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Frei Bento Domingues, no PÚBLICO
1. Nunca fui a Jerusalém. Um grande
amigo que lá viveu 45 anos e lá morreu, Frei Francolino Gonçalves, nunca tentou
convencer-me de que essa seria a peregrinação indispensável. Se não pudesse
dispor pelo menos de um mês para observar e estudar as suas loucuras e
contradições, era melhor não pôr lá os pés. Lamentava que as
"peregrinações paroquiais" se esquecessem de visitar e apoiar as
comunidades cristãs vivas, de língua árabe, e se fixassem apenas em pedras e
lugares sagrados da memória, resgatados pela arqueologia.
Li narrativas, reportagens e obras sobre
a chamada Terra Santa e os seus lugares de importância diferente para judeus,
cristãos e muçulmanos.
Sei que o conhecimento directo da
geografia dos acontecimentos bíblicos, históricos ou lendários, pode ajudar a
imaginação de um leitor da Bíblia. Não consigo, porém, entrar na ideologia dos
lugares sagrados ou santos. Esta facilmente resvala para a idolatria e para a
magia. Um bom negócio, em todo o mundo, contra o qual o próprio Jesus se
insurgiu. Sagradas são as pessoas de todos os povos e culturas. Nem acho graça
nenhuma que um povo, seja ele qual for, se possa chamar povo de Deus, como um
privilégio. Os outros povos de quem são?
Jesus teve um encontro inesperado com
uma Samaritana. Um encontro fantástico. Entre outras questões, ela procurou
tirar a limpo a dos lugares sagrados: os nossos pais adoraram neste Monte
(Garizim), mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar. Jesus, depois
de muitas considerações, concluiu: Vem a hora — e é agora — em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; pois tais são
os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem
adorá-lo em espírito e verdade [1]. Deus não está preso a nenhum lugar.
2. Começam hoje, Domingo de Ramos, as
celebrações católicas da Páscoa. Nesta época, as televisões repõem filmes sobre
a Paixão de Cristo, as instituições culturais promovem concertos de música
sacra e as igrejas cristãs, cada uma com o seu estilo, tentam que a mensagem de
Cristo não seja apenas uma memória do passado, mas um alimento transformante da
vida. Nada disso sai fora do previsível, mas o que desejava que acontecesse
seria um imprevisível concreto e para já: Paz em Jerusalém entre judeus,
cristãos e muçulmanos.
Nada disto é da ordem do impossível nem
está fora das referências e horizontes das chamadas religiões monoteístas. José
Ornelas Carvalho, actual bispo de Setúbal, escreveu um texto sobre A utopia da
paz na Bíblia que considero uma informação exemplar [2].
Em Israel, como em todo o antigo Médio
Oriente, o ideal da sabedoria e da aprendizagem consistia em conseguir uma vida
feliz, tendo em conta todas as dimensões da existência humana. Por isso, os
sábios tratavam dos mais variados assuntos, como as questões da alimentação, da
vida familiar, dos negócios, do relacionamento social, do cerimonial e do
relacionamento com o mundo de Deus. Sábia era a pessoa que conseguia harmonizar
todas estas dimensões da vida. Nesta perspectiva, o fruto da sabedoria é a paz.
O Salmo 122 não pode ser mais
entusiasta: "Que alegria quando me disseram vamos para a casa do Senhor!
Os nossos pés estão já às tuas portas, ó Jerusalém [...]. Nela estão os
tribunais da justiça, os tribunais da casa de David. Pedi a paz para Jerusalém:
Prosperem aqueles que te amam; haja paz dentro das tuas muralhas, tranquilidade
nos teus palácios. Por amor dos meus irmãos e amigos, proclamarei: a paz esteja
contigo! Por amor da casa do Senhor, nosso Deus, pedirei o bem-estar para
ti."
E os outros? Desta visão idílica, desta
ideologia da paz, como privilégio étnico e divino de um povo, nasce a guerra
santa contra os que a ameaçarem.
O ideal da paz institucional, baseado
nos dois pilares, a monarquia e o templo, foi manipulado pelos que dela
beneficiavam. Israel conheceu, muitas vezes, uma situação de ditadura —
defendida em nome de Deus — ao sacralizar as suas instituições políticas. Os
profetas como Miqueias, Jeremias e Ezequiel denunciaram aqueles que usavam o
nome de profetas para enganar o povo e justificar a injustiça. No entanto,
apesar de todos os esforços, Deus não se julgou atrelado ao destino de Israel e
da sua paz. Pelo contrário. A eleição de Deus não é nem ritual nem automática.
Ao dom de Deus deve corresponder um compromisso ético e religioso. Por isso,
bênçãos e maldições estão sempre misturadas.
3. Jesus de Nazaré subiu muitas vezes a
Jerusalém [3], a cidade dotada por Herodes, o Grande, de magníficas
construções, que não o fascinavam. Foi lá que, pela última vez, confrontou os
seus contemporâneos com a sua mensagem e a sua pessoa. Aí morreu crucificado.
Foi em Jerusalém que se formou a primeira comunidade cristã. Foi daí que a
pregação do Evangelho partiu para o mundo.
Foi também nesta cidade que se reuniu o
primeiro concílio da Igreja [4] para dirimir questões entre duas tendências do
movimento cristão. A que desejava que os gentios convertidos aceitassem também
a lei e os costumes judaicos e a outra, liderada por S. Paulo, que não podia
aceitar que para ser cristão fosse necessário adoptar essa lei e costumes. A
graça de Deus não fazia distinção de pessoas ou povos. Essas novas comunidades
mistas, de judeus e gentios, realizavam o começo do universalismo cristão. O
espírito de Jesus Cristo sentia-se livre e actuante em toda a Terra. O
cristianismo não era uma sucursal do judaísmo.
A partir do que foi acontecendo em
Antioquia, Éfeso e Roma, Jerusalém deixou de ser o centro do cristianismo [5].
Os muçulmanos chamam a Jerusalém
Al-Qods, "a santa" em árabe. Acreditam que foi lá que aconteceu a
ascensão de Maomé ao céu. Jerusalém é o terceiro lugar sagrado do Islão.
Aqui, surge uma questão que muitos
peregrinos levantam: é isto a "Terra Santa", é esta a cidade da paz?
Haverá um só Deus para tantas guerras?
As religiões que se reclamam de
Jerusalém, pelo menos nominalmente, representam dois mil milhões de habitantes
da Terra. O seu bom ou mau exemplo encerra uma responsabilidade mundial. Em vez
de judeus, cristãos e muçulmanos continuarem a disputar, pedaço a pedaço, a
ocupação desta cidade, não seria preferível estabelecerem uma aliança que faça
de Jerusalém a cidade da paz, um símbolo real de que o convívio amigo, entre as
religiões, é possível? Era, por isso, importante que a sua gestão municipal
resultasse de um acordo entre judeus, cristãos e muçulmanos [6]. Um sonho?
Santa Páscoa!
[1]
Jo 4
[2]
José Ornelas Carvalho, A Utopia da Paz na Bíblia, Cadernos ISTA n.º 9, Ano V,
2000, pp.62-102
[3]
Lc 13, 34s; Jo 2, 13. Sobre a situação de Jerusalém no tempo de Jesus,
aconselho a longa Introdução de Xavier Léon-Dufour, ao Dictionaire du Nouveau
Testament, Seuil, Paris, 1975
[4]
Act 15
[5]
Rm 15, 19
[6]
Álvaro Vasconcelos, Jerusalém cidade aberta, PÚBLICO, 10.12.2017
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