteração biológica resultou na consciência". Com
ela e outras formas de engenharia biológica pode pensar-se em realizar
alterações profundas na nossa fisiologia, no sistema imunitário, na esperança
média de vida, nas nossas capacidades intelectuais e emocionais. Se é possível
criar ratos superinteligentes, "porque não seres humanos superinteligentes
e que se mantenham fiéis aos seus parceiros?" E poder-se-á pensar na
criação de "um tipo de consciência completamente novo e transformar o Homo
sapiens em algo diferente", parecendo inclusivamente "não existir uma
barreira técnica intransponível que nos impeça de criar super-humanos".
Existe uma outra tecnologia que poderia alterar as leis da vida: a engenharia
cyborg: "Os cyborgs são seres que conjugam componentes orgânicos e
inorgânicos, como um humano com mãos biónicas" - pense-se no ouvido
biónico, em braços biónicos, controlados pelo pensamento, ou em invisuais
obtendo uma visão parcial. Talvez possamos um dia "ler a mente de outra
pessoa". "O mais revolucionário é a tentativa de inventar uma
interface de duas vias, directa do cérebro para o computador, que permita ao
aparelho ler os sinais eléctricos do cérebro humano, transmitindo, por outro
lado, sinais que o cérebro, por sua vez, também possa ler. E se essas
interfaces forem usadas para ligar directamente um cérebro à internet ou ligar
directamente vários cérebros uns aos outros, criando desse modo uma espécie de
internet cerebral? O que poderia acontecer à memória, à consciência e à
identidade humanas, se o cérebro tivesse acesso directo a um banco de memória
colectiva?" E há programadores que "sonham criar um programa que
possa aprender e evoluir de forma absolutamente independente do seu
criador". "Suponha que podia fazer um backup do seu cérebro para um
disco rígido portátil e, depois, fazê-lo correr num computador. Seria o seu
computador capaz de pensar e sentir como um sapiens? Se pudesse, seria o leitor
uma outra pessoa?" E, se os programadores informáticos pudessem
"criar uma mente inteiramente nova, mas digital, criada por código
informático, integral, com sentido de si própria, consciência e memória",
estaríamos perante uma pessoa? O director do Blue Brain Project afirmou que
numa ou duas décadas poderemos ter "um cérebro humano artificial, dentro
de um computador, que poderá falar e comportar-se como um humano".
3. Que fazer? Perante tamanhos desafios,
embora alguns, segundo parece, não vão além da ciência ficção, não se pode
ficar indiferente. E lá está Luc Ferry, exigindo "uma regulação que deve
ser política". E reflexão ética.
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.