A verdade e as notícias falsasA mensagem do Papa para o 52.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que hoje se celebra, aborda duas questões atuais: “A verdade vos tornará livres” e “Fake news e jornalismo de paz”.Diz o Papa Francisco que «a comunicação humana é uma modalidade essencial para viver a comunhão», sabendo-se que «o ser humano é capaz de expressar e compartilhar o verdadeiro, o bom e o belo», mas ainda é capaz «de narrar a sua própria experiência e o mundo, construindo assim a memória e a compreensão dos acontecimentos». Contudo, se orgulhosamente seguir o seu egoísmo, o homem pode usar de modo distorcido a própria faculdade de comunicar».Debruçando-se sobre as notícias falsas, o Papa afirma que, no fundo, são desinformação, apoiadas em «informações infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos prefixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros económicos».O Santo Padre frisa que «O drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos. Deste modo, as notícias falsas revelam a presença de atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o ódio. É a isto que leva, em última análise, a falsidade.»Alertando-nos para a necessidade de cada um de nós contrastar estas falsidades, que «não é tarefa fácil», defende que «são louváveis as iniciativas educativas que permitem apreender como ler e avaliar o contexto comunicativo, ensinando a não ser divulgadores inconscientes de desinformação, mas atores do seu desvendamento». E acrescenta: igualmente louváveis são as iniciativas institucionais e jurídicas empenhadas na definição de normativas que visam circunscrever o fenómeno, e ainda iniciativas, como as empreendidas pelas tech e media company, idóneas para definir novos critérios capazes de verificar as identidades pessoais que se escondem por detrás de milhões de perfis digitais.»Citando Dostoevskij, frisa: «Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras, chega a pontos de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo nem ao seu redor, e assim começa a deixar de ter estima de si mesmo e dos outros. Depois, dado que já não tem estima de ninguém, cessa também de amar, e então na falta de amor, para se sentir ocupado e distrair, abandona-se às paixões e aos prazeres triviais e, por culpa dos seus vícios, torna-se como uma besta; e tudo isso deriva do mentir contínuo aos outros e a si mesmo.»Reafirmando que a paz é a verdadeira notícia, o Papa Francisco garante que «O melhor antídoto contra as falsidades não são as estratégias, mas as pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão prontas a ouvir e, através da fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a verdade; pessoas que, atraídas pelo bem, se mostram responsáveis».O Papa Francisco também propõe «um jornalismo que não se limite a queimar notícias, mas se comprometa na busca das causas reais dos conflitos, para favorecer a sua compreensão das raízes e a sua superação através do aviamento de processos virtuosos; um jornalismo empenhado a indicar soluções alternativas às escalation do clamor e da violência verbal».
Tema: «"A verdade vos tornará
livres” (Jo 8, 32). Fake news e jornalismo de paz» [13 de maio de 2018]
Queridos
irmãos e irmãs!
No projeto de Deus, a comunicação humana
é uma modalidade essencial para viver a comunhão. Imagem e semelhança do
Criador, o ser humano é capaz de expressar e compartilhar o verdadeiro, o bom e
o belo. É capaz de narrar a sua própria experiência e o mundo, construindo
assim a memória e a compreensão dos acontecimentos. Mas, se orgulhosamente
seguir o seu egoísmo, o homem pode usar de modo distorcido a própria faculdade
de comunicar, como o atestam, já nos primórdios, os episódios bíblicos dos
irmãos Caim e Abel e da Torre de Babel (cf. Gn 4, 1-16; 11, 1-9). Sintoma
típico de tal distorção é a alteração da verdade, tanto no plano individual
como no coletivo. Se, pelo contrário, se mantiver fiel ao projeto de Deus, a
comunicação torna-se lugar para exprimir a própria responsabilidade na busca da
verdade e na construção do bem. Hoje, no contexto duma comunicação cada vez
mais rápida e dentro dum sistema digital, assistimos ao fenómeno das «notícias
falsas», as chamadas fake news: isto convida-nos a refletir, sugerindo-me
dedicar esta Mensagem ao tema da verdade, como aliás já mais vezes o fizeram os
meus predecessores a começar por Paulo VI (cf. Mensagem de 1972: «Os
instrumentos de comunicação social ao serviço da Verdade»). Gostaria, assim, de
contribuir para o esforço comum de prevenir a difusão das notícias falsas e
para redescobrir o valor da profissão jornalística e a responsabilidade pessoal
de cada um na comunicação da verdade.
1.
Que há de falso nas «notícias falsas»?
A expressão fake news é objeto de
discussão e debate. Geralmente diz respeito à desinformação transmitida on-line
ou nos mass-media tradicionais. Assim, a referida expressão alude a informações
infundadas, baseadas em dados inexistentes ou distorcidos, tendentes a enganar
e até manipular o destinatário. A sua divulgação pode visar objetivos
prefixados, influenciar opções políticas e favorecer lucros económicos.
A eficácia das fake news fica-se a
dever, em primeiro lugar, à sua natureza mimética, ou seja, à capacidade de se
apresentar como plausíveis. Falsas mas verosímeis, tais notícias são capciosas,
no sentido que se mostram hábeis a capturar a atenção dos destinatários,
apoiando-se sobre estereótipos e preconceitos generalizados no seio dum certo
tecido social, explorando emoções imediatas e fáceis de suscitar como a
ansiedade, o desprezo, a ira e a frustração. A sua difusão pode contar com um
uso manipulador das redes sociais e das lógicas que subjazem ao seu
funcionamento: assim os conteúdos, embora desprovidos de fundamento, ganham tal
visibilidade que os próprios desmentidos categorizados dificilmente conseguem
circunscrever os seus danos.
A dificuldade em desvendar e erradicar
as fake news é devida também ao facto de as pessoas interagirem muitas vezes
dentro de ambientes digitais homogéneos e impermeáveis a perspetivas e opiniões
divergentes. Esta lógica da desinformação tem êxito, porque, em vez de haver um
confronto sadio com outras fontes de informação (que poderia colocar
positivamente em discussão os preconceitos e abrir para um diálogo
construtivo), corre-se o risco de se tornar atores involuntários na difusão de
opiniões tendenciosas e infundadas. O drama da desinformação é o descrédito do
outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode
fomentar conflitos. Deste modo, as notícias falsas revelam a presença de
atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é
o risco de se dilatar a arrogância e o ódio. É a isto que leva, em última
análise, a falsidade.
2.
Como podemos reconhecê-las?
Nenhum de nós se pode eximir da
responsabilidade de contrastar estas falsidades. Não é tarefa fácil, porque a
desinformação se baseia muitas vezes sobre discursos variegados,
deliberadamente evasivos e subtilmente enganadores, valendo-se por vezes de
mecanismos refinados. Por isso, são louváveis as iniciativas educativas que
permitem apreender como ler e avaliar o contexto comunicativo, ensinando a não
ser divulgadores inconscientes de desinformação, mas atores do seu
desvendamento. Igualmente louváveis são as iniciativas institucionais e
jurídicas empenhadas na definição de normativas que visam circunscrever o fenómeno,
e ainda iniciativas, como as empreendidas pelas tech e media company, idóneas
para definir novos critérios capazes de verificar as identidades pessoais que
se escondem por detrás de milhões de perfis digitais.
Mas a prevenção e identificação dos
mecanismos da desinformação requerem também um discernimento profundo e
cuidadoso. Com efeito, é preciso desmascarar uma lógica, que se poderia definir
como a «lógica da serpente», capaz de se camuflar e morder em qualquer lugar.
Trata-se da estratégia utilizada pela serpente – «o mais astuto de todos os
animais», como diz o livro do Génesis (cf. 3, 1-15) – a qual se tornou, nos
primórdios da humanidade, artífice da primeira fake news, que levou às trágicas
consequências do pecado, concretizadas depois no primeiro fratricídio (cf. Gn
4) e em inúmeras outras formas de mal contra Deus, o próximo, a sociedade e a
criação. A estratégia deste habilidoso «pai da mentira» (Jo 8, 44) é
precisamente a mimese, uma rastejante e perigosa sedução que abre caminho no coração
do homem com argumentações falsas e aliciantes. De facto, na narração do pecado
original, o tentador aproxima-se da mulher, fingindo ser seu amigo e
interessar-se pelo seu bem. Começa o diálogo com uma afirmação verdadeira, mas
só em parte: «É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do
jardim?» (Gn 3, 1). Na realidade, o que Deus dissera a Adão não foi que não
comesse de nenhuma árvore, mas apenas de uma árvore: «Não comas o [fruto] da
árvore do conhecimento do bem e do mal» (Gn 2, 17). Retorquindo, a mulher
explica isso mesmo à serpente, mas deixa-se atrair pela sua provocação:
«Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore
que está no meio do jardim, Deus disse: “Nunca o deveis comer nem sequer tocar nele,
pois, se o fizerdes, morrereis”» (Gn 3, 2-3). Esta resposta tem sabor a
legalismo e pessimismo: dando crédito ao falsário e deixando-se atrair pela sua
apresentação dos factos, a mulher extravia-se. Em primeiro lugar, dá ouvidos à
sua réplica tranquilizadora: «Não, não morrereis» (3, 4). Depois a argumentação
do tentador assume uma aparência credível: «Deus sabe que, no dia em que
comerdes [desse fruto], abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus,
ficareis a conhecer o bem e o mal» (3, 5). Enfim, ela chega a desconfiar da
recomendação paterna de Deus, que tinha em vista o seu bem, para seguir o
aliciamento sedutor do inimigo: «Vendo a mulher que o fruto devia ser bom para
comer, pois era de atraente aspeto (…) agarrou do fruto, comeu»(3, 6). Este episódio
bíblico revela assim um facto essencial para o nosso tema: nenhuma
desinformação é inofensiva; antes pelo contrário, fiar-se daquilo que é falso
produz consequências nefastas. Mesmo uma distorção da verdade aparentemente
leve pode ter efeitos perigosos.
De facto, está em jogo a nossa avidez.
As fake news tornam-se frequentemente virais, ou seja, propagam-se com grande
rapidez e de forma dificilmente controlável, não tanto pela lógica de partilha
que carateriza os meios de comunicação social como sobretudo pelo fascínio que
detêm sobre a avidez insaciável que facilmente se acende no ser humano. As
próprias motivações económicas e oportunistas da desinformação têm a sua raiz
na sede de poder, ter e gozar, que, em última instância, nos torna vítimas de
um embuste muito mais trágico do que cada uma das suas manifestações: o embuste
do mal, que se move de falsidade em falsidade para nos roubar a liberdade do
coração. Por isso mesmo, educar para a verdade significa ensinar a discernir, a
avaliar e ponderar os desejos e as inclinações que se movem dentro de nós, para
não nos encontrarmos despojados do bem «mordendo a isca» em cada tentação.
3.
«A verdade vos tornará livres» (Jo 8, 32)
De facto, a contaminação contínua por
uma linguagem enganadora acaba por ofuscar o íntimo da pessoa. Dostoevskij
deixou escrito algo de notável neste sentido: «Quem mente a si mesmo e escuta
as próprias mentiras, chega a pontos de já não poder distinguir a verdade
dentro de si mesmo nem ao seu redor, e assim começa a deixar de ter estima de
si mesmo e dos outros. Depois, dado que já não tem estima de ninguém, cessa
também de amar, e então na falta de amor, para se sentir ocupado e distrair,
abandona-se às paixões e aos prazeres triviais e, por culpa dos seus vícios,
torna-se como uma besta; e tudo isso deriva do mentir contínuo aos outros e a
si mesmo» (Os irmãos Karamazov, II, 2).
E então como defender-nos? O antídoto
mais radical ao vírus da falsidade é deixar-se purificar pela verdade. Na visão
cristã, a verdade não é uma realidade apenas conceptual, que diz respeito ao
juízo sobre as coisas, definindo-as verdadeiras ou falsas. A verdade não é
apenas trazer à luz coisas obscuras, «desvendar a realidade», como faz pensar o
termo que a designa em grego: aletheia, de a-lethès, «não escondido». A verdade
tem a ver com a vida inteira. Na Bíblia, reúne os significados de apoio,
solidez, confiança, como sugere a raiz ‘aman (daqui provém o próprio Amen
litúrgico). A verdade é aquilo sobre o qual nos podemos apoiar para não cair.
Neste sentido relacional, o único verdadeiramente fiável e digno de confiança
sobre o qual se pode contar, ou seja, o único «verdadeiro» é o Deus vivo. Eis a
afirmação de Jesus: «Eu sou a verdade» (Jo 14, 6). Sendo assim, o homem
descobre sempre mais a verdade, quando a experimenta em si mesmo como
fidelidade e fiabilidade de quem o ama. Só isto liberta o homem: «A verdade vos
tornará livres» (Jo 8, 32).
Libertação da falsidade e busca do
relacionamento: eis aqui os dois ingredientes que não podem faltar, para que as
nossas palavras e os nossos gestos sejam verdadeiros, autênticos e fiáveis.
Para discernir a verdade, é preciso examinar aquilo que favorece a comunhão e
promove o bem e aquilo que, ao invés, tende a isolar, dividir e contrapor. Por
isso, a verdade não se alcança autenticamente quando é imposta como algo de
extrínseco e impessoal; mas brota de relações livres entre as pessoas, na
escuta recíproca. Além disso, não se acaba jamais de procurar a verdade, porque
algo de falso sempre se pode insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras. De
facto, uma argumentação impecável pode basear-se em factos inegáveis, mas, se
for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa
que apareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir
a verdade dos vários enunciados: se suscitam polémica, fomentam divisões,
infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e
madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade.
4.
A paz é a verdadeira notícia
O melhor antídoto contra as falsidades
não são as estratégias, mas as pessoas: pessoas que, livres da ambição, estão
prontas a ouvir e, através da fadiga dum diálogo sincero, deixam emergir a
verdade; pessoas que, atraídas pelo bem, se mostram responsáveis no uso da
linguagem. Se a via de saída da difusão da desinformação é a responsabilidade,
particularmente envolvido está quem, por profissão, é obrigado a ser
responsável ao informar, ou seja, o jornalista, guardião das notícias. No mundo
atual, ele não desempenha apenas uma profissão, mas uma verdadeira e própria
missão. No meio do frenesim das notícias e na voragem dos scoop, tem o dever de
lembrar que, no centro da notícia, não estão a velocidade em comunicá-la nem o
impacto sobre a audience, mas as pessoas. Informar é formar, é lidar com a vida
das pessoas. Por isso, a precisão das fontes e a custódia da comunicação são
verdadeiros e próprios processos de desenvolvimento do bem, que geram confiança
e abrem vias de comunhão e de paz.
Por isso desejo convidar a que se
promova um jornalismo de paz, sem entender, com esta expressão, um jornalismo
«bonzinho», que negue a existência de problemas graves e assuma tons melífluos.
Pelo contrário, penso num jornalismo sem fingimentos, hostil às falsidades, a
slogans sensacionais e a declarações bombásticas; um jornalismo feito por
pessoas para as pessoas e considerado como serviço a todas as pessoas,
especialmente àquelas – e no mundo, são a maioria – que não têm voz; um
jornalismo que não se limite a queimar notícias, mas se comprometa na busca das
causas reais dos conflitos, para favorecer a sua compreensão das raízes e a sua
superação através do aviamento de processos virtuosos; um jornalismo empenhado
a indicar soluções alternativas às escalation do clamor e da violência verbal.
Por isso, inspirando-nos numa conhecida
oração franciscana, poderemos dirigir-nos, à Verdade em pessoa, nestes termos:
Senhor,
fazei de nós instrumentos da vossa paz.
Fazei-nos
reconhecer o mal que se insinua em uma comunicação que não
cria
comunhão.
Tornai-nos
capazes de tirar o veneno dos nossos juízos.
Ajudai-nos
a falar dos outros como de irmãos e irmãs.
Vós
sois fiel e digno de confiança;
fazei
que as nossas palavras sejam sementes de bem para o mundo:
onde
houver rumor, fazei que pratiquemos a escuta;
onde
houver confusão, fazei que inspiremos harmonia;
onde
houver ambiguidade, fazei que levemos clareza;
onde
houver exclusão, fazei que levemos partilha;
onde
houver sensacionalismo, fazei que usemos sobriedade;
onde
houver superficialidade, fazei que ponhamos interrogativos
verdadeiros;
onde
houver preconceitos, fazei que despertemos confiança;
onde
houver agressividade, fazei que levemos respeito;
onde
houver falsidade, fazei que levemos verdade. Com a vatican
Amen.
Franciscus
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