1-
Perante o horror todo do mundo, guerras e cidades a desmoronar-se, crianças a
jorrar sangue e a gritar de dor ao colo de pais perdidos e a fugir não sabem
para onde, violações, crucifixões, fome e mortes, terror e impotência, a
palavra que sobe à mente: "Um calvário!" Às vezes, vêm ter comigo
pessoas destroçadas e contam e contam e contam. destroçadas: "Sabe? A
minha vida tem sido um calvário." E parte-se-me a alma.
2-
Hoje, Sexta-Feira Santa, o que se lembra é o calvário de Cristo e, nele, os
calvários todos da história. Perante o horror da morte a aproximar-se, diz o
Evangelho que Jesus "começou a sentir-se apavorado e a angustiar-se"
e rezava: "Meu Pai, tudo te é possível, afasta este cálice de mim. Mas
faça-se não o que eu quero, mas sim o que Tu queres." E morreu, gritando
esta oração: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?"
3-
Segundo a fé cristã, não faz sentido lembrar a Sexta-Feira Santa sem a
esperança da Páscoa. Os discípulos viveram na perplexidade e angústia o
calvário de Cristo. Foi lentamente que, reflectindo em tudo quanto tinham
vivido com Jesus, e meditando sobre a sua vida, a sua mensagem, o modo como se
dirigia Deus - Amor incondicional, Pai e Mãe -, o modo como se relacionou com
todos, o modo como se dirigiu para a morte, fizeram a experiência de fé de que
esse Jesus não morreu para o nada, mas para dentro da plenitude da vida em
Deus. Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos e da Vida. Essa experiência
foi tão intensa e avassaladora que disso deram testemunho até à morte.
4-
Segundo Ernst Bloch, o ateu religioso que tive o privilégio de conhecer em
Tubinga, o cristianismo "venceu em grande parte graças à proclamação de
Cristo: "Eu sou a Ressurreição e a Vida". Imperava então um desespero
apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado
contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta ou
cem anos (porque não cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da
morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa
existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última
instância, não nos resta nada?"
5-
Pergunta inquietante e inelutável: porque temos de morrer? E, se é inevitável,
que atitude tomar perante essa certeza da morte? Será que vivemos simplesmente
para morrer e ficar mortos, definitivamente mortos para sempre? Aparentemente,
é assim. Mas, depois, erguemo-nos desde o mais fundo de nós, protestando e com
esperança. Lá está Unamuno agarrando-se à vida e a gritar: "O meu eu, o
meu eu, ai que me arrebatam o meu eu!" J. A. Pagola lembra uma palavra
sóbria e honrada do escultor Eduardo Chillida: "Quanto à morte, a razão
diz-me que é definitiva. Quanto à razão, a razão diz-me que é limitada." E
é legítimo esperar, tal é a força que impulsiona a viver e viver sempre. Ou
será tudo contraditório e absurdo? Sim, na morte, a evidência é o cadáver, mas
quem se contenta com o cadáver?, perguntava também Ernst Bloch.
6-
Enquanto formos mortais, havemos de perguntar por Deus, concretamente ao pensar
nas vítimas inocentes. Como escreveu o agnóstico M. Horkheimer, um dos
fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, "se tivesse de descrever a
razão por que Kant se manteve na fé em Deus, não saberia encontrar melhor
referência do que aquele passo de Victor Hugo: uma anciã caminha pela rua. Ela
cuidou dos filhos, e colheu ingratidão; trabalhou, e vive na miséria; amou, e
vive na solidão. E, no entanto, está longe de qualquer ódio e rancor, e ajuda
onde pode... Alguém vê-a caminhar e diz: Ça doit avoir un lendemain!... Porque
não foram capazes de pensar que a injustiça que atravessa a história seja
definitiva, Voltaire e Kant postularam Deus - não para eles mesmos".
7-
Eu tive uma aluna muito inteligente, que é ateia. Na sua abertura de espírito,
convidou-me uma vez para ir dar uma aula à sua universidade sobre Deus, a
religião, a esperança. Depois, fomos jantar e voltámos a falar sobre a morte e
a esperança. E ela: morremos, como é natural, como um gato também morre. E eu
relembrei-lhe a Escola Crítica de Frankfurt e as vítimas inocentes e todos
aqueles que morreram sem viver, esmagados pela violência, pela fome, pela
guerra; há uma dívida de justiça para com essas vítimas - quem pagará essa
dívida? E continuámos a falar sobre tanta coisa... Já noite dentro, na
despedida, ela atirou: sim, para esses, aqueles e aquelas de que falou, ao
menos para esses deveria haver alguma coisa...
Uma
exigência moral. Mas, afinal, "esses", de uma maneira ou outra, somos
nós todos.
8-
No meio da perplexidade, fico com Kant: "A balança do entendimento não é
completamente imparcial, e um braço da mesma com o dístico "esperança do
futuro" tem uma vantagem mecânica que faz que mesmo razões leves que caem
no seu respectivo prato levantem o outro braço que contém especulações em si de
maior peso. Esta é a única incorrecção que eu não posso eliminar e que eu na
realidade não quero abandonar."
9-
Perante "a dramática ponderação entre o sim e o não", um filósofo
grande de base kantiana, o jesuíta José Gómez Caffarena, teve uma razão
decisiva para inclinar a balança para o sim: Jesus de Nazaré. E, assim, deixou
escrito, na sua obra monumental, O Enigma e o Mistério: "O cristianismo
teve o imenso acerto de apresentar-se como a tradição de um ser humano que
enfrentou o mal com enorme dor, mas com prevalente esperança."
Recentemente, também Hans Küng, o teólogo rebelde e o mais crítico do século
XX, já próximo do seu próprio fim, disse que, para ele, morrer é
"descansar no Mistério da Misericórdia de Deus". Assim acredito eu
também.
Por decisão pessoal, o autor do texto
não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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