Já havia indícios insofismáveis de que a
relação do Presidente da República com o Primeiro-ministro da Guiné-Bissau não
é das melhores. Portanto, a declaração do Presidente no último dia 1 de maio,
externando sua preocupação com o que qualificou de elevado índice de corrupção
na administração pública, independentemente de sua veracidade, pela forma que
foi expressa corrobora e faz transparecer o estridente estado de mal-estar
entre ele e o chefe do Governo.
Contudo, o momento que evidenciou com
maior contundência a sua rivalidade foi o período que sucedeu à demissão do
ex-ministro de Administração Interna, Botche Candé. Demitido em novembro de
2014, o sucessor de Candé, Octávio Alves, veio a ser dado posse só em 6 de
março de corrente ano. O intervalo de praticamente quatro meses em que o
Ministério de Administração Interna – instituição cuja função chave é
aprovisionar a ordem e segurança dentro das fronteiras do país – ficou sob
tutela de um ministro interino (o secretário de Estado da Ordem Pública foi
provisoriamente elevado ao cargo de ministro) se deve à intransigente
dissonância do Presidente da República e o chefe do executivo em torno de um
nome consensual para assumir a referida pasta. Penso que a cedência de uma das
partes decorreu da necessidade de transmitir aos doadores internacionais,
naquele momento, a impressão de inexistência de rivalidades entre o executivo e
a presidência da República e dentro das próprias estruturas do Partido Africano
para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – haja vista que a mesa
redonda se realizaria em Bruxelas, dia 25 do mesmo mês. Lembra-se também que
Simões Pereira, durante um discurso alusivo ao dia 20 de janeiro (data
comemorativa do assassinato de Amílcar Cabral) na sede do PAIGC, obsecrou à
elite política do PAIGC – meio em que não há consenso em torno de sua figura –
voto de confiança.
Bem, o semipresidencialismo é o sistema
político da Guiné-Bissau e, portanto, a constituição do país reparte, teoricamente,
o poder entre o Presidente da República (chefe de Estado) e o Primeiro-ministro
(chefe do Governo/Executivo). Entretanto, conforme consta no ponto 2 do artigo
1040 da carta magna guineense, realmente o sistema político em questão responde
por um semipresidencialismo presidencial. A despeito do Governo e o Presidente
da República serem eleitos em fóruns eleitorais distintos, eleições
legislativas e presidenciais, respectivamente, o Presidente é assistido
constitucionalmente a destituir o Governo e o Primeiro-ministro em algumas
situações. De acordo com o supracitado artigo, “o Presidente da República pode
demitir o Governo em caso de grave crise política que ponha em causa o normal
funcionamento das instituições da República, ouvidos o Conselho de Estado e os
partidos políticos com assento parlamentar”.
Tudo bem. Mas em quais condições pode-se
dizer que há grave crise política que ponha em causa o funcionamento normal das
instituições? As respostas a esta questão são múltiplas e permanecem no âmbito
subjetivo. A questão é que o ponto 2 do artigo 1040 nutre hermenêuticas
ambíguas, estando à mercê de interpretações e enviesamentos diversos, além de
potenciais arbitrariedades políticas que nele repousam. Mas, paradoxalmente, é
um dispositivo que oferece condições práticas ao Presidente a viabilizar
politicamente o país em eventuais situações de ingovernabilidade e em estado de
interrupção de relação interinstitucional. Entretanto, se tratando de um país
cuja democracia é jovem, esse dispositivo constitucional deveria ser
retrabalhado no sentido de ser protegido de interpretações ambíguas, haja vista
que esse artigo assistiu, no passado, aos saudosos Presidentes Vieira e Yalá a
derrubarem vários chefes do Governo e respectivos Governos.
Voltemos à questão central do presente
artigo. O Presidente José Mário Vaz poderia lançar mão desse mesmo artigo para
derrubar constitucionalmente Domingos Simões Pereira e seu Governo, uma vez que
há rivalidades e mal-estar entre os dois? Seria muito difícil, ou seja, insustentável,
pelo menos a curto prazo. Penso que não há condições reais e substanciais que
justificam a deposição do Governo. No hodierno contexto sócio-político
guineense, eventuais deliberações políticas substantivas – mormente as que
tendem a provocar significativas mudanças estruturais de cunho institucional –
tomadas à luz de dissimulações jurídicas e legais tendem a produzir resultados
graves e contraproducentes a todos. Portanto, a ponderação política sustentada
na real evolução conjuntural do país torna-se fundamental.
A Guiné-Bissau acaba de sair de um
período de transição política (2012-2014) decorrente do golpe de Estado de 12
de abril de 2012, no qual o país conheceu um dos períodos mais críticos de sua
história pós-independência, tendo sido suspenso da maioria de organizações
internacionais – inclusive da União Africana – e sofrido cortes de recursos
oriundos de cooperação internacional para o desenvolvimento (discordo
veementemente dessa política de condicionalidade, mas essa análise fica para
outra ocasião). A suspensão de cooperação com o Governo da Guiné-Bissau – país
dependente de recursos de cooperação internacional – era justificada pela boa
parte de comunidade internacional, especialmente pelo Ocidente, como pressão
para que o país possa trilhar caminhos de estabilidade política e
institucional, desencorajando práticas de golpe de Estado.
Com a eleição de novos órgãos de
soberania nacional, a qual permitiu que o país saísse do já referido árduo
quadro sócio-político e econômico, criou-se interna e externamente boa
expectativa em relação ao desempenho do atual governo, cujos resultados, até
aqui, pode-se considerar razoáveis – não desconsiderando, contudo, o alerta do
Presidente sobre notável grau de corrupção. Todavia, entre outras coisas, as relações
do país com a comunidade internacional se restabeleceram, naturalmente, e o
governo obteve, a título de promessa (uma boa parte será a título de
empréstimo), recursos financeiros que giram em torno de US$ 1,5 mil milhões, no
recente encontro com seus parceiros internacionais em Bruxelas. Ademais, o
chefe do Governo, Simões Pereira – ex-secretário executivo da Comunidade dos
Países da Língua Oficial Portuguesa (CPLP) – conta com amplo capital
político-diplomático internacional, especialmente de Portugal – número
considerável de viagens do Primeiro-ministro a Portugal revela o quanto a
ex-metrópole tem ocupado (voltou a ocupar) um lugar de destaque na política
externa do atual Governo.
No plano doméstico, o Governo de Pereira
conseguiu cooptar a elite política do Partido de Renovação Social – a principal
força de oposição. Ao concedê-la alguns cargos ministeriais, asfixia a sua
legitimidade política de oposição crítica à sua governação. No que concerne à
relação com as Forças Armadas, me parece que o executivo tem conseguido
estabelecer relação de diálogo pertinente com a classe castrense, cujo objetivo
é minorar espíritos de desconfianças entre os dois atores, os quais
caracterizaram historicamente sua relação, sobretudo desde o conflito
político-militar de 1998. É nesse sentido que as reformas no setor de segurança
e defesa devem merecer muita transparência, sendo uma matéria muito sensível à
segurança do Estado e do próprio Governo.
Todo esse cenário de otimismo, sobretudo
em termos de efetivação de estabilidade e paz duradouras que se vive no país
depois de fatídicos dois anos de transição política, fortalece a legitimação do
Governo pela comunidade internacional e sociedade guineense. Neste último caso,
o povo já demonstra estar fatigado de distúrbios políticos, e pela história e
experiência própria – a despeito de considerável índice de analfabetismo – o
cidadão comum guineense já adquiriu consciência de que a instabilidade
político-institucional é potencial fator de estagnação e/ou retrocesso socioeconômico.
Desta feita, o povo não seria transigente em estigmatizar atores de eventuais
iniciativas (de destituição do Governo ou coisa de gênero) que ponham em causa
a estabilidade que se busca no país. E os parceiros internacionais não só
tenderiam a virar as costas ao país, como também tenderiam a suspender seus
recursos de cooperação.
Sendo assim, o Presidente Mário Vaz,
devido à sua consciência sobre a atual conjuntura política do país, não
arriscará um ato que poderá pôr em risco sua imagem política. Por isso, apesar
de ser verdade que as coisas mudam na política rapidamente, é improvável que
ele ouse a destituir o governo. Acho que a delicada coabitação do chefe de
Estado com o chefe do executivo tende a limitar-se a nível pessoal e pode até
atravessar o domínio político (a exemplo do braço-de-ferro em torno de nomeação
do ministro de Administração Interna), mas nada que pressuponha “extermínio
político” de um ou outro, pelo menos a curto prazo, digo a curto prazo.
Nota:
Os artigos assinados por amigos, colaboradores ou outros não vinculam a IBD, necessariamente, às opiniões neles
expressas.
Julgo eu que por aventureiro que possa o Presidente ser, não aventuraria destituir este Governo, a custa de querelas pessoais que vem agravando com o tempo, parecendo incontornável com conselhos de parte a parte, como sempre é habito na nossa praça, os vassalos aparecem regatear ouvidos, com conselhos incendiários, "Chefe abó ku jna seta és". Coisas nossas.
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