Após o baptismo, Jesus dirige-se
imediatamente ao deserto. Mc 1, 12-15. Os Evangelhos mostram-nos o contraste
aqui ocorrido: Ele, que havia sido proclamado Filho de Deus é tentado na sua
condição divina para que mostre “o que vale e o que pode”. As obras seriam as
suas credenciais por excelência. O prestígio do poder, a ganância fácil da
economia, o pronto socorro da religião são-lhe propostos como caminhos de
realização da sua missão. A tentação sedutora tem como fundamento as apetências
humanas e como motivação próxima a prova de Jesus ser o Filho de Deus. Por isso
continua tão actual e a dominar muitos corações.
Jesus vence em toda da linha. Escolhe
outro caminho. Em vez do poder prefere o serviço obediente; da economia fácil e
açambarcadora a partilha fraterna de bens; da religião “a la carte” a aceitação
da palavra de Deus como guia seguro e libertador.
O deserto e a tentação surgem como
metáforas da realidade humana. Hoje, revestem as formas da nossa situação
histórica e social, da nossa cultura fragmentada e subjectivista, da nossa
economia precária e subjugada, da nossa religião predominantemente pendente do
gosto do “cliente” e das tradições.
O deserto instalou-se no coração humano
e da sociedade: As relações sociais quase se desvitalizam, o isolamento
solitário aumenta, qual sombra negra a coar a luz intermitente que ainda resta,
o individualismo egoísta e insolidário cresce como “feras indomadas”, o assédio
aos indefesos e humilhados instala-se, e prepara-se o assalto final para a
victória do “bezerro de ouro” – o ídolo do tempo de Moisés - sobre a pessoa e a
sua dignidade reconfigurada em Jesus Cristo, o vencedor absoluto da dizimadora
tentação. A indiferença ética generaliza-se.
A este propósito afirma o Papa
Francisco: “Deus nada nos pede, que antes não no-lo tenha dado: « Nós amamos,
porque Ele nos amou primeiro » (1 Jo4,19). Ele não nos olha com indiferença;
pelo contrário, tem a peito cada um de nós, conhece-nos pelo nome, cuida de nós
e vai à nossa procura, quando O deixamos”.
E a mensagem quaresmal intitulada «
Fortalecei os vossos corações» (Tg5,8) prossegue: “Interessa-Se por cada um de
nós; o seu amor impede-Lhe de ficar indiferente perante aquilo que nos
acontece. (…)
Quando o povo de Deus se converte ao seu
amor, encontra resposta para as questões que a história continuamente nos
coloca. (…) A Deus não Lhe é indiferente o mundo, mas ama-o até ao ponto de
entregar o seu Filho pela salvação de todo o homem”.
O deserto é também espaço de vitória.
Tantos homens bons e justos fazem da sua travessia um percurso solidário, um
tempo de atenção ao outro, de partilha de bens, de alento na esperança de
chegar ao oásis desejado, de advertência contra as falsas miragens, de
resistência paciente face à pressa ingénua de enveredar por atalhos, de alimentar
“o sonho que comanda a vida”.
Jesus vence a tentação e rasga
horizontes ao nosso peregrinar. Estamos em trânsito. A meta já se vislumbra.
Ele já a viveu na sua Páscoa. Para lá caminhamos seguindo os seus passos. A
isto nos convida o tempo quaresmal que a Igreja nos propõe e o Papa Francisco
tão vigorosamente nos apresenta.
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