Crónica de Anselmo Borges, no Diário de Notícias
A história da humanidade é feita de
êxitos e fracassos, avanços e recuos, conquistas e derrotas, guerras e algum
tempo de paz, esperanças e ameaças.
A novidade das ameaças, hoje, é que são
globais. Numa obra lúcida, acessível, L"Humanité. Apothéose ou
apocalypse?, com contributos de pensadores de vários horizontes e dando uma
panorâmica do que está em jogo no século XXI, J.-L. Servan-Schreiber, optimista
quanto ao futuro, apresenta também algumas dessas ameaças, obrigando a
reflectir. Sintetizo.
1. Aquecimento global. Uma ameaça que
todos têm presente: o aquecimento climático. Apesar da oposição de Trump e de
as medidas concretas não serem suficientes, cresce a consciência do problema,
que é realmente dramático.
2. Excesso de população. E a questão é
que o crescimento da população se dará sobretudo nas regiões mais pobres,
desencadeando ondas de emigrantes a fugir da miséria. Por outro lado, o
envelhecimento das populações trará problemas explosivos para a saúde.
3. A falta de água potável. Consequência
inevitável da explosão demográfica em certas zonas do mundo, desencadeando
guerras para o seu controlo.
4. Esgotamento haliêutico. Pensa-se que
a pesca excessiva, consequência da predação marítima industrializada, já acabou
com cerca de 90% dos peixes comestíveis nos oceanos.
5. Fome. À escala planetária seria
possível em princípio alimentar a maior parte das pessoas, mas "alguns
países demasiado pobres, com governos corruptos, sobretudo na África subsaariana,
estão à mercê de uma conjuntura climática desastrosa ou conflitos que
desorganizarão a sua cadeia alimentar".
6. Desertificação. A superfície dos
desertos, que "já ultrapassa 25% das terras emersas", aumentará
rapidamente por causa da combinação do aquecimento climático e da destruição
dos solos férteis pela acção humana.
7. Miséria. 1,5 mil milhões de pessoas
vivem hoje em condições inumanas. O crescimento ainda rápido da população fará
aumentar o seu número nos países mais pobres. Nos mais desenvolvidos, "as
crises económicas multiplicam os sem-domicílio-fixo".
8. "Favelização". Dentro de
trinta anos, a urbanização atingirá 85% da população mundial, com a
consequência de megalópoles não geríveis e massas de pessoas a viver em
tugúrios insalubres.
9. Migrações incontroláveis. Já se pode
antever na presente situação da Europa o que poderá vir a acontecer a nível
mundial: com o excesso de população, o aquecimento global e a desertificação,
vamos assistir a multidões de migrantes desenraizados e mal acolhidos por todo
o lado.
10. "Democraturas" e
populismos. Metade das nações não vive em democracia política, mas em regimes
de "democratura" (junção de democracia e ditadura). Nos nossos
países, "as derivas populistas, xenófobas ou policiais alimentam-se das
crises migratórias e dos temores de pauperização entre as classes médias".
11. Terrorismos. Prosseguirão de modo
metódico matanças indiscriminadas por terroristas desesperados. "O
sentimento de insegurança dá a volta ao mundo e intensifica regressões
políticas."
12. Disseminação das armas de massa.
"Armas hiperdestruidoras, nucleares e biológicas, tornam-se cada vez mais
fáceis de fabricar." Podemos, pois, antever chantagens de mafiosos e
fanáticos, ao lado do terrorismo actual.
13. Holocausto nuclear. A possibilidade
de aniquilação da humanidade está cada vez mais presente. Suponhamos armas
nucleares nas mãos de grupos terroristas e proliferação nuclear em países
instáveis.
14. "Singularidade"
tecnológica. É toda a problemática do transumanismo e do pós-humanismo, com as
NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências
cognitivas, ciências do cérebro) e a IA (inteligência artificial) forte -
voltarei proximamente à questão. "Cientistas sérios anunciam que, antes de
meados do século, o poder das máquinas interconectadas escapará aos humanos. As
consequências, até agora imprevisíveis, poderiam constituir a mais global das
ameaças, mas também a entrada numa era de potencialidades ilimitadas para o
bem-estar da espécie. Uma e outra são possíveis, pois cair-se-ia de repente no
totalmente inexplorado."
Nestes domínios, "a distância entre
o poder fulgurante das tecnologias e a irracionalidade dos que dele dispõem
constituirá o perigo dos perigos".
15. O ogro chinês. O centro de gravidade
da humanidade vira-se para o Oriente, com a China a tornar-se em breve a
primeira potência mundial. Consequências?
16. O fim do trabalho. Entre outras
consequências das novas tecnologias - pense-se na robotização crescente -, quem
tem pensado verdadeiramente no que vai significar uma sociedade sem trabalho? O
que antes poderia ser um sonho - viver sem ter de trabalhar - pode tornar-se um
pesadelo. "Realizar uma vida sem emprego remunerado e sem deprimir exigirá
tesouros de inventividade social. E um pôr em causa fundamentos da nossa ética.
Este poderia ser o maior desafio das democracias no século XXI."
17. Défice de sentido. O humanismo vive
hoje confrontado com um duplo desafio: o animalismo e o pós-humanismo.
Desgraçadamente, "a ciência agora progride à velocidade da luz enquanto a
sabedoria e o bom senso quase nada avançaram desde há cinco séculos."
Frente ao monopólio da razão
instrumental, com o materialismo e o consumismo, e o vazio existencial criado
pela falta de sentido, questão decisiva para o futuro é a do debate à volta da
finalidade humana e da transcendência.
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