O grupo de Jesus vive uma crise profunda,
depois do encontro de Cesareia de Filipe. Nem era para menos. Estava em jogo,
após a avaliação da primeira fase da vida pública, o sonho de grandeza dos
discípulos e o contraste que representa a resposta dada a Pedro, resposta
contundente. “Fica longe de mim, satanás! Não pensas nas coisas de Deus, mas
nas coisas dos homens”. E Pedro havia acertado em cheio: “Tu és o Messias”,
exclama num misto de ousadia e assombro. Tinha razões para ficar satisfeito. A
pergunta do Mestre: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” era bem respondida. Mas
ouve o que não esperava: O anúncio surpreendente que deixa desconcertados os
discípulos acompanhantes. A realização da missão vai passar por sofrer muito,
ser rejeitado, morto em Jerusalém e ressuscitar. Pedro, porta-voz do grupo, é
apanhado “em contra-mão” e reage de imediato. Chama Jesus à-parte e
repreende-O. E este, atira-lhe a doer.
A crise estava instalada. O desencontro de
perspectivas era notório, apesar de conviverem há tempos. Não estava em causa
ser Messias, o Salvador, mas o modo de realizar a missão. Modo que ainda hoje
se mantém. Em cada um de nós, na família, na Igreja, na sociedade. Como
realizar a missão que Deus nos confia? Com que critérios?
“Seis dias depois”, informa Marcos, o
narrador do relato. O tempo cronológico indica a intensidade psicológica e
espiritual da experiência vivida. Tempo suficiente para a crise ser digerida.
Tempo que termina com um acontecimento excepcional, a Transfiguração, de que
fala o evangelho de hoje (Mc 9, 2, 1-10). Jesus resolve antecipar um vislumbre
da sua Ressurreição. Toma consigo Pedro, Tiago e João. Sobe à montanha, o
Tabor. Transfigura-se. Faz brilhar as suas vestes com brancura inigualável.
Conversa com Elias e Moisés que, entretanto, lhe aparecem. É identificado por
uma voz que se faz ouvir com autoridade: “Este é o Meu Filho amado. Escutai o
que Ele diz!”.
Os três apóstolos vivem e expressam esta
experiência com intensidades várias que aparecem nas atitudes de Pedro, o rosto
do grupo: obedecem e sobam ao monte sem qualquer dissonância. Vêem o que
acontece. Sentem-se bem, apesar do medo. Entram na nuvem que os envolve.
Escutam a voz. Olham em redor e deparam-se apenas com Jesus a quem é preciso
ouvir/seguir. O caminho para Jerusalém é confirmado por Deus Pai. A paixão por
amor será o certificado. Nas aldeias e cidades. Em encontros de rua e refeições
de amigos e convidados. Em gestos de cura e recomendações de melhoria de vida.
Perante Anás e Caifás, perante Herodes e Pilatos, as autoridades religiosas e
políticas. No horizonte, sempre presente, está a garantia de que, por amor de
doação, tudo se enfrenta e supera. E a certeza definitiva surge vitoriosa na
manhã da Ressurreição.
O percurso geográfico constitui um símbolo
da peregrinação interior do grupo apostólico e de quem pretender, a sério, ser
discípulo de Jesus. Não nos aconteça como a Pedro. Seriamos cristãos mundanos,
com olhos postos em comodidades egoístas e vistosas, prontos a fazer arranjos
de conveniência, volúveis conforme as circunstâncias e a trocar a afirmação da
verdade pela mentira reincidente, bem ilustrada no episódio da negação no
pretório de Pilatos. O caminho fica bem indicado: Escutar Jesus e seguí-Lo.
Tendo como referência o percurso dos
discípulos, podemos apresentar alguns traços do nosso caminho espiritual.
Escutar sempre Jesus, mas sobretudo quando temos o nosso espírito nublado pelas
dúvidas e incertezas, pelas vozes gritantes na arena pública e pelos silêncios roedores
das redes sociais, pelos impulsos decorrentes da natureza descontrolada e pelos
sonhos cruzados da fantasia libertina. Ele é luz, paz, verdade.
Escutar Jesus, reconhecendo que a razão
humana apesar das suas aspirações legítimas, tem limites e pára às portas do
mistério que revela outros horizontes da vida. Os discípulos discutiam o que
queria dizer “ressuscitar dos mortos”. Esta discussão estará sempre em aberto.
Jesus, porém, indica-nos o caminho para a resposta certa. Indica, percorre e
faz, deixando a “porta” franqueada.
Escutar Jesus, valorizando a consciência
humana de toda a pessoa, independentemente da condição social ou étnica, e
ajudando-a a limpar de toda a interferência indevida para ser livre na sua
opção pela verdade do ser e do agir. Assim a dignidade natural de cada um/a
brilhará na sinfonia das criaturas e do universo. A melodia da cruz far-se-á
ouvir de novo na confiança filial: “Tudo está consumado!”.
As monjas de São Bento de Montserrat fazem
um bom resumo da mensagem do Evangelho da Transfiguração no seu PowerPoint
desta semana. Eis alguns pontos da sua reflexão. Com fé, podemos ver Jesus
transfigurado em cada pessoa. A luz é sempre mais forte do que as nossas
obscuridades. Transfigurar-nos é viver o Evangelho e ter olhos de profeta. Só
viveremos a Transfiguração, se aprendermos a levar uma vida transformada: da
indiferença à solidariedade e da amargura à alegria. Ver Jesus transfigurado é
preparar o escândalo de o ver desfigurado na cruz. A nossa missão é
reconfigurá-lo em cada rosto humano. É abraçar a paixão do amor como resposta à
sua doação incondicional por nós. Experimenta. Vale a pena.
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