1. Neste Domingo III do Tempo Comum
é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1,14-20. Não é a primeira
vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia
para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Marcos 1,9). Mas ainda
não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão,
portanto, dizeres importantes e programáticos.
2. Mas antes de ouvirmos, pela primeira
vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que
atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os
destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este:
«Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de
paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o
que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos
3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos
(Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para
traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo
é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos
1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos
1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Fica, portanto,
claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua
Igreja, são mensageiros que anunciam em voz alta a mensagem de que são
incumbidos. E é dito o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos
1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta
linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores
(discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho
[= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta
própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.
3. E aí está então o primeiro dizer de
Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai:
perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf.
de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai
sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o
Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da inciativa divina, Deus em ação, que
abre ao homem novas e belas perspectivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que
qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de
tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente
sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo
cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança. Uma
vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências,
mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em
nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus
dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no
Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus
não é um moralista, mas um Evangelizador.
4. Vem logo, para não se afastar da
fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» (Marcos 1,16-20).
Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus
viu Simão e André, Tiago e João, e chamou-os: «Vinde atrás de mim, e farei de
vós…». Espanta aquele «imediatamente» deixaram… e foram «atrás de» Jesus. Sem reticências
nem calculismos.
5. Perante o que nos é dado ver, uma
primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: Quem
pode dar uma ordem assim? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma
segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal
confiança?
6. «Jonas, o hebreu» (Jonas 1,9), bem
ouve o chamamento e a ordem de Deus para ir pregar contra Nínive, a cidade
inimiga (Jonas 1,1-2). À primeira vista, devia Jonas levar por diante a sua
missão com prazer, pois tratava-se de ir dizer à cidade inimiga que Deus tinha
decretado o seu fim. Mas Jonas não quer ir, e não é por sentir piedade de
Nínive. Bem pelo contrário. Jonas sabe que Deus é um Deus gracioso e
misericordioso (hannûn werahûm), que se arrepende do mal (Jonas 4,2). E Jonas
sabe também que, indo dizer a Nínive: «Ainda quarenta dias e Nínive será
destruída» (Jonas 3,4), os habitantes de Nínive mudarão a sua vida, o que
levará Deus a mudar também o seu plano e a não destruir a cidade. É porque sabe
tudo isto e quer mesmo que Nínive seja castigada, que Jonas não quer ir lá
pregar. Na verdade, apanha, no porto de Jafa, um navio que vai para Társis,
para ocidente e não para oriente, para fugir de Deus e da missão que Deus lhe
confiou (Jonas 1,3). Mas Deus é mais forte, e Jonas acaba, por vias travessas,
por ir parar a Nínive. É a contragosto que prega. E quando verifica que os
ninivitas se converteram, o que ele já sabia que iria acontecer, e que Deus
também amava Nínive, Jonas foi tomado por grande desgosto (Jonas 4,1), e pede
mesmo a Deus que lhe dê a morte (Jonas 4,3), pois a vida assim deixou de ter
sentido.
7. Vendo melhor as coisas, «Jonas, o
hebreu», está com certeza na viragem do século V para o século IV, época de
Esdras, que manda dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados
durante o Exílio ou após o regresso a Sião (Esdras 10; cf. Deuteronómio 7,3).
Com esta medida, que deve ter tido um enorme impacto na consciência judaica, os
conservadores como que cancelavam da sua história o catastrófico episódio do
Exílio, lançando uma ponte que ligava a nova época judaica directamente ao
antes do Exílio. A personagem Jonas incarna bem este Israel particularista e
míope, ao contrário do autor do Livro, que testemunha admiravelmente um
universalismo salvífico próximo já do espírito do NT. Jonas representa o
judaísmo fechado, que pensa que se salvará, fechando-se sobre si mesmo. Esta
tentação também afeta a Igreja, e também a nós, de tempos a tempos. Às vezes só
vemos inimigos ao redor, e amuralhamo-nos. Vistas as coisas do lado de um Deus
que ama a todos, só nos é permitido abrir todas as portas e a todos escancarar
o coração. Um coração inquinado asfixia e morre.
8. São Paulo diz bem, em tradução
literal: «O tempo (ho kairós) já está a enrolar as velas (synestalménos: perf.
pass. de sy(v)-stéllô)» (1 Coríntios 7,29). Entenda-se: o tempo da oportunidade
dada, da enchente da Palavra de Deus por nós já respondida ou ainda não, está a
chegar ao fim; já está a enrolar as velas como fazem os marinheiros quando a
embarcação se aproxima da terra. E ainda: «Passa, na verdade, o esquema (tò
schêma) deste mundo» (1 Coríntios 7,31). Bem entendido: «O (filme) que passa na
tela é este mundo!». Se assim é, devemos aprender a saber relativizar a maneira
como habitualmente nos agarramos às nossas ideias feitas e às coisas deste
mundo, desde o casamento, aos bens possuídos, aos negócios. Grande lição de São
Paulo em 1 Coríntios 7,29-31. A nossa vocação traduz-se na adesão ao Último,
que reclama o desprendimento do penúltimo, e um amor desmedido, e um ardor
desmedido, à maneira de São Paulo de quem, senão fosse Domingo, celebraríamos
hoje, dia 25 de Janeiro, a Festa da sua conversão.
9. O Salmo 25, que hoje fica a ecoar no
nosso pobre coração, mostra-nos um fino e delicado jogo de olhares entre o
orante fiel e um Deus sensibilíssimo, que olha para nós sempre com ternura
paternal, refúgio permanente para os pobres e pecadores. Deixo aqui a ressoar
as palavras da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa,
que viveu em Bassorá, no Iraque, e que, para responder à pergunta: «Como
chegaste a um grau tão elevado na vida espiritual?», respondeu: «Repetindo
ininterruptamente: “Meu Deus, refugio-me em ti para me defender de tudo o que
me distrai de ti, e de todo o obstáculo que se interpõe entre mim e ti”» (I
detti di Rabiʽa,
IV).
António Couto
Sem comentários :
Enviar um comentário
COMENTÁRIOS
Atenção: este é um espaço público e moderado. Não forneça os seus dados pessoais (como telefone ou morada) nem utilize linguagem imprópria.