Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO
Este Papa resolveu descongelar a liberdade e o
pluralismo na interpretação da Palavra revelada.
1. A sacralização da dimensão humana
da Igreja e das respectivas estruturas acaba por impedir a sua reforma
permanente e encobrir situações recentes de triste memória.
A
Alegria do Evangelho [1] mostra que o Papa Francisco não tem acções nas indústrias de
conserva: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que
os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial
se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual do que à
auto-preservação”.
Este sonho deve concretizar-se em
processos de mudança nas paróquias, nos movimentos e nas dioceses. O Bispo deve
estimular organismos de diálogo e participação nos quais todos sejam ouvidos e
não apenas àqueles que estão sempre prontos a lisonjeá-lo.
Jorge Bergoglio comprometeu-se a
praticar aquilo que pede aos outros, isto é, a trabalhar na conversão do Papado
e das estruturas centrais da Igreja universal. Importa dar conteúdo à
colegialidade e tornar as Conferências Episcopais sujeitos de atribuições
concretas, mesmo doutrinais. A centralização excessiva não responde às
necessidades actuais da evangelização a partir de situações sociais e culturais
tão diversificadas.
Este argentino recusa a consagrada
receita da rotina: fez-se sempre assim! É preciso ser ousados e
criativos na tarefa de repensar objectivos, estruturas, estilos e métodos
evangelizadores das respectivas comunidades. Sem identificação comunitária dos
fins e dos meios, o sonho não passa de uma fantasia (nº 27-33).
2. Donde poderá vir a energia para
tanta desenvoltura reformadora? Do encontro com o núcleo essencial do
Evangelho. É este que dá sentido, beleza e fascínio ao novo estilo
missionário, que faz a triagem entre o principal e o secundário e vence essa
obsessão de amontoar doutrinas desconexas impostas à força de insistir no
ridículo.
Bergoglio retoma, do Concílio
Vaticano II, uma perspectiva entretanto esquecida: “existe uma ordem ou
hierarquia das verdades da doutrina católica, pois o nexo delas com o
fundamento da fé cristã é diferente”.
Uma das tarefas teológicas mais
urgentes consiste em passar, a pente fino, certas posições do magistério
eclesiástico declaradas irreformáveis, certamente para evitar questões
incómodas. Quem poderá fechar o futuro ao Espírito de Deus?
O Papa retoma o ensino de S. Tomás de
Aquino para destacar que também na mensagem moral da Igreja existe hierarquia
de virtudes e acções que delas decorrem. ”O elemento principal da Nova Lei é a
graça do Espírito Santo, manifestada através da fé que opera pelo amor”.
Relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes,
pois compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta na realidade
- remediar as misérias alheias. Tudo o resto só existe para secundar e exprimir
o Evangelho da graça, do amor e da liberdade que exige e supera a justiça (S.
Th. I-II, 66; 106-108).
Bergoglio conhece bem as
consequências nefastas nas orientações pastorais, quando esta hierarquia não é
respeitada e as virtudes que deveriam ser as mais presentes na pregação e na
catequese – a caridade e a justiça - são as mais ausentes! Acontece a mesma
coisa quando se fala mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de
Jesus Cristo, mais do Papa do que da palavra de Deus (nº 36-38).
A moral cristã não é uma ética
estoica, uma ascese, uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e
erros. É a resposta de amor ao amor que nos amou primeiro.
3. Este Papa resolveu descongelar a
liberdade e o pluralismo na interpretação da Palavra revelada, honrando o
trabalho dos exegetas e dos teólogos, assim como o pensamento filosófico e as
ciências humanas. Serve-se de Tomás de Aquino para rejeitar o sonho de uma doutrina
monolítica defendida por todos. O Evangelho é multiforme.
O empenhamento dessacralizador do
novo hóspede da Casa de Santa Marta põe em causa costumes, alguns muito
radicados no decurso da história da Igreja, mas que não têm ligação directa ao
núcleo de Evangelho. Diz a mesma coisa de normas ou preceitos eclesiais que
podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não são canais de vida. Não
tenhamos medo de os rever!
Recorre a Tomás de Aquino para
sublinhar que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus
“são pouquíssimos”. A Igreja não deve transformar a nossa religião numa
escravatura, quando a misericórdia de Deus quis que ela fosse livre e
libertadora. A Igreja de portas abertas e enlameada pelos caminhos de todas as
periferias o mundo, encontra os passos de Cristo (n.º 37-49).
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