1. Baptizado com o Espírito Santo
(Marcos 1,9-10), chamado pelo Pai «o Filho meu», «o Amado» (Marcos 1,11),
tentado durante quarenta dias no nosso deserto, mas superando a prova,
dominando pela doçura os animais e a nossa selvagem animalidade, Jesus
totalmente vinculado ao Pai, pois d’Ele é o Filho, o Amado, vincula-se também à
nossa humana condição e vincula-nos a Si («Vamos» [ágômen]: o mesmo dizer
vinculativo em Marcos 1,38, na hora da Missão, e Marcos 14,42, na hora da
Paixão), refazendo os nossos caminhos há muito por nós abandonados. O seu
caminho filial baptismal é agora também o nosso caminho.
2. O Evangelho de Marcos refere, de
facto, que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Marcos 1,37), e nos
levou consigo, na hora da Missão, a Anunciar o Evangelho de Deus pelos caminhos
da Galileia (Marcos 1,38), prolepse fantástica da inteira vida cristã,
discipular e apostólica: com Jesus nos caminhos da sua Missão, que passam
também pelo caminho da sua Paixão (Marcos 14,42). A locução «no caminho» (en tê
hodô), usada sobretudo na importante secção do seguimento de Jesus «no caminho»
(Marcos 8,27-10,52), fazendo-se aí ouvir por cinco vezes (Marcos 8,27; 9,33.34;
10,32.52), ajuda-nos a compreender ainda melhor que o discípulo de Jesus deve
aprender a «dizer vigorosamente não» (apernéomai) a si mesmo (Marcos 8,34),
expressão fortíssima empregada no texto grego de Isaías para dizer «desfazer-se
dos seus ídolos de ouro e prata» (Isaías 31,7), para fazer completamente seu o
mesmo caminho de Jesus.
3. É assim que chegamos ao Evangelho
deste Domingo II da Quaresma (Marcos 9,2-10), em que nos é mostrada, no meio do
caminho de Jesus, a cena extraordinária da Transfiguração de Jesus. A
iniciativa começa por ser de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tigo
e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto, mas passa logo para Deus com
o passivo divino ou teológico «foi transfigurado» (metemorphôthê: aoristo
passivo de metamorphéô) (Marcos 9,2). Não é narrada a figura de Jesus
transfigurado. Apenas se fala das suas vestes brancas de uma brancura não
terrena (Marcos 9,3). Fala-se também da «aparição» de Elias com Moisés (Marcos
9,4). Literalmente «fez-se ver» (ôpthê: aoristo passivo de horáô) autoîs) «a
eles» (autoîs). Trata-se de um passivo intransitivo, isto é, são Moisés e Elias
que se fazem ver. De per si, os nossos olhos não têm capacidade de ver tanto.
Por isso também, aquele «a eles» é gramaticalmente chamado um dativo do
beneficiário. É também desta maneira que são apresentadas as aparições de Deus
no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.
4. Em Marcos 9,5, Pedro reage a tanto
ver. Mas o seu dizer não se ajusta ao contexto, é manifestamente desapropriado.
Tendas terrenas não podem abrigar seres celestes. Por isso, certeiramente nos
diz o narrador que «não sabia o que dizia» (Marcos 9,6).
5. E eis o clímax do relato, com a
introdução de dois elementos divinos: a nuvem e a voz, símbolos rspectivamente
da presença velada de Deus e da sua transcendência (Êxodo 24,16). Da nuvem uma
voz, a voz de Deus, o único que sabe dizer bem o que se passa: «Este é o Filho
meu, o Amado» (Marcos 9,8). Notem-se duas pequenas diferenças em relação ao
cenário do Baptismo. Aí, a voz de Deus provém do céu (não da nuvem), e
dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: «Tu és o Filho meu, o Amado» (Marcos 1,11).
Aqui, a voz provém da nuvem, e dirige-se a nós, em 3.ª pessoa. É, portanto, a
apresentação que Deus nos faz do Seu próprio Filho. Tanto que, acrescenta logo
o imperativo: «Escutai-O» (Marcos 9,8). Com este divino dizer, o Pai vincula a
Si o Seu Filho do modo mais profundo: Deus não se revela a si mesmo, como no
Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos a nós também ao Seu Filho, sendo Ele a
Palavra que devemos escutar todos os dias, a Pessoa a quem devemos prestar
atenção todos os dias.
6. Eis-nos, portanto, outra vez a sós
com Jesus (Marcos 9,8), que põe a Transfiguração em linha com a Ressurreição,
abrindo-nos já prolepticamente os caminhos da Missão depois da Ressurreição.
Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no
dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se
celebra no dia 6 de Agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem
dada por Jesus ao descer do monte de «A ninguém narrarem (diêgéomai) o que
viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos» (Marcos 9,9).
7. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta
musical pausa e bemol. Na verdade, não podemos dizer a Transfiguração do
Senhor, antes da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E
não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós.
Veja-se a lição do Livro dos Actos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o
Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus,
tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes
e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras
que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os
que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque
Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque
importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar
em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando
vos conduzirem, entregando-vos, não vos preocupeis com o que ides falar
(laléô); mas o que vos for dado (dothê: conj. aor. pass. de dídômi) nessa hora,
isso falai (laléô); na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas o ESPÍRITO
SANTO» (Marcos 13,11).
8. A tradição situa o «monte alto», que
abre o episódio da Transfiguração (Marcos 9,2), no Tabor, um monte de forma
arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de
Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia
palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante
desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio
da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto:
«E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e as
suas vestes tornaram-se resplandecentes, grandemente brancas» (Marcos 9,2-3). O
branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo
104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo
exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é
toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).
9. A Lição do Livro do Génesis 22,1-18
apresenta-nos a figura de Abraão, também ele vencedor da prova da sempre
idolátrica posse que se apega a nós e a que nós nos apegamos. Na verdade, há
ainda uma última posse de que Abraão tem de ser libertado: em relação a Abraão,
o narrador insiste em chamar a Isaac «seu» filho (Génesis 22,3.6.9.10.13), e o
próprio Abraão diz para Isaac «meu» filho (Génesis 22,7 e 8). Um refrão os
reúne por duas vezes: «E iam os dois juntos» (Génesis 22,6 e 8). Ora, Isaac é o
filho da promessa, é um dom, e um dom não é para se reter ou possuir. Segundo o
dizer autorizado do anjo do Senhor que se faz ouvir dos céus por duas vezes,
Abraão passa a prova exactamente porque «não retiveste o teu filho, o teu
único, longe de mim» (Génesis 22,12 e 16). Não o reteve. Deu-o. Desapossou-se
dele. Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua paternidade, «fazendo subir em
holocausto», não um cordeiro (seh) (Génesis 22,7-8), mas um carneiro (ʼayil)
(Gn 22,13). Neste episódio imenso, intenso e nebuloso, nós podemos, todavia,
compreender que, em vez de sacrificar Isaac, Abraão deverá sacrificar a sua
vontade de o possuir como propriedade: é esta vontade que é mortal. Procedendo
assim, Abraão é o anti-Adam. É preciso testemunhas desta libertação imensa,
incrível, dramática, divina. São os dois jovens depositários do dizer de Abraão:
«Vamos lá acima adorar, e voltaremos para vós» (Génesis 22,5. Importante dizer,
dado que, após a acção de adoração lá em cima, o narrador dirá: «Voltou Abraão
para os jovens» (Gn 22,19). Depositários de um dizer que afirmava o regresso de
Abraão e Isaac, as duas testemunhas podem constatar agora, não o regresso dos
dois, mas somente de Abraão. Lição de insuperável liberdade.
10. Outro imenso texto de São Paulo
atravessa este Domingo II da Quaresma: Romanos 8,31‑34. «Deus entregou o
seu Filho por nós» (Romanos 8,32). Eis o Desígnio (Mistério) de Deus anunciado
no Antigo Testamento, realizado em Cristo, baptizado para a Morte, confirmado
para a Morte, entregue por Deus à Morte. Nesta Morte Gloriosa fomos nós
baptizados e confirmados com o Espírito Santo e com o fogo, e foi‑nos dado a conhecer
esse Desígnio (Mistério conhecido!) (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑l0; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). Desígnio
(Mistério) de Deus anunciado, realizado, e dado a conhecer. A nossa missão
filial baptismal é proclamá‑lo
e testemunhá‑lo
como o Apóstolo o proclama e testemunha.
11. O Salmo 116 é o quarto canto do
chamado «Hallel Pascal», que reúne os Salmos 113-118. O Salmo 116 enche de
música e de cor a Ceia Pascal hebraica. Na verdade, neste Salmo, canta-se a liberdade
e a alegria confiante de vermos a nossa vida segura nas mãos de Deus, que nos
retira do esquecimento do túmulo, e reacende a chama que se extingue. Entre os
admiradores deste Salmo conta-se, com algum espanto nosso, o filósofo francês
Voltaire (1694-1778), que privilegiava o v. 12: «Como restituirei (heshîb) ao
Senhor por todos os seus benefícios (gemûlôt) que me deu?». O Salmo fornece
logo a seguir a resposta: «O cálice da salvação erguerei,/ e o Nome do Senhor
invocarei./ Os meus votos ao Senhor cumprirei,/ diante de todo o seu povo» (vv.
13-14). Este cálice erguido e partilhado assinala, no ritual (seder) da Ceia
Pascal hebraica, o momento em que ia passando entre os comensais a terceira
taça de vinho, a da Acção de Graças. De resto, o orante sabe bem que não pode
«restituir» a Deus. Por isso, no Saltério, o sujeito do verbo «restituir»
(heshîb: hiphil de shûb) é, por norma, Deus (21 sobre 28 vezes). Mas o orante
pode sempre agradecer a Deus e anunciar a todos que Deus actua em favor do seu
povo, acção de evangelização.
António Couto
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