sexta-feira, 21 de março de 2014

O PAIGC soube fazer a guerra, o problema é que não soube fazer a paz”



Há alguns dias referi aqui o lançamento de um livro sobre a Guiné-Bissau. Escrito pelo embaixador Francisco Henriques da Silva e pelo escritor Mário Beja Santos, a obra abarca cinco séculos de história do território: da chegada dos portugueses, aos anos da guerra, à vida em independência. Apesar de o lançamento só estar marcado para o próximo dia 9 de Abril, no Palácio da Independência, em Lisboa, os dois autores tiveram a amabilidade de responder a algumas questões por escrito que vão muito para além do livro e que resultaram numa reflexção sobre o estado actual da Guiné-Bissau. Aos dois, muito obrigado.

Porque decidiram escrever um livro que abarca cinco séculos de História?
Essencialmente, porque, por estranho que possa parecer, tanto quanto é do nosso conhecimento, não existia nada do género. Nesta matéria, prevalecia, sim, um vazio enorme e verdadeiramente escandaloso relativo ao passado e presente do que é hoje a Guiné-Bissau. Lacuna inaceitável que se nos afigurou necessário preencher. Apesar de existir muita documentação dispersa, a verdade é que os documentos e as obras publicadas sobre a História da Guiné então portuguesa já estavam profundamente ultrapassados quando se deu a independência. A República da Guiné-Bissau cumpre, agora, 40 anos de existência e, tanto quanto sabemos, não dispõe de uma narrativa sequencial e lógica, abstraindo de quaisquer outros considerandos, desde a luta de libertação aos nossos dias. Há testemunhos como os de Luís Cabral e Aristides Pereira, mas são, por definição, manifestamente insuficientes.

Propusemo-nos apenas orientar o leitor desde a chegada dos nossos navegadores a um território que podemos designar vagamente como Senegâmbia até ao golpe de Estado de 12 de Abril de 2012. Aqui traçamos uma linha de fronteira temporal, para criarmos algum distanciamento em relação aos acontecimentos mais recentes. Mas não escrevemos, nem pretendemos escrever, um livro de História; este Roteiro é, quanto muito, uma obra de enquadramento histórico. Por isso lhe chamamos uma rosa-dos-ventos. Remetemos o leitor para leituras relacionadas com a História. Mas referimo-nos também à literatura colonial, à literatura de guerra, à actual literatura bissau-guineense, à biografia de uma figura emblemática como foi Amílcar Cabral, à política de cooperação, à expansão da língua portuguesa, a questões de ordem antropológica, à política, à economia, enfim a uma multiplicidade de temas, que, nalguns casos, pecarão porventura por excesso e noutros por defeito.

O que é que ele traz de novo?
A grande inovação é que se trata de um instrumento até à data inexistente que fica ao dispor principalmente dos leitores de Portugal, da Guiné-Bissau e do espaço lusófono, mas não só, porque vivemos num mundo globalizado, já que estamos esperançados que a obra irá incitar estudos mais desenvolvidos, em todos os domínios. A obra não tem outra ambição que não seja a de pretender atrair mais e melhor estudo sobre a História da Guiné portuguesa e da Guiné-Bissau.

Como caracterizam a presença dos portugueses na Guiné-Bissau?
A presença dos portugueses na Guiné, ou no que podemos designar por Grande Senegâmbia, ou seja, uma vastíssima área da África Ocidental que vai desde o Rio Senegal até ao Sul da atual Guiné-Conacri (ou se quisermos de uma região ainda mais ampla que iria do que é hoje a Mauritânia à Serra Leoa), data da década de 1440, com Nuno Tristão e outros navegadores que foram descobrindo e mapeando os territórios e rios por onde iam passando, reivindicando para a Coroa Portuguesa essas terras e aprisionando os primeiros escravos que trouxeram para Portugal. Todavia, a presença portuguesa durante séculos foi meramente epidérmica, circunscrevendo-se às praças ou aos presídios, nas margens dos rios, como Cacheu ou Ziguinchor, sem penetração para o interior. Apenas os chamados lançados ou tango-maos, isto é os proscritos, os condenados ou os aventureiros é que se internavam no “hinterland” africano e se misturavam com as populações locais. A presença portuguesa era, pois, muito frágil e precária. Após a Conferência de Berlim (1885) e, sobretudo na sequência da Convenção Luso-francesa de 1886 é que se iniciou a penetração para o interior e a pacificação do território que, note-se bem, só se deu por terminada já no ano tardio de 1936.

Os portugueses estão hoje em grande número na Guiné-Bissau devendo cifrar-se em cerca de 3.000 ou mesmo 4.000 os cidadãos de nacionalidade portuguesa residentes no país. Todavia, apenas 300 ou 400 podem ser considerados verdadeiros emigrantes.

Podem dar-me algum exemplo?
Os portugueses estão em praticamente todos os setores relevantes da vida económica e social da Guiné-Bissau: telecomunicações, banca, seguros, combustíveis, setor agro-alimentar, transportes, comércio, restauração, hotelaria, ensino, etc. Todavia, dado o estado de pauperização em que o país se encontra e a endémica instabilidade política muitos empresários afastam-se. Sejamos claros: os atrativos locais não são muito estimulantes.

Em Angola, a guerra colonial começou em 1961. Na Guiné o início da luta de libertação só teve início em 1963, com o ataque ao quartel de Tite. Porque demorou tanto tempo?
Por três razões principais: porque o PAIGC pensava que ainda era possível um processo negocial com as autoridades portuguesas; porque existiam outros grupos rivais com ações já empreendidas no terreno; porque não dispunham de quadros políticos e militares preparados. Em 1961 e 1962, os homens do PAIGC pretenderam, sem qualquer êxito, negociar com as autoridades portuguesas, sobretudo após os acontecimentos de Março de 1961 em Angola, que inflamaram os ânimos. Decidiram passar à ação direta, mas para tal havia todo um trabalho prévio a fazer, naqueles anos, de mobilização política e militar, tendo particularmente em conta que existiam então numerosos grupos rivais. Registam-se ações na região de S. Domingos e Praia Varela logo em 1961, perpetradas pelo Movimento de Libertação da Guiné de François Mendy, mas que mais não foram que meros atos de vandalismo. Todavia, há relatos de incidentes esporádicos noutros pontos do território onde se verificaram tiroteios e ações hostis, isto antes do ataque a Tite. O PAIGC só decide agir quando tem os seus principais quadros formados, sobretudo na China e possui o controlo efetivo dos seus homens, esgotada que estava a via negocial. Contrariamente, a todas as expetativas não ataca na periferia, mas bem no centro da Guiné, em Tite, demonstrando uma capacidade ofensiva pujante até então insuspeitada. A guerra estendeu-se de imediato a uma grande parte do território Morés (mata do Oio), ao Xime e a regiões do Sul, logo em 1963, e, posteriormente, à mata do Cantanhez e à ilha de Como.

No início os portugueses optaram por uma postura defensiva. O que mudou com António de Spínola? 
A guerra dividiu-se, de facto, em duas fases distintas: de 1963 a 1968 e deste ano até ao final (1974) que correspondem a perceções da situação no terreno e a estratégias distintas. Com António de Spínola, a partir de 1968, passa-se, como refere, de uma postura defensiva ou estritamente militar a uma estratégia, mais complexa, articulada em quatro eixos fundamentais: em primeiro lugar, uma política económico-social em prol das populações locais e contando com a sua participação ativa, sob o lema “Por uma Guiné melhor”; em segundo lugar, uma crescente africanização da guerra, com a criação das unidades de elite guineenses e com a organização das populações em auto-defesa; em terceiro lugar, com uma maior capacidade ofensiva, em termos militares, utilizando meios mais sofisticados e o recurso a tropa especial e, finalmente, a intenção clara de conversações secretas com o PAIGC, corroborando implicitamente a tese de que a solução do conflito era política e não exclusivamente militar. Em suma, para Spínola haveria que retomar-se, por um lado, a ofensiva e, por outro, subtrair as populações civis ao controlo do PAIGC com uma política de conquista dos “corações e almas”.

Houve um grande impacto na população?
Em geral, a população sentiu benefícios reais com esta política e o PAIGC viu a sua argumentação e a sua base de apoio popular ameaçadas. Spínola implementa a acção psicológica em larga escala, com meios adequados e ideias adaptadas ao ambiente local, acresce que a sua estratégia militar ofensiva também começa a produzir resultados. As populações islamizadas, sobretudo no Leste do país, sobretudo Fulas e Mandingas, apoiam-no. Na região Oeste, os Manjacos pendem também para o lado governamental. Toda a atuação de Spínola começa, pois, a deixar marcas. Existem inúmeras deserções no lado dos guerrilheiros e um acentuado cansaço de guerra. Todavia, esta política surge claramente fora do tempo e o PAIGC, beneficiando do quadro da “guerra fria”, reage com armamento cada vez mais sofisticado, designadamente com a introdução dos mísseis terra-ar, e com apoios sólidos do bloco de Leste. Para além disso, Amílcar Cabral vai recorrer com êxito à diplomacia para fazer vingar as suas teses na cena internacional. Logo, neste “duelo de titãs”, como lhe chama o historiador bissau-guineense Leopoldo Amado, Cabral acabaria por levar a melhor, mas não a viu concretizada, pois foi assassinado em 1973.

O que os portugueses deixaram nesse período ao país?
O país, durante anos, foi o parente pobre da colonização portuguesa – se é que se pode falar em colonização stricto sensu na Guiné. No período spinolista foi criada uma rede viária moderna, como, tanto quanto sabemos, não existia então outra em toda a África Ocidental, sem falar na reconstrução dos portos do interior, no saneamento básico, nas escolas, hospitais, no melhoramento da rede elétrica, ou seja o bem-estar das populações e o desenvolvimento económico consistiam em objetivos prioritários a atingir, no quadro de um diálogo constante com as populações. Foi, sem dúvida alguma, um período de fomento. O problema é que veio demasiado tarde, todavia a obra perdurou durante alguns anos até gradualmente desaparecer com a inevitável passagem do tempo e a incompetência dos governantes que lhe sucederam.

Apesar da independência, a vida da Guiné Bissau tem sido tudo menos pacífica. Conseguem encontrar uma explicação?

Resumiríamos a nossa explicação numa pequena frase: “Não há dúvida que o PAIGC soube fazer a guerra, o problema é que não soube fazer a paz”, ou seja provou que sabia combater no campo de batalha, mas foi totalmente ineficaz na governação, nem tão-pouco criou as condições mínimas para governar. Existem vários fatores a considerar: começaríamos por referir que a Guiné-Bissau averba uma história de violência quase ininterrupta desde o período colonial à atualidade. Em segundo lugar, o país é um mosaico de povos, de línguas e de culturas cuja unidade é muito, mas muito, frágil. Em terceiro lugar, desde o tempo da luta armada, mas sobretudo a partir do golpe de Estado de “Nino” Vieira de 14 de novembro de 1980 e, com maioria de razão, após o termo da guerra civil de 98-99, os militares passaram a intervir ativamente na vida pública e assistiu-se a uma ligação espúria, promíscua e malsã entre as classes castrense e política. O fator étnico também pesa – e muito – nesta equação, como é óbvio. Em quarto lugar, sendo o país, pobre entre os pobres, gera sempre alguns ricos, ou seja oportunistas de todos os quadrantes que ganham dinheiro de qualquer maneira e por todos os meios ao seu alcance, desde a corrupção ao narcotráfico. Neste contexto, devíamos ainda adicionar a criminalidade impante, impune e omnipresente, o crescimento desmesurado da cidade em relação ao interior, o problema social dos antigos combatentes, a falta de quadros, o desinteresse generalizado da comunidade internacional por este pequeno país da África ocidental, etc. Podíamos ir mais longe nestas considerações, mas o quadro genérico está traçado.

O que poderia ter sido feito de diferente?

As coisas foram como foram e são o que são. Em História não se põem “ses”. Creio que caberá aos bissau-guineenses responderem a esta pergunta e haverá, seguramente, uma grande diversidade de opiniões, nesta matéria. Pensamos que a inevitável rutura com Cabo Verde, a gritante falta de quadros, a inexperiência de governação, a ausência de um verdadeiro projeto nacional e, sobretudo, a falta de subordinação do poder militar ao poder civil legalmente constituído terão contribuído para a atual situação. A nosso ver, a questão fundamental reside na verdadeira Reforma do Setor de Defesa e de Segurança. Este é o verdadeiro calcanhar de Aquiles da Guiné-Bissau. As Forças Armadas bem como as forças policiais têm de passar a constituir um verdadeiro exército republicano, ajustado às necessidades do país e da sociedade bissau-guineense, subordinado ao poder político sem quaisquer ressaibos ou conotações étnicas. O tempo da guerrilha já lá vai. Caso contrário, todas as aventuras militares são possíveis e perigosas.

Como é que o país chegou ao actual Estado?

Pelas razões já apontadas. O que vamos dizer é duro e melindroso: a Guiné-Bissau constituiu-se como Estado sem ter verdadeiras condições para tal. As questões políticas, económicas e sociais eternizam-se e ampliam-se sem solução à vista porque as instituições do Estado não funcionam, não se assumem como tal, ou pura e simplesmente não existem. Estamos perante um Estado caótico, desestruturado e disfuncional: na prática, um “não Estado”, se é que esta expressão faz algum sentido.

É possível alterar este estado de coisas?

Cabe aos bissau-guineenses consciencializarem-se do status quo e resolverem por si próprios os seus problemas com um mínimo de seriedade. Caso contrário, as perguntas subsistem e impõem-se: para que é que se fez a luta de libertação nacional e que sentido tem a independência da Guiné-Bissau? Ter a perceção do status quo é, desde logo, ter a noção clara e inequívoca de que a Guiné-Bissau é um Estado falhado, uma entidade ingovernável. Essa tomada de consciência constitui, a nosso ver, o primeiro passo para que as coisas mudem. Ora bem, a sequela lógica tem de ser dita sem palpos na língua: tem de se reconstruir o Estado porque ele verdadeiramente não existe.

O que Portugal ainda pode fazer pela Guiné?

Portugal tem de ajudar a Guiné-Bissau a construir um verdadeiro Estado, começando pela Reforma do Setor de Defesa e Segurança, pela instauração de um Poder republicano e democrático que respeite os direitos humanos e o primado da lei, contribuindo para a administração e funcionalidade do aparelho de Estado e, finalmente, pela cooperação fraterna em todos os setores que a Guiné-Bissau carece e a que Portugal manifeste disposição e abertura para ajudar, desde a Educação à Saúde, da Justiça à Administração Local. Mas para tal é preciso que a Guiné-Bissau esteja disposta a ser ajudada.

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